Desde o início da minha adolescência que frequento a feira do Livro. Comecei por ir com os meus pais. Andava de pavilhão em pavilhão, eles maçados e eu deliciada. assim me recordo: o meu pai impaciente, carregado com os livros que eu ia escolhendo, a minha mãe compreensiva e eu perdida, empolgada no meu mundo. Depois já ia sozinha, e nada se comparava a isso, horas para baixo e para cima, braços carregados de sacos. No primeiro dia, ia de barraquinha em barraquinha, pedindo os catálogos que depois estudava em casa e, quando voltava, para além dos livros do dia e de coisas inesperadas, ia aviando a lista que tinha feito em casa.
Depois passei a ir com um namorado que também amava as palavras. Mas ele, ao visitar a feira, tinha a sua própria agenda e isso atrapalhava-me os movimentos pois eu queria parar nuns e ele demorava muito noutros que não me diziam nada, coisas ligadas a estudos linguísticos, semiótica, e outras coisas do género. Eu queria seguir e ele de roda dos livros onde se explicava como se fazia a autópsia à língua portuguesa. Ou cirurgia, mais do que autópsia. Livros de anatomia e cirurgia da língua, e eu acho que isso destrói o amor na língua. Alguém, para gostar de uma outra pessoa, se põe a ver as suas análises médicas, radiografias, ecografias, alguém precisa de dissecar o outro para o compreender e amar melhor? Eu acho que não. Em contrapartida, se eu parava nos compêndios de Berkeley ou na Teoria da Relatividade ou na Mecânica Quântica ou na Origem das Espécies, matérias que, nessa altura (e ainda hoje) me mobilizavam grandemente, ele queria seguir. Um stress. Não era fácil de compatibilizar.
Tempos depois, a companhia passou a ser outra: a mesma de agora, a mesma de todos estes anos. Mais perspicaz que eu para ver coisas em que não reparo mas com vontade de despachar a feira em três tempos. De longe deita o olho, vê se interessa ou não, e segue, sem paciência para se debruçar à procura de um tesouro escondido. Fica de longe, de olho em mim, a ver se não me perco dele.
Pelo meio, fui também com os nossos filhos. Cheios de calor a quererem água e gelados, interessados em alguns pavilhões mas o resto do tempo impacientes, queixando-se das secas. Ainda hoje referem os traumas que apanharam nessas alturas. Mas hoje são leitores assíduos, exigentes, e talvez devam um pouco disso ao amor aos livros com que sempre conviveram, desde que nasceram.
Desde que há a Fnac com 10% de desconto e promoções e desde que à hora de almoço vou quase todos os dias ver o que há de novo, a Feira perdeu um pouco daquela novidade. Mas, ainda assim, parece que todos os anos tenho que me manter fiel a este ritual.
No sábado fui de raspão ao fim da tarde. Vinha da Gulbenkian, das brincadeiras do Dia da Criança, já estava cansada. Dei uma volta, espreitei uns livros, vi alguns escritores mas de longe.
Este domingo resolvi ir lá de tarde para ver se comprava alguns livros.
Almoçámos um brunch (passe a redundância) num restaurante muito agradável, boa comida, variada, à discrição. Não gosto muito de fazer publicidade a restaurantes mas de vez em quando abro uma excepção. Este merece destaque: a Rota das Sedas, na Rua da Escola Politécnica, em frente da Procuradoria-Geral. Ficámos no terraço.
Restaurante Rota das Sedas |
Tirei a fotografia numa altura em que as pessoas de uma mesa se tinham levantado para ir buscar comida e apenas mais duas pessoas ao fundo e mais duas junto a nós lá estavam. A seguir, quando estávamos já de saída, a caminho das três horas, chegaram mais pessoas. Se calhar essa é a hora de maior afluência para os brunches. Lá dentro há umas salinhas pequenas, também simpáticas, mas o terraço é melhor. Não é barato mas o sítio é tão bonito e a comida tão agradável que, enfim, fecha-se os olhos, um dia não são dias, bla,bla, bla (21 euros por pessoa, mais as bebidas que são à parte).
Para quem possa, aqui deixo a recomendação.
Para quem possa, aqui deixo a recomendação.
Depois fomos para a Feira. Um calor abrasador. Embora goste de calor, custa-me andar na rua, ao sol, com temperaturas tão elevadas. Fico impaciente, a minha disponibilidade esvai-se.
Confesso que a configuração actual da Feira me é um pouco estranha. Há muitas esplanadas - o que até pode ser bom para que a mim, talvez por conservadorismo, me parece um pouco demais - e tudo aquilo me parece mais stands comerciais do que barraquinhas de livros. Muitos cartazes, muita cor, muito altifalante.
E depois há os autores. Sempre houve sessões de autógrafos e eu sempre as evitei. Não sei porquê.
