terça-feira, dezembro 03, 2013

Leonor e a mulher de Duarte em noite de medos e lágrimas





Ao fim do dia Afonso enviou um mail a Leonor dizendo: 6º de temperatura no máximo. Persiste na maluquice de ir andar à noite para a beira do rio?

Leonor respondeu: Está dispensado (aliás só costuma ir porque quer). Hoje vou fazer compras de natal.

Afonso respondeu: Para isso ainda é preciso mais coragem. Até amanhã então, vou sair. Porte-se bem, olhe a austeridade, não gaste o que não tem. Mas para mim não se iniba, gaste à vontade.

Leonor não estava para graças. Respondeu apenas: :)

Mas não foi fazer compras. Pelo caminho foi ouvindo Riverside, recomendação do seu bom amigo. Dirigiu-se ao rio mas não saíu logo do carro, deixou-se ficar a ouvir uma e outra vez, olhos fechados, o pensamento em círculo, E agora? E agora faço o quê? E só pensava no problema que tinha em mãos e na agressividade de Duarte. Tomara ter alguém ali a seu lado.
Why do I go here all alone, dizia a canção
Depois foi andar sozinha, o ar muito frio, o coração apertado, as mãos nos bolsos. Tanto, tanto frio, uma maresia aguda, uma preocupação que não sabia com quem dividir.
Down by the river by the boats 
Where everybody goes to be alone 
As noites assim junto ao rio têm um mistério que encanta os apaixonados mas que assusta quem por ali anda desprotegido. Leonor sentia o frio tão frio, o ar húmido, a aragem cortante. E mantinha a passada certa, apressada, avançava contra os medos. Tantos os medos.
Down by the water the riverbed  
Somebody calls you somebody says 
swim with the current and float away 
Depois, gelada, cansada, conduziu até casa e tomara que tivesse antes sido para bem longe, que tivesse flutuado nas frias águas do rio para outro continente, e foi ouvindo a mesma música uma e outra vez.

Quando estava a chegar a casa, desejando um duche bem quente e demorado, tocou o telemóvel. Não conhecia o número. Estranhou uma chamada de um número que não identificava àquela hora. Hesitou mas pensou que, se fosse algo de mau, não teria o número visível. Atendeu.
- Leonor?
Quem fala?
- É Maria João, mulher do Duarte. 
Leonor atirou-se para o sofá, aterrada, como que um antecipado sentimento de culpa. O que seria? Àquela hora? Algum acidente?

Sim, sou eu. Diga. Aconteceu alguma coisa?
Um silêncio do outro lado e depois, em voz ansiosa, Não sei, acho que sim mas não sei. O meu marido não anda nada bem. Anda muito nervoso, anda estranho, não dorme, grita com os miúdos, hoje falou-me em demitir-se, em ir para fora. Diz que está com problemas na empresa, que discutiu consigo, por isso lhe estou a ligar, procurei o seu número no telemóvel dele. Desculpe-me mas é que não sei o que fazer, não sei o que se passa.
Leonor sentiu-se trémula. Cheia de frio. Cheia de medo. Medo também de estar a empolar uma coisa sem importância. O que dizer?
- Está?
Estou, sim. Estava a ouvi-la.
- Desculpe, é que não a ouvia. Desculpe estar a incomodá-la a esta hora mas é que ele saíu de casa agora, ia desnorteado, nervoso, discutimos, discutiu com os filhos, e eu sem saber a quem pedir ajuda, mas não estou a pedir ajuda, estou só a querer perceber, desculpe a esta hora.
Deixe, não tem mal. Mas não sei bem o que lhe dizer. Ele anda nervoso, sim, mas acho que é o normal, é a pressão normal, se calhar ele anda mais cansado, são fases, passam, se calhar não há razão para preocupação, talvez ele devesse descansar.
- Mas ele disse que teve uma discussão consigo, que nunca esperaria isso de si. Eu em condições normais nunca lhe telefonaria por causa de uma coisa destas mas, da maneira que o vejo, já nem sei o que hei-de fazer e se pergunto é porque se eu soubesse o que se passa talvez pudesse ajudá-lo, não sei.
Mas não foi nada de especial, coisas de trabalho, diferentes maneiras de ver as coisas, nada de mais.
- Mas a empresa está mal, não está? Não sei se é também isso que o está a deixar preocupado.
Mal? Não. Mal não. Passamos por uma fase muito difícil, a conjuntura é a que se sabe mas, enfim, dadas as circunstâncias até não nos podemos queixar.
- Ah, pensei... como deixaram de pagar prémios e como cortaram os ordenados, pensei...

