Se nunca estive ligada à Igreja a verdade é que, cada vez mais -- à medida que vou assistindo a histórias continuadas de abusos, encobrimentos e meias palavras --, me incomodam demais todos os luxos, rituais, ortodoxias, hipocrisias, manipulações a partir da psicologia de massas, alienação de consciências que todos os agentes da igreja perpetuam.
Não obstante, e apesar de também tenha achado que Francisco, o Papa, vacilou quando deveria ter sido firme ou compactuou quando nada tinha a perder e podia ter cortado a direito ou usou palavras elíticas quando se exigiam palavras inequívocas, a verdade é que simpatizava com Jorge Bergoglio e reconheço que foi melhor que os antecessores.
Mas, neste momento de comoção quase colectiva -- em que parece que não se fala de outra coisa senão nas memórias pessoais que cada um tem com ele ou das suas virtudes ou do que ele disse ou fez --, o que penso é no homem idoso, doente, de saúde débil, certamente muito limitado na sua autonomia, tendo que ser lavado, com fraldas, medicado até mais não poder, com dificuldades respiratórias, que, apesar de tudo, conseguiu arranjar forças para ir desejar boa Páscoa à multidão.
Quando o vi, ainda antes de ser internado com a pneumonia bilaterial, pensei: está tão inchado, provavelmente já a fazer retenção de líquidos, se calhar os rins já a começarem a falhar. Depois achei que não devia ser tão pessimista e pensei que talvez fosse apenas cortisona para tratar a bronquite. Pode parecer parvoíce mas depois de ter acompanhado a situação do meu pai e, mais recentemente, a da minha mãe, eu ainda não consegui desligar-me deste hábito de vigiar sintomas, de intuir (ou temer?) o significado do que vejo.
Quando o meu pai morreu, já está quase a fazer 5 anos, estávamos confinados, impossibilitados de circular, eu no campo, a trabalhar de manhã à noite em teletrabalho e sem poder meter-me à autoestrada para ir lá a casa (e, com receio de que, se fosse, pudesse contagiá-los, pois, aparentemente, isso tinha acontecido com o pai de uma pessoa que me era próxima). E, em simultâneo, eu inquietava-me diariamente, e não era pouco, com a situação do meu pai. Primeiro foi a minha mãe que, em pleno pico de covid, para não ferir a susceptibilidade de fisioterapeuta, continuou a recebê-la apesar de ser totalmente desaconselhado. Depois, tendo mesmo que receber a senhora que ia fazer a higiene ao meu pai e dar-lhe a comida através da sonda nasogástrica, não lhe pedia que se descalçasse e, até muito tarde, tinha vergonha de lhe pedir que usasse máscara. Eu passava-me com a minha mãe por continuar a achar que só acontecia aos outros e parecia preferir correr riscos para não melindrar as duas, não fossem elas levar a mal se ela e suspendesse os serviços de uma e pedisse à outra para andar de máscara e calçasse outra coisa quando entrasse lá em casa. Isto, no início, quando não se sabia como é que o vírus se propagava e as notícias nos traziam diariamente um número crescente de mortos e de ventilados.
Mas o pior foi quando começou a achar que o meu pai estava inchado. Nessa altura, já tinha passado para o polo oposto, já tinha terror de tudo. Telefona-me cheia de medos de tudo, chorava. Muito a medo ligou para o INEM, pois recava que eles próprios fossem fonte de contágio. Mas lá o fez e eles lá foram a casa. Disseram que o meu pai estava a fazer retenção de líquidos e teria que ir para o hospital. Mas como estava a oxigénio, teria que ir para a ala covid. E aí a minha mãe não quis. E então ligou-me outra vez, a chorar, aflita, a dizer que não queria, senão ele apanhava covid. Depois pôs-me a falar com os do INEM. Coitados, que poderiam dizer? Não poderiam isolá-lo pois o hospital, na ala covid, estava cheio. Faltavam os meios. E não poderiam levá-lo para o hospital contra a vontade da família. E a minha mãe chorava, não queria que ele fosse. Recomendaram, então, que se chamasse médico a casa pois certamente receitaria Lasix. Assim se fez. E o médico, mostrando que a situação o preocupava, foi o que receitou. E o meu pai melhorou.
Mas, ao fim de algum tempo, a minha mãe voltou a dizer que ia voltar a chamar o INEM pois o meu pai estava outra vez inchado. Chorava, chorava. Insisti para que confiasse que ele não ia apanhar covid e o deixasse ir para o hospital pois a situação poderia ser grave. Tive um mau pressentimento. Morreu poucas horas depois.
Com a minha mãe, que foi aquela situação de que aqui falei, uma situação rápida, complicada, em que tudo se agravou abuptamente, senti um aperto no peito quando vi como tinha um braço todo inchado, a mão toda inchada. A médica e as enfermeiras diziam que era do cateter, do soro, da mão imobilizada, sei lá. Mas aquele inchaço assustou-me como se fosse mais uma confirmação da sentença de morte.
