quinta-feira, setembro 17, 2020

Cativar ou não cativar -- eis a questão





O meu marido disse: esta casa começa a estar desarrumada. Eu também já tinha dado por isso. E tinha-o sentido com gosto. Quando vieram os móveis e se arrumaram nos sítios certos, quando a minha filha escolheu peças e as dispôs onde lhe pareceram mais em harmonia com o espaço, foi como se a casa tivesse nascido ali, para nós. Era uma casa de revista, nada fora do sítio, ainda não era um ser vivo.

Agora que já aqui estamos há cerca de um mês, já aqui tenho livros ao meu lado, no sofá, já há almofadas descaídas, já há um computador fora do sítio. Hoje, apressada, entre reuniões, a meio da manhã, a minha filha chegou com os meninos. A partir desta quinta-feira deixa de ter esta mobilidade pelo que veio aproveitar o dia. Eles, de imediato vieram para esta salinha pela qual parecem ter especial predilecção. A bela e espessa coberta branca de algodão que cobre o sofá já aqui tem uma mancha nas costas, marca de um pé que, antes de aqui aterrar, andou descalço na terra. Vi-os aqui sentados, um em cima, outro num canto. De tarde chegou o meu filho e aí, as cinco crianças todas felizes, foi a animação e a graça de sempre. Têm espaço e largueza verde e, ao mesmo tempo, recatada para jogarem às escondidas. Tirei-lhes umas fotografias, o bebé à frente, dizendo: 'bora, malta'. 

Mas, depois de se irem todos, ao reentrar em casa, reparei em copos por aqui e por ali, cadeiras desarrumadas, as almofadas da sala todas desalinhadas. Tive vontade de rir. Esta é cada vez mais a minha casa. 

Não me lembro se cheguei a falar-vos de uma coisa. Havia um pormenor que me trazia apoquentada: não sabia onde arrumar os meus colares. Na outra casa, tinha 'ocupado' o ex-quarto da minha filha e, sem regras ou limites de qualquer outra espécie, fui espraiando por lá todas as minhas coquetteries. Aqui a casa tem outra tipologia, outra topologia. Mas já resolvi também mais esse pepino. Já estão organizados: as pérolas, os brancos, os claros, os turquesas, os verdes. Os dourados, os neutros. Coloquei-os num recanto que há por detrás da porta da salinha de língua portuguesa, em cujo armário embutido (na parede livre) também já tinha arrumado écharpes, carteiras, adereços diversos -- enfim, os meus ex-bens de primeira necessidade. De vez em quando vou espreitar os meus livros, tão organizados, com espaço para se reproduzirem. Os meus colares, tão bem tratados. Hoje, um dos meninos, nessa salinha, olhou em volta e vi como estava admirado. Queria saber porque estavam uns ali e os outros noutro sítio. Expliquei. Ele ouviu com atenção. E eu gostei de vê-lo a prestar atenção a estas minhas coisas. Depois viu uma fita métrica, das metálicas. Pegou logo nela e foi fazer medições, disse que gostava mesmo de medir coisas. O irmão esteve a filmá-lo, depois editou o filme, fez montagens, inseriu efeitos especiais. Muito bom. Quando o elogiei, disse que ainda ia pensar se em vez de cientista investigador não vai ser realizador. Disse-lhe que talvez possa ser as duas coisas. Pensei que é preciso ter cuidado com o que se diz a um miúdo que acabou de fazer doze anos. Muitas vezes penso no que serão em adultos. Ainda não dá para perceber. Tomara que sejam pessoas motivadas, que venham a realizar-se, que sejam felizes. E que se mantenham unidos, amigos, apoio uns dos outros pela vida toda.

Tirando isto, só posso acrescentar que agora só tenho que arranjar energia para ir à outra casa fazer as escolhas definitivas, deitar fora aquilo que já não faz sentido vir para cá, embalar o que ainda tem ou pode vir a ter préstimo, trazer o resto dos armários que irão para a cave, depois arrumar o que, na cave, ainda está em caixas e sacos.

Sobre o dia de hoje, posso ainda contar que a noite passada foi noite de são joão. A meio da noite disparou o alarme. Como a casa é grande, de noite deixamo-la em alarme parcial. E disparou, sirenes por todo o lado. Um susto do caraças. Passado um bocado, de novo. Uma sensação tramada. Andámos à caça, vimos as imagens. E percebemos que vamos ter que fazer alguns ajustes ao sistema de segurança. Já cá vêm, logo de manhã, para tratar disso. Claro que pensei naquilo do cão. Sim, um cão seria uma boa ajuda. Não que um cão só se justifique pelo aspecto instrumental. Claro que não. Há o lado do afecto e aí eu rapidamente me torno tão cão como o cão se torna gente, amigos, iguais. Mas guardar-nos-ia, faria barulho se sentisse risco. Mas, enfim, nada na vida vem sem reverso e ainda não está na altura de darmos esse passo.

Também temos que pensar na trabalheira de mudarmos a nossa morada em tudo o que é coisa. Não sei como encaixaremos isso na nossa vida sempre tão cheia de afazeres. Não é só o tema de irmos buscar o correio pois isso já sei que pode ser desviado: é mesmo a necessidade de regularizar o que deve ser regularizado.

E outra coisa -- e esta eu nem devia contar aqui pois não sei se estou a fazer uma coisa acertada. Comecei a ir deixar os restos de comida lá ao fundo, onde vi a raposa. O meu marido passa-se. Explico que quero tornar-me amiga da raposa. Não se comove, diz que atraio é ratos e cobras. Digo que não, que é longe da casa, que quero é atrair a raposa. Cativá-la. Cativar um animal, tal como cativar uma pessoa, é coisa boa, misteriosa, tão boa que quase mágica. Vou pé ante pé, receando assustar-me, receando não saber como reagir se a vir. Às vezes isso acontece, a gente desejar muito uma coisa e, ao mesmo tempo, ter medo que aconteça.

Mas, enfim, é uma aprendizagem. Estou a aprender esta casa.

E agora vou descansar. Os dias, por mais que eu faça, alongam-se sempre noite adentro, um nonsense que não sei contrariar.


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Pinturas de Pierre Bonnard na companhia de Patrick Watson com Slip into yor skin

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E um dia feliz. Boa sorte. E saúde.

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