Leonor fechou os olhos, pôs a mão na cara, apeteceu-lhe chorar. Ficou sem saber o que fazer. Meu Deus. Duarte, Duarte, o que se passa?, pensou.
- Está?
Estou. Estou muito cansada, sabe. Tinha acabado de chegar a casa. Não me leve a mal. Percebo a sua preocupação mas não sei bem o que lhe dizer. Talvez convencer o Duarte a ir ao médico, a tirar uns dias. Mas deixe estar que eu amanhã vou conversar com ele. Depois, se eu achar que devo falar consigo, descanse, eu falo. 
- Obrigada. Agradeço. E desculpe a maçada. Obrigada.

Leonor desligou o telemóvel, pareceu-lhe que a mulher do colega estava a chorar ou a controlar-se para não chorar. Deitou-se no sofá, tapou-se toda com uma manta, cabeça e tudo, e desatou a chorar. Tanto o estranhamento, tanto o medo pelo que se poderia estar a passar, tanta a impotência. Em silêncio ouvia-se a perguntar, Duarte. Duarte o que se passa?

No dia seguinte tentaria falar com ele num outro registo e tomara que não se estivesse a passar nada de grave mas estava com um mau pressentimento. Adormeceu ali mesmo no sofá, a tremer.


*

  • A música linda, linda, é Riverside de Agnes Obel (e o vídeo merece também ser visto com atenção).

  • Para um registo nos antípodas, para saberem a minha opinião sobre o grande feito da troca da dívida da troca-tintas-albuquerca e, a seguir, sobre as arrecuas da cobra-crata, é descerem, por favor, até aos dois post seguintes.
  • Num formato um pouco diferente do habitual, tenho hoje o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa onde tenho poesia dita por Eugénio de Andrade e as minhas palavras perdem o tino por causa de um certo Green God. Muito gostaria de vos ver por lá.

NB: Hoje, uma vez mais, não consigo reler o que escrevi, passa das 2 da manhã e o sono é mais que muito. Já sabem, qualquer coisinha relevem, está bem? Mas coisas graves, avisem-me, sim?


*

E resta-me desejar-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira!

4 comentários:

jrd disse...

A instabilidade emocional de Duarte é imperscrutável nesta altura do campeonato (para usar o jargão "futebolês", já que tivemos um Lampião num ambiente de Lagartos).
Será um caso de bipolaridade?
A seguir (à distância)...

Anónimo disse...

Bonita música! Onde desencanta isto?
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Acabei de escrever que não ia responder aos comentários mas, havendo aqui duas perguntas, tenho que responder.

jrd: Quanto à bipolaridade, ao princípio pensei que sim mas começo a inclinar-me para outra causa. A ver se consigo lá chegar...

P. Rufino: A música é do além, sim. E quem ma revelou foi o Caríssimo jrd aqui acima, que, além do mais, me inspirou o grande amigo de Leonor, o Doutor Lampião.

Um abraço!

Olinda Melo disse...


O Duarte anda metido em alguma... agora com a história do corte nos prémios e etc. A coisa está a pôr-se feia.

Excelente música. Parabéns ao 'Dr Lampião'. :)

Bj

Olinda