Quando comecei a ler mais a sério, ainda na minha pré-adolescência, devorava Ferreira de Castro, Fernando Namora, Augusto Abelaira, Somerset Maugham, Pearl Buck, John Steinbeck, depois passei para os russos, Dostoievsky, Gorky, e tudo a que deitava a mão. Já aqui falei nisso mais que uma vez. Desde cedo os livros foram para mim uma tentação, uma companhia, uma porta aberta para outros mundos.
Não fazia a mínima ideia de qual a cara dos autores. Ou talvez tivesse, talvez em alguns livros aparecesse uma pequena fotografia a preto e branco. Mas isso era para mim completamente irrelevante. Estou agora a lembrar-me do D.H. Lawrence cujos livros li deliciada e não tenho ideia de alguma vez ter visto como era. Ou se tive, não retive. [Depois de ter escrito isto, fui ver na internet e vi que, afinal, a cara dele não me era estranha - mas e daí?)
As palavras valiam por si e não me lembro de sentir qualquer necessidade de os ver ao vivo para me poder interessar pelo que escreveram.
[Imagino que, ao lerem o que acabei de escrever, os meus leitores devem ter dado um salto para trás: wow…! armada em literata e agora revela que pensa que é contemporânea dos autores que referiu… mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo.
Pois, de facto ainda coincidi no tempo com um ou outro. Inclusivamente cheguei a pedir um autógrafo a Fernando Namora que, uma vez vi na Sá da Costa mas - burra - ofereci o livro ao meu namorado da altura.)
O que quero dizer é que a evidência da irrelevância do conhecimento presencial dos autores se torna mais óbvia nos que já morreram e cuja aura não desaparece.
Deve ser por isso, por privilegiar a escrita às pessoas que a produzem, que não me desperta o mínimo interesse ir aos lançamentos de livros ou a feiras ou outros locais onde se exibem os autores dos livros.
Para mim, um escritor, um bom escritor, é alguém muito especial. Pode parecer uma pessoa normal mas, de facto, ao ter palavras a correr-lhe nas veias, é capaz de proezas imortais que o comum dos mortais não alcança. É como um pintor. Estes têm cores ou imagens que vêm não se sabe de onde e que independem do tempo. Ou músicos. Mas refiro-me apenas aos verdadeiros, não aos pretensos.
Se os vejo ao vivo, normalíssimos, a dizerem coisas banais, parece que perdem aquela aura de magia que os deve rodear.
No entanto, veja-se a contradição, gosto de ler entrevistas a escritores, gosto até de os ver na televisão a falarem de livros, em especial de livros de outros, gosto de os ver no seu habitat em documentários, gosto de ouvir as suas opiniões.
Por exemplo, tenho aqui a Ler de Novembro e estou danadinha para ler a entrevista à Teresa Horta.
Mas, quero eu dizer, gosto de os ver dentro de um receptáculo (dentro de um livro, de um jornal, da televisão), não ao vivo, não de forma que eu possa perceber a sua normalidade.
E gosto de ler biografias - porque gosto de perceber de que matéria são feitos os seres especiais. Mas estou a falar de ler sobre a vida de pessoas interessantes e cuja obra admiro. Não preciso de ver as pessoas ao vivo e, muito menos, não preciso de ouvi-los a falarem sobre os livros que escreveram. Era o que faltava que alguém, para poder gostar dos meus filhos, fizesse questão de conhecer os pais deles e quisesse ouvir-me a mim e ao meu marido a descrevermos a forma como os fizemos.
Talvez por isso sinta uma certa empatia por escritores que preservam a sua identidade ou que evitam a exposição. Poderia falar de Dalton Trevisan ou de Herberto Helder, por exemplo. Do Herberto Helder conhecemos fotografias mais recentes mas, ainda assim, não aparece por aí, não anda na badalação.
