domingo, junho 02, 2019

Retrato de um dia feliz




O meu marido tinha dito para eu não arranjar programas que o impedissem de estar sossegado a ver a final da Champions (acho que era a Champions mas não garanto porque a toda a hora há finais de tudo e mais alguma coisa). Só que, por uma qualquer conjugação astral, as coisas confluiram para ir às compras de manhã, depois viagem para um almoço em família, com parte dela, depois regresso e ida a uma livraria para oferecer um livro a cada criança, depois vinda a casa para adiantar o jantar, depois passeio à beira rio com outra parte da família e, a seguir, jantar com grande parte da família. Seguidamente os comensais adultos retiraram-se, com excepção para nós, eu e o meu marido, que ficámos com a tropa miúda. Os últimos a irem-se embora saíram há pouco. O meu marido, suspira, encolhe os ombros, lamenta-se: por mais que queira ficar estendido no sofá, sossegado, a ver futebol, nunca consegue. A televisão até estava ligada mas tanta gente à mesa e tão ruidosa e tanto movimento... não conseguiu. Acho que tem vontade de me recriminar mas não o faz. Por um lado, porque sabe que foi por um bom motivo e porque, na verdade, também gosta, mas, por outro, penso que acha que não vale a pena dizer nada.


E eu tenho a dizer que cada vez tenho que fazer maiores quantidades de comida. Tachadas e tachadas e, afinal, a massa, que era um dos acompanhamentos, foi à tangente. Fiz uma embalagem inteira de massa, que, depois de cozinhada e parcialmente escorrida,  temperei com azeite que tinha antes aquecido com alho e bacon picado para apaladar, e que envolvi com queijo ralado, uma embalagem inteira. Uma tachada -- e não era a família completa, que essa parte já tinha estado no almoço. Afinal, houve quem quisesse repetir e já não tivesse apanhado. O meu marido queixou-se: quase não comi massa. Para a próxima que estejam todos já terei que fazer duas embalagens inteiras. Só falta ainda ter que arranjar tachos maiores. Dito isto, que não se pense que me queixo. Qual quê: o oposto. Dá-me gosto ter batalhões esfomeados à mesa. E depois de comerem ao jantar como uns leões, os que agora vieram buscar os remanescentes, em conjunto com estes, voltaram a sentar-se à mesa e cada um comeu meia sandes de queijo.

Passa da uma da manhã. O meu marido foi deitar-se há pouco, cansado. 'Isto, um gajo...' e nem completou a frase. Quando à noite liguei à minha mãe, contou-me que depois de a termos deixado em casa lá para as quatro da tarde, e tendo visto que o meu pai estava a dormir, se sentou no sofá e adormeceu instantaneamente e que foi até às sete. Pudera. Habituada a, durante a semana, estar sossegada, na maior quietude, hoje apanhar um programa destes -- em que andou a brincar com os bisnetos e em que esteve a almoçar demoradamente no meio do maior animação -- deixou-a KO.


E eu aqui estou a contar isto como se esta converseta pudesse interessar a alguém. Mas é esta necessidade de, ao fim do dia, escrever alguma coisa. Ia dizer que deve ser a isto que se chama vício de mão mas acho que não é de mão, é de dedos. Os meus dedos não conseguem ir para a cama sem antes andarem aqui pelo teclado, a saltitarem, todos insolentes e descomandados.

Estive a ler os comentários, informações que me trazem ensinamento, dicas preciosas para quando um dia me aventurar a afastar-me por mais do que uns dois ou três dias desta minha gentinha de quem me faz tanta impressão ficar longe e a pensar que, se me ponho a responder, não consigo escrever o post pois estou como talvez possam imaginar. E, no entanto, com um dia como o que tive, até parecia que o cansaço me tinha passado, olhava para mim e pensava que estas coisas são sempre mais psicológicas do que físicas. Mas, agora que aqui aterrei, mal me consigo manter acordada.


Há bocado, um dos meninos pediu-me para usar o computador para ver um vídeo. Quando abriu o Youtube apareceram vídeos do género dos que costumo ver. O miúdo olhou para aquilo, espantado, e exclamou com o ar mais escandalizado e surpreendido que se possa imaginar: 'Oh... mas o que é isto...? Estás tão desactualizada...!'. Achei o máximo. 