Até ao fim, a minha mãe parecia preocupar-se com pequenas coisas, como se quisesse ignorar o que era verdadeiramente preocupante. Por exemplo, queixava-se que tinha as unhas daquela mão grandes. Dizia-me que, antes de ter sido internada, tinha conseguido cortar as da outra mão mas não tinha conseguido cortar as da mão direita. Como aquilo parecesse afligi-la sobremaneira, pedi à enfermeira se poderiam fazer isso, mas disseram-me que não tinham serviço de manicura. No dia seguinte, levei corta-unhas. E foi para mim um momento muito angustiante. Por um lado, era a situação de diminuição da minha mãe, até tão pouco tempo antes tão autónoma e, naquele momento, a já não ser capaz de cortar as próprias unhas e a querer que eu lhas cortasse. Por outro, a situação anacrónica de estar em situação terminal e, no entanto, tão preocupada com as unhas. Mas, o pior de tudo foi que mal se conseguiam cortar pois a mão quase parecia um balão e não havia espaço entre a unha e a pele do dedo para eu poder encaixar o corta-unhas. Tentei que ela não percebesse a minha angústia. Fingi que estava a cortar sem dificuldade, disse-lhe que já estavam bem. Mas o meu coração estava apertado, apertado.
E depois já não era só aquele braço inchado. Era apenas o mais inchado. Eu vigiava, tentando fazer de conta que não via, mas o ânimo fugia. Um dia, estava ela no cadeirão, com as pernas sobre o sofá. Vi que as pernas também estavam inchadas. Senti um tremendo pavor. O coração dela quase não funcionava, a taxa de ejecção estava reduzida a quase nada, os rins também já não conseguiam funcionar bem. Isto já para não falar que, no peito, o tumor lhe crescia todos os dias. A morte a avançar diariamente, a invadir o seu corpo.
Jorge Bergoglio felizmente não tinha nenhum tumor a devorá-lo mas tinha também insuficiência cardíaca e respiratória. Chega a uma altura em que o corpo atinge o seu limite. Por mais que se tente, que se trate, por mais que se faça de tudo, o corpo já não consegue assegurar o seu cabal funcionamento. Nessas alturas, o sacrifício que o corpo faz para se manter vivo é inglório, já é apenas sofrimento.
Jorge Bergoglio morreu. O seu corpo humano não conseguiu mais mantê-lo vivo.
Apesar de tudo, recordá-lo-ei com simpatia.
E só espero que o próximo Papa seja bondoso, corajoso, simpático, humanista, inclusivo, justo, aberto, valente.
4 comentários:
Plagiado do DER TERRORIST
URBI ET ORBI de um TRAFULHA que me faz lembrar a fábula da flauta mágica
Eu acho que este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo. Acho. Acho que tem mostrado a esquerda revolucionária quase como heroica e a esquerda europeia marxista como a normalidade. Acho que este Papa tem contribuído para destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa e acho que em breve vamos todos pagar um bocadinho por isso.
André Ventura, 31 de Outubro de 2020
Hoje é um dia de tristeza e sofrimento para os cristãos do mundo inteiro. O Papa Francisco deixa uma marca inspiradora de proximidade e simplicidade que a todos tocou profundamente. Que a sua vida intensa seja um exemplo para todos os que querem servir a causa pública!🙏
André Ventura, 21 de Abril de 2025
Bom...luxos, do que conta da sua vida parece haver mais luxo do que o que vi na Igreja. Compare o preçário da Barbiconi (onde os padres chic compram os seus paramentos) com as suas boutiques. Diria que os padres saem a perder.
Encobrimentos: sem dúvida. Muita minhoca debaixo da pedra. Mas não são só eles. Em Portugal é até uma grande qualidade;
- Rituais e ortodoxias: qualquer religião as tem. A maçonaria adora. Uma vez, na Alemanha, entrei num museu da maçonaria. Dizia um texto que do ritual vinha o aperfeiçoamento. Vê-se pelos iluminados conhecidos e suspeitos da nossa praça;
- Hipocrisias: sem dúvida Foi por isso que abandonei o barco. Mas hipocrisia encontro-a logo ao fechar da chave da minha casa. Vivo só. O meu cão não é hipócrita;
- Manipulação: no passado sim. Hoje não. Qualquer imbecil que queira fazer figura de inteligente só precisa de carregar contra a Igreja, os padres, a inquisição, a pedofilia. Fica logo inteligente. E manipulação é o que fazem is nossos jornais e os nossos políticos. Depois queixam-se do populismo e das fake news.
- Alienação das consciências? Quem diria, uma pitada de sal de marxismo, a religiãocomo ópio do povo.
Uma coisa lhe digo: este papa não vai ser esquecido nas décadas mais próximas nem vai passar pelo caminho inclinado de João Paulo II, de santo já a papa da pedofilia.
André Ventura diz uma coisa e o seu contrário com a mesma cara de pau. Não se percebe se é desmemoriado, se é tonto, se não mede o que diz. Ou se, simplesmente, se esquece de que não somos todos burros.
Compara os 'luxos' da minha vida com os da igreja? Curioso. Não tenho sapatos Prada (como os do Papa anterior), não uso capas com bordados a ouro, não tenho a minha casa ornamentada com ouros e joias. Mas, de qualquer forma, a minha missão na vida não tem nada a ver com a da Igreja. Ao fazer essa comparação, parece que acha que a Igreja deve abstrair-se da sua suposta missão de atender aos mais desfavorecidos e, pelo contrário, estar ao mesmo nível de riqueza e ostentação que qualquer pessoa da sociedade 'civil'.
E uma coisa lhe digo: quando uma pessoa não é capaz de formar uma opinião e fazer uma escolha porque se perde em comparações com tudo e mais alguma coisa não vai a lado nenhum. Está sempre em cima do muro, a olhar em volta e a 'mandar' bocas. "Este é mau mas há ali outro que também é", "Aquele não presta mas há 20 anos pareceu um que se calhar também não era bom". "Este é um assassino de primeira mas o que não falta são assassinos". Está a perceber? Este é o seu género, não é?
O meu não.
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