domingo, setembro 16, 2018

Uma melancólica despedida
(ainda que seja apenas um breve até já)




Sempre que fomos ao supermercado ficámos espantados com o dinheiro que gastávamos mas a verdade é que pouco lá tivemos que ir. Ontem o almoço foram restos. Tudo é aproveitado ao máximo. Tinha duas costeletas congeladas que tinham sobrado do outro dia, tinha o caldo da caldeirada e tinha o resto do cabrito assado. Então cozi dois ovos e juntei-os ao caldo da caldeirada que ainda tinha batata, cebola, tomate e uns fiapos de peixe. E ficou uma boa sopa de peixe. Fritei as costeletas. Desossei os dois bocados de cabrito e fiz arroz de carne em que, para líquido da cozedura, metade foi o molho do cabrito (foi assado com o forno a baixa temperatura, pelo que o que ficou de caldo foram os sucos da carne, das cebolas, da salsa, do alho, do alecrim) e outra metade foi água e ao que juntei dois tomates e dois marmelos pequenos cortados aos bocadinhos. 

Ainda sobrou um bocado de arroz que foi metido numa caixa de vidro para servir para o jantar, com salada.


Ao fim da tarde, fechámos e arrumámos as espreguiçadeiras, varri a casa, sacudi os tapetes e cobertas, lavei o fogão e a bancada da cozinha, lavei as casas de banho, arrumámos tudo, a pouca roupa que tínhamos levado, o resto da fruta, o resto do tomate, o resto do arroz, os queijos, o mel, um ramo de alecrim. 

Estava o sol ainda muito dourado quando de lá saímos. Tão bom estar lá ao fim do dia, quando entardece em doçura, quando a luz banha tudo a ouro e serenidade.

Ainda fui à figueira comer mais uns figos. O meu marido já tinha apanhado um saco deles mas deu-me aquela vontade de voltar a sentir a seiva muito viva a vibrar na carne doce e rubra dos figos acabados de colher.

Com que pena fechei a porta, com que pena fechámos o portão. 

Sei que no trabalho não me esperam tempos fáceis e o contraste com a vida simples e boa que tenho vivido nestas três semanas parece-me abissal, quase difícil de suportar. Quantos mais anos passam, mais me custa pensar na qualidade de vida de que abdico para continuar a trabalhar de sol a sol, para perder horas no trânsito, para me ver enfiada em salas sem janelas, em reuniões intermináveis com pessoas que me parecem incompatíveis comigo. 
Mas como me disse há tempos uma pessoa que ainda há dois ou três dias vi a opinar na televisão, todo ele prosa e muito cheio de propriedade, 'todos temos uma cruz para carregar'. Carreguemo-la, pois.


Já tudo no carro, voltei a casa. Fui buscar o livro do Manguel para acabá-lo no carro. E, de repente, fiquei com pena deles, dos que lá estão, uns por ler, outros lidos, outros que me parecem melhor lá do que cá, outros à espera que um dia, outros que nem sei como lá foram parar. Fui ao carro buscar a máquina fotográfica e fotografei-os. Só fotografei os que estavam espalhados, uns num sofá, outros noutro, outros na mesinha de apoio, outros na mesa da casa de jantar, um sobre um prato de louça que está esquecido em cima de uma pilha de livros de museus.

Não fotografei as estantes embutidas na larga parede do corredor, a parede que separa a parte original da casa e a que foi acrescentada. Um dia fotografo-os. Nem os que estão nas duas estantes que o meu pai me fez, um só com livros de pintura e fotografia e outra com livros de viagens. Nem os de arquitectura que estão ao pé da lareira, tantos livros de arquitectura, lindíssimos. Um dia também vos hei-de mostrar.

Pelo caminho, enquanto lia o livro que fala da paixão por livros e por bibliotecas ocorreu-me que lá, in heaven, podia fazer uma biblioteca. Em pedra, entre as árvores. Vim de olhos fechados a imaginá-la, livros em volta, de alto a baixo, janelas estreitas com vidros de igreja, uma mesa larga ao meio. Pensei que se fosse uma única divisão, pequena, tinha que ter dois andares. Aì a coisas começou a complicar-se, comecei com ideias avançadas -- uma das paredes ser a rocha da barreira, talvez ficar à altura do passeio que circunda a casa para se poder entrar por cima. Cá em baixo, à volta da casinha, todo em redor, um canteiro de alecrim, rosmaninho e alfazema. Depois comecei a pensar na organização. E aí começou outra vez a complicar-se. Uma loucura este amor por livros.


Entretanto, fomos a casa dos meus pais, deixei lá um saco de figos, agora aqui já arrumámos tudo, jantámos, viémos para a sala, vimos televisão e aqui estou, cheia de saudades. Parece impossível mas é verdade. Gosto muito da minha casa, desta, gosto mesmo, mas estar lá no campo, acordar com o canto dos pássaros, passear à sombra de árvores que plantei, sentir o perfume da terra... não há o que se lhe possa comparar.

Enfim. Daqui por uma semana, talvez, lá esteja a recuperar da semana que aí vem.

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