Eu sei que tudo o que estou a dizer é o mais ao arrepio possível da prática corrente. As editoras, para venderem (e esse é o seu legítimo objectivo), tanto consideram que o produto vendável é o livro como o autor. E o marketing passa por eventos de que depois se dará notícia, por fotografias, por filmes, etc, e, para dar vida aos eventos (e - é preciso não esquecer - para alimentar o facebook e obter muitos likes), nada como ter como atracção o autor. Percebo. Digo apenas que não sou sensível a isso, antes pelo contrário.
Dois exemplos próximos são o Valter Hugo Mãe e a Margarida Rebelo Pinto. Espuma. Ambos produzem produtos de consumo imediato, artigos de supermercado, daqueles que vendem sobretudo pela publicidade. Na aparência cultivando estilos distintos, ele o coitadinho, ela a vamp, são, de facto, a mesma coisa. Ilustrações animadas.
[Poderia também, uma vez mais, dizer-vos que acho muito mais piada a eu escrever um blogue sendo uma ilustre desconhecida do que plantar aqui o meu nome e a minha fotografia.
Quem aqui me visita, fá-lo porque gosta de ler o que escrevo ou porque gosta das fotografias que tiro ou das imagens que escolho. Não por mim. E isso agrada-me muito.
Podia inventar um nome ou colocar uma fotografia em que se visse apenas a minha franja e vocês poderiam acreditar que me ficariam a conhecer melhor mas estariam apenas a ser enganados.
Podia isso ou muitas coisas mas prefiro assim: que apenas o que estão a ver desperte a vossa curiosidade ou que sintam empatia comigo apesar de eu ser, para vós, uma abstração.]
Quem aqui me visita, fá-lo porque gosta de ler o que escrevo ou porque gosta das fotografias que tiro ou das imagens que escolho. Não por mim. E isso agrada-me muito.
Podia inventar um nome ou colocar uma fotografia em que se visse apenas a minha franja e vocês poderiam acreditar que me ficariam a conhecer melhor mas estariam apenas a ser enganados.
Podia isso ou muitas coisas mas prefiro assim: que apenas o que estão a ver desperte a vossa curiosidade ou que sintam empatia comigo apesar de eu ser, para vós, uma abstração.]
E comecei com isto e, como de costume alonguei-me, porque o que queria mesmo era falar de alguém cujo trabalho tem dado que falar apesar de ser um mistério.
Dele pouco se sabe. Nem sequer o nome. Geralmente trabalha de noite. É de manhã que as pessoas se deparam com o que andou a fazer.
Surpreende. Intriga. Enternece. Faz sorrir. Provoca.
Dele pouco se sabe. Nem sequer o nome. Geralmente trabalha de noite. É de manhã que as pessoas se deparam com o que andou a fazer.
Surpreende. Intriga. Enternece. Faz sorrir. Provoca.
E usa pseudónimo: Banksy.
Aos poucos os seus trabalhos foram aparecendo por todo o lado, saindo de Bristol (supostamente a sua cidade natal) para outras cidades, nomeadamente para Londres, e, durante um período recente, foi com deliciosa surpresa que os Estados Unidos acordaram a cada dia que amanhecia com a sua arte nas ruas.
Este desconhecimento, intensifica o mistério, desperta mil curiosidades. Por exemplo, surgiu há tempos uma fotografia de alguém de quem se pensa poder ser Bansky. Mas já apareceram tantas outras... E escrevem-se longos artigos, especula-se: quem é Banksy?
E depois acontecem coisas surpreendentes: agora recentemente entregou uma pintura para leiloar, a obra atingiu os 615.000 dólares e, em vez de ficar com o dinheiro, mandou entregar o dinheiro a uma organização de sem-abrigo portadores de HIV. Tudo através de interpostas pessoas.
Bansky não acredita no mercado da arte. Quando alguma obra sua aparece num leilão se estar devidamente certificada por ele, ela não foi posta à venda por ele - excepto em situações excepcionais como a acima referida.