Também, quando estávamos a chegar a casa depois de termos passeado à beira-rio e comido uns belos e gigantes gelados (eu um de chocolate preto, moscatel e framboesa), dois dos meninos vinham a falar dos meus pais. Um disse que o meu pai tinha cancro. Fiquei espantada, corrigi logo que não, que tinha sido um AVC, qual cancro. Quiseram saber o que era um AVC. Lá expliquei de forma que não ficassem preocupados. Na cabeça deles, o cancro é o pior de tudo e vendo-o assim devem ter achado que era isso. Curiosamente, um deles não achava que ele fosse marido da minha mãe. A mãe, disse-me que se calhar ele pensava que o meu pai era pai da minha mãe. Ele naquele estado e ela sempre tão jovial -- na cabeça dele deve estar registado como se pertencessem a diferentes gerações. E um disse: 'No outro dia o avôzinho disse que já não tem nenhum dos seus pais vivos e eu fiquei com pena. Coitado do avôzinho'. Depois ficou calado e todos nós também. E ele acrescentou: 'É a tristeza da vida' . Nós ficámos... Eu disse: 'Oh rapaz... que conversa...'. Tem oito anos feitos há dois meses. Referia-se ao avô paterno, a quem tratam por 'avôzinho'. O avô materno também já não tem pais mas não o esclareci desse pormenor. Pelo contrário, desviei foi a sua atenção. Disse-lhe para não se preocupar com coisas tristes, e que nem são tristes, que são coisas naturais que acontecem, umas pessoas envelhecem e outras nasceme que a vida é mesmo assim, e para ficar é feliz com os dias felizes em que tem a família toda junto a si.


Esse mesmo menino, junto ao rio, andando de mãos nos bolsos, quando eu lhe falei nos faróis e lhe expliquei para que servem, disse: «Há tantas coisas importantes de que nunca se fala... Por exemplo, as torres de vigia. Tão importantes'. E eu fiquei a olhar para ele, espantada. 

Outro andava mais à frente a conversar sobre caravelas com o avô. Gosta muito de história e o avô finalmente tem um interlocutor que gosta de ouvir o seu grande conhecimento sobre a matéria.

Enfim. Momentos felizes durante os quais o cansaço se me evapora. Estive a ver as fotografias. Enterneço-me. Sinto-me agradecida. Tomara que todos eles guardem boas memórias destes dias.

(E, pieguissimamente, desejo que também guardem sempre uma boa memória de mim). 

E agora passa bem já das duas. Provavelmente já dormitei pelo meio. A ver se consigo dormir até meio da manhã. Tenho muitas coisas que fazer mas acho que consigo despachá-las na parte da tarde, de preferência a começar ao fim da tarde. Preciso mesmo de descansar.


.......................................................................................

As fotografias são de coisas que me fazem companhia aqui por casa. E, a todos os que comentaram, as minhas desculpas por não conseguir responder. Não consigo mesmo.

Bem, não é bem, bem, assim. Claro que podia fazê-lo mas, nesse caso, não poderia ter escrito isto e estes meus insubordinados dedos precisam mesmo de, à noite, andarem à solta, numa folia que é só deles. 

Só uma resposta à Isabel: sim, atrás dos castiçais, naquela última fotografia do post lá mais abaixo, é uma pintura (não minha). O quadro estava na parede por cima do piano que, entretanto, foi para casa da minha filha pois ela é que tocava. Daí os motivos musicais. Agora está na parede onde está uma estante de meia altura. Sobre a estante onde estão os castiçais há uma pequena peça de vidro também com motivos musicais. Se me lembrar, fotografo-a para também lhe mostrar, está bem? 

..................................................................

E um belo dia de domingo a todos.

10 comentários:

Luis disse...

como pode ser feliz, se o pobre homem não conseguiu ver a bola? :)

AV disse...

Um sábio, esse menino, nos seus 8 anos.

Isabel disse...

Tenho algumas memórias dos meus avós paternos, da infância e tenho pena de não ter convivido mais com eles, pois moravam noutra cidade. Os maternos, não conheci o avô e a avó tenho vagas lembranças. Eu acho que os seus netos têm muita sorte em ter os avós por perto e tão disponíveis para eles. Terem toda a família assim perto é uma benção e eles vão ficar com recordações e ensinamentos que nunca vão esquecer. Esse é um melhor legado, que os bens materiais. De certeza que a felicidade que eles vivem agora, como crianças vai ajudá-los a ser adultos mais felizes.

Eu gosto de ler sobre dias felizes.

Obrigada pela sua resposta. Achei que deve ser um quadro muito bonito. Agora fico então à espera da foto prometida.

Beijinhos e resto de domingo feliz:))

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Lá está a UJM a fazer-me crescer água na boca com os seus relatos gastronómicos...!

O seu menino, tão giro. Essas conversas surgem por vezes algo perturbadoras para os adultos, mas quando não traduzem angústias mais marcadas, representam o normal progresso da interiorização do princípio da realidade, que inclui os inesperados da vida e a irreversibilidade da passagem do tempo. Claro que a rica UJM com o seu enorme coração fez o seu trabalho de avó.

Um rico serão dominical.

Um Jeito Manso disse...

Olá Luís,

Mas isso é o quê? Solidariedade masculina? Que coisa tão corporativista...

E ele é que é picuinhas. Podia ver a gravação. Não tenho culpa que não goste de ver jogos quando já sabe o resultado...

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana, Lady of Vasconcellos,

Este menino, a quem aqui tratei durante algum tempo bor bebé e depois por ex-bebé (até que, depois dele, vieram mais dois e fiquei sem saber como aqui me referir a ele) é o rei da calma, da descontracção, de certa forma até low profile, um boa-onda que não se torce nem se amolga com nada. Gosta de contar anedotas, não se mete em brigas e podem os outros andar à bulha que ele fica sempre na boa. E tem uma destreza física invulgar. Adora jogar à bola e tem uma força e uma ginástica surpreendentes. De todos, sempre pensámos que este haveria de enveredar por alguma coisa na base do desporto.