Tenho para mim que o que me importa é o que escrevem, não quem são, não a forma como assinam o nome. No entanto, uma ou outra vez, em todos estes anos, cedi à normalidade e fui pedir um autógrafo. Pedi um à Alice Vieira antes da minha filha nascer e pedi que a dedicatória lhe fosse dirigida. E talvez mais um ou outro. De resto, tenho um pudor, não sei explicar, acho que os escritores não deviam ser obrigados a sujeitarem-se àquela provação. Acho que deve ser horrível estarem ali sentados à espera que alguém os vá procurar. De vez em quando vejo uma mesa com um escritor sozinho e sem que ninguém lá pare. Acho que deve ser horrível, horrível. Passo e nem olho, finjo que nem reparo para que não se sinta que estou a testemunhar o abandono a que está a ser votado.
De alguns escritores gosto muito e gostaria de lhes dizer isso, que gosto deles, mas não quero fazer figuras ridículas, chegar ali e dizer banalidades, ah e tal, aprecio imenso a sua obra, imagino a complacência do escritor, ah muito obrigado, como se chama para eu escrever na dedicatória? Não. Não faz o meu género.
Mas, enfim, gosto de os ver, de saber como são, e àqueles de que gosto e que não têm muita gente de roda, gostaria de lhes agradecer, de perguntar se querem companhia, de ficar ali sentada a conversar para que não se sintam mal amados, de perguntar se querem que lhes vá buscar uma água ou um gelado. Mas receio que me olhassem como se eu fosse maluca, e, até assustados, me dissessem que não, que me despachassem - não corro o risco de fazer essas figuras ridículas (nem o meu marido me deixaria...). Por isso, limito-me a fotografá-los discretamente.
Naturalmente comprei alguns livros mas não muitos, não tantos como há anos atrás. Tinha curiosidade de ver a Patrícia Reis, li o que ela escreveu ontem (já retirou o post) e estava curiosa de ver como é que ela lá estaria e talvez vencesse a minha resistência e fosse pedir-lhe um autógrafo. Mas ela só chegava às 5 e eu já não aguentava mais o calor.
De resto, e desejando que os visados não levem a mal a inclusão de fotografias suas aqui, deixo a fotografia de alguns escritores que fotografei. Caso não o permitam, bastará que mo digam que eu as retirarei de imediato.
Começo com os jacarandás em flor que circundam a zona.
Jacarandás em flor no início da à Av. Joaquim Augusto Aguiar, ao Marquês |
A seguir mostro a vista geral de Lisboa, do Tejo e da Margem Sul avistados da Feira, para os que não tem possibilidade de a visitar (e não posso esquecer que parte dos meus Leitores não é de Lisboa e, inclusivamente, um número significativo é do Brasil)
A Feira no Parque Eduardo VII, a estátua do Marquês de Pombal de frente para o Tejo, e Lisboa descendo até à beira do rio, a Serra de Palmela ou da Arrábida (ou as duas - não sei) do lado de lá |
A relva é aproveitada para banhos de sol e que sol, que calor...
Relvado central do Parque |
Estava muita gente quer no sábado quer no domingo. Não me pareceu que as compras fossem extraordinárias, mas talvez fosse impressão minha. Para o meu gosto a feira tem um pouco de animação a mais e isso e o calor desestabilizaram-me um pouco, pelo que talvez tenha ficado com uma impressão imprecisa. Pareceu-me que as pessoas andavam a passear mais do que a comprar.
As zonas de sombra são um alívio nestes dias de calor mas, como se vê, há muita gente na Feira |
Não quero deixar de referir que, para além das Editoras mais conhecidas, há outras que desconheço e há outros pavilhões que não têm muito a ver com editoras ou então fui eu que não percebi. Por exemplo, neste aqui abaixo não consegui perceber bem o que se passava. Não sei se são góticos, se era algum escritor que atraía pessoas com esta forma de viver, não sei. Associei ao que J. Rentes de Carvalho escreveu sobre um par de góticos que passaram por ele.
Tenda onde se passava qualquer coisa - mas não percebi o quê, só sei que estavam quase todos vestidos de uma forma especial |
E, por falar em J. Rentes de Carvalho, lá estava ele. Hesitei. Ainda peguei no último livro, que ainda não tenho. Mas pareceu-me que ele estava cansado ou com calor ou saturado, não fui capaz de ir importuná-lo.
J. Rentes de Carvalho |
Vi também um filósofo de quem recentemente li um livro bastante interessante, 'Portugal, hoje - o medo de existir'. Devia ter sido capaz de sintetizar em duas ou três frases alguma coisa de inteligente para ele perceber que eu tinha percebido alguma coisa do que li. Mas não me ocorreu nada e também não quis fazer uma figurinha triste como se fosse uma admiradora ocasional. Os escritores merecem-me um respeito que não me parece compatível com chegar ali ao pé deles a pedir um autógrafo como as miúdas que querem um autógrafo de um vip da televisão ou de um futebolista.