Para provar que o valor é relativo, fez o impensável: montou uma banca em NY com quadros seus e colocou tudo a 60 dólares. Pois bem. Ninguém ligou. Devem ter pensado que era falsificações. Vendeu apenas 3. Quadros que valem milhares foram vendidos baratos e, ainda assim, ninguém os quis.
Para provar que o valor é relativo, fez o impensável: montou uma banca em NY com quadros seus e colocou tudo a 60 dólares. Pois bem. Ninguém ligou. Devem ter pensado que era falsificações. Vendeu apenas 3. Quadros que valem milhares foram vendidos baratos e, ainda assim, ninguém os quis.
Não fosse o espaço aqui nos blogues ser mais destinado a pensamentos curtos, a pequenas histórias, do que a longas dissertações, e eu continuaria de gosto a falar dele. Seduz-me. Acho que o que ele faz é poético, contém um lirismo maravilhoso ou, então, é insurrecto, provocante, irreverente, e, seja qual for a faceta, é sempre inovador, oportuno e sempre com um fantástico sentido de humor. E é atento à realidade. E é corajoso. Gosto muito de Banksy. Se me ponho a ver o que ele faz tenho dificuldade em parar, fico encantada.
E consigo apreciar a sua obra, e gostaria mesmo de poder fazer uma viagem que fosse o roteiro de Banksy, ir de cidade em cidade, de continente em continente, atrás das esquinas, das ruas, dos becos por onde Banksy passou deixando a sua inconfundível marca - e tudo, tudo, sem saber quem ele é (e sem querer saber!).
O trabalho de Banksy vale só por si. Destaca-se no meio dos graffitis urbanos. Emociona-nos. Assim são os artistas maiores.
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E agora, meus Caros Leitores, que já disse de minha justiça e que já aqui estive na maior, entretida a escolher imagens de Banksy, bora daí: vamos dançar.
Dance with me - Nouvelle Vague
4 comentários:
temos um país de gestores poetas, gestores escritores, médicos poetas , médicos escritores, políticos poetas, políticos escritores e acabamos por nem ter médicos nem gestores nem políticos nem escritores nem poetas.Como não conseguem ser excelentes num tema, diversificação, dá mediocridade.É o que tenho a dizer dos "intelectuais" portugueses e pretendentes.
As pessoas que são especiais, ou que têm algo de diferente são assim, não necessitam de se exporem, de insistirem constantemente em mostrar-se, ou seja de lado, de frente, porque valem num todo.
Para mim não me interessa o lado físico, talvez porque eu lido todos os dias com muitas pessoas, interessa-me muito mais o que pensam, as suas atitudes e os seus valores. Tal como não valorizo demasiado a presença constante de amigos, mas antes saber que quando preciso posso contar com eles. Enfim, gosto especialmente de liberdade de ser e de estar.
E que isto já está longo. :)
Um abraço e um bom fim-de-semana.
afinal na literatura também há treinadores de bancada.
Na minha juventude, os meus colegas intelectuais andavam com Pink Floyd, U2 e outros debaixo do braço, eu gostava de Madonna, e música mais "Pimba" para eles. O que se passa é que cada um tem a sua própria evolução intelectual (pricipalmente devido ao meio), hoje não ouço Madonna , mas gosto de U2, pink Floyd. não suportava música clássica e agora adoro.
Foi por ter esta evolução que percebo melhor os gostos dos outros, mesmo não estando de acordo.
a quem já nasceu com um gosto refinado, também compreendo a atitude
Nunca li o valter hugo mãe mas não imaginava que ele estivesse ao nível da Margarida Rebelo Pinto - dois escritores espumosos, leves, para consumir e deixar o livro esquecido num banco do jardim.
Quanto ao Banksy, que já conheço há uns anos - uma filha minha falou-me dele -- gosto muito.
Gosto principalmente do aproveitamento que ele faz das imperfeições das paredes.
E, ainda na área dos graffiters, detesto aqueles que se limitam a rabiscar o seu nome ou o seu nickname, tanto ego gasto em tintas, tanta parede estragada.
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