Por isso, quando chegou à 'primária', sem estudar e aparentemente sem querer saber de notas, esquecendo-se sempre de avisar que tem testes ou trabalhos para fazer e incapaz de dizer o que anda a aprender (diz sempre 'nada de especial'), foi com surpresa que só apareciam Muito Bons a tudo e a professora a dizer que tem uma facilidade extraordinária para matemática.

E, no meio da maior tranquilidade e sentido de humor, sai-se com tiradas que nos deixam a olhar paar ele.

À noite a prima, uns meses mais velha que ele, já com sono, ia-se passando com ele, queria que ele mudasse de canal e ele nada. A prima gritou, chorou. E ele, impávido, 'Se soubesses pedir sem gritar...' Ela, furiosa, aos gritos: 'Grito! Grito! Muda de canal, já!!!' e ele impassível: 'Estás histérica...'

O que vale é que, afinal, ela acabou por perceber que até gostava do programa que o primo tinha escolhido. E como estava com sono, acabou por amansar. Ele, como sempre, na boa.

Abraço, Ana!

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Já cumpri a proessa: já fiz um post com fotografias do que estava em falta.

Eu tive a sorte de ter os meus avós por perto e de terem tido uma vida longa. Não havia era o hábito de nos juntarmos regularmente todos, avós, tios, primos. Isso só acontecia em aniversários ou pelo Natal e Ano Novo. E disso eu sentia alguma falta pois sempre fui muito amiga de ajuntamentos familiares. Ainda no outro dia, tínhamos todos ido com a minha mãe a um sítio e vínhamos na rua, e aquela gente toda e aquela criançada toda já se sabe que era uma animação e a minha mãe disse: quem nos veja há-de pensar que somos daquelas famílias italianas em que falam todos muito, tudo ao mesmo tempo, uma confusão. E é. Não que falemos todos ao mesmo tempo mas, como somos muitos, cruzam-se as conversas e acredito que, visto de fora, seja mesmo uma confusão.

Espero que os meus menininhos guardem boas recordações destes tempos alegres. Pelo menos estão sempre a vir para cá e mal chegam perguntam logo pelos tios e pelos primos e quando se vêem é uma festa. Até o bebé: 'os pimos?' e, mal eles chegam, é vê-lo aos gritos e aos abraços.

Para mim, então, isto é a maior alegria que posso ter.

Abraços, Isabel, e dias felizes para si!

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Não sei se sou boa cozinheira mas sei que, cá por casa, os meus cozinhados são bem aceites. E sei sobretudo que adoro cozinhar para uma mesa cheia. Quanto mais gente cá tenho mais me sinto inspirada me sinto. Não sigo receitas, é sempre de improviso. Gosto de ter o fogão e o forno a bombar, tachos e tabuleiros em simultâneo. E gosto de ter a mesa toda aberta, cheia de gente, e gosto de ver a malta a repetir, a gostar do que come. Em especial gosto de ver os miúdos, gulosos e comilões, entusiasmadaos a quererem provar tudo.

E acima, na resposta à Isabel, já falei deste meu menino que é enorme, com enorme destreza física, com muito bom feitio, e que, volta e meia nos surpreende com observações inesperadas. Não é dado a angústias ou preocupações. Pelo contrário, encara tudo na boa. Contudo, na volta, fica a pensar com alguma apreensão em alguns aspectos.

No dia em que a minha sogra morreu, eu estava com eles na Gulbenkian e a minha filha tinha ido ver a avó com o irmão e o meu marido. De lá, ligaram-me a dar a notícia. Ele tinha cortado a mão no gume de uma folha e tinha ido ver se havia primeiros socorros. E quando ela ligou, estava um senhor a fazer-lhe um curativo na mão. Não consegui dizer-lhes. disfarcei e tentei que não percebessem. Já em casa da minha filha, ela contou-lhes e ficaram ambos muito calados. Depois o irmão não acreditou ('não acredito, não é verdade, pois não?) e ele ficou muito sério: 'coitada, era tão boazinha'. Pior foi o primo que no dia seguinte me perguntou como é que ela estava. E eu não percebi. E ele: 'Quero dizer... já está em esqueleto?'. E até quase me deu vontade de rir.

Enfim... Vão crescendo, vão tomamdo mais contacto com a realidade.

Abraço, Francisco, e uma boa semana para si!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Rica UJM, tenho a certeza que é uma cozinheira do melhorio. É muito o género da minha mãe e meu o improviso e a boa bagunça, já o meu pai é todo cheio de método, nem quero imaginar aquilo em casa dele à hora dos cozinhados - a minha mãe quando há alguma festa e ele está enxota-o logo da cozinha, que ele começa logo a parvar: "ó menina, faça assim, ó menina isso não assim, sempre me saiu uma aldrabona".
Eu também gosto muito de ver o pessoal a comer bem.

Que docinhos os seus meninos.

Um abraço

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Obrigado e boa semana, aussi!