José Gil |
Junto a ele estava uma das escritoras de quem muito gosto, uma mulher que sai das grutas para brincar com bonecas nos sótãos, ou que brinca à porta de casa com gatos ou que desce ao interior dos bosques para buscar palavras, ou que voa.
Falava com alguém e voava nos gestos, no olhar. Como chegar-me ali, interrompê-la, dizer uma banalidade qualquer? Impossível.
Hélia Correia. Tirei mais duas fotografias em que toda ela está focada mas prefiro esta pois aqui ela sorri como uma menina e as mãos voam como pássaros |
E, por falar em poesia, na zona da Leya que é uma feira dentro da feira, eis que vejo, discreta, Maria do Rosário Pedreira. Estava ao lado de outras pessoas, talvez escritores, não os conheci. Não quis maçá-la. Mas uma pessoa abeirou-se dela, com carinho, e vi como ela sorriu, um sorriso muito bonito.
Maria do Rosário Pedreira, editora, poetisa |
E, por falar em pessoas simpáticas, no sábado vi alguém a quem tinha vontade de me apresentar, de me explicar. Mas no sábado estava cansada, com vontade de ir para casa, sem disponibilidade para conversas. Fotografei-a e este domingo estava com esperança de a ver lá de novo, para, então, me aproximar. Mas já não a vi.
Helena Sacadura Cabral, a Bárbara Helena, a quem os jacarandás ofereceram as suas flores para que ficasse assim, florida de lilás. E jovial e sorridente, como sempre |
E já aqui falei desta outra, uma Senhora que escreveu muito para os meus filhos, em especial para a minha filha que a adorava e que eu admiro muito como Poetisa.
Alice Vieira. A fotografia ficou desfocada pois estavam pessoas a passar à minha frente mas quero tê-la aqui pela ternura da sua imagem comendo um gelado, simpática, disponível |
Não quero deixar de aqui mostrar um escritor que admiro e com quem me 'encontro' algumas vezes a comentar o Chapéu e Bengala.
Onésimo Teotónio Almeida |
Depois havia as vedetas, as que faziam com que os leitores formassem filas. Neste caso aqui abaixo, de uma disponibilidade enorme, sempre pronto para estas sessões, não me teria custado muito... se eu fosse de me pôr em fila, numa tarde de calor abrasador. Não sou.
Luis Sepúlveda |
E a vedeta maior, uma fila enorme: o escritor tatuado, da moda, dos clichés. Li os primeiros livros e gostei, li um livro de poesia e gostei mas, a partir daí, acho que se banalizou, que escreve por escrever, que escreve sem que as palavras lhe venham das entranhas, que escreve a metro, não sei bem dizer, parece que as palavras perderam a alma. Ou então sou eu que cada vez sou menos condescendente. Não sei. Talvez seja do excesso de mediatização. Tenho ideia que as luzes da ribalta desvendam as zonas de sombra necessárias aos escritores e, ao desvendá-las, secam-nas. Mas isto sou eu a dizer - e que sei eu disto?
José Luís Peixoto, o escritor que encanta sobretudo 'plateias' femininas |
No sábado, já tinha visto uma outra vedeta mas não exactamente da literatura. De qualquer forma, como vedeta, tem virtudes inquestionáveis: é inteligente, é divertido, tem uma presença forte na televisão. Costumo ler às vezes as suas crónicas e ouvi-lo no Governo Sombra. Escreve bem e é acutilante, aquele humor inteligente que dá gosto.
Ricardo Araújo Pereira, não sei que livros publicou, talvez os livros das crónicas da Visão - mas não sei. O que sei é que, para além do mais, é um homem bonito |
Junto a ele, na Tinta da China, Carlos Vaz Marques, editor e Primeiro-Ministro do Governo Sombra, observava o desempenho do seu irreverente ministro.
Carlos Vaz Marques - o talentoso, trabalhador, grande amante das palavras |
E fico-me por aqui que a reportagem vai longa e a noite avançada.
Mas depois de ler o que a Patrícia Reis escreveu sobre aquilo por que um escritor passa nestes dias de Feira, fiquei na dúvida se esta minha atitude de passar, de não querer maçá-los, o meu receio de fazer figurinhas deprimentes, será a melhor atitude. Acho que vou reconsiderar.
***
Caso sejam uns resistentes e ainda não estejam fartinhos de ler o que escrevo, muito gostaria ainda de vos ter lá pelo meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras vão até a um jardim muito especial e vão guiadas pela poesia de Armando Silva Carvalho, num livro que comprei, justamente, na Feira. A música é especial. Foi um desafio que um Leitor, a quem muito agradeço, me lançou. Levei algum tempo a ganhar coragem: trata-se da música do compositor Luciano Berio. Não é a minha praia como se costuma dizer mas, ainda assim, abre portas pelas quais não costumo passar.
***
E, por hoje, já é até demais, não é...? Por isso, calo-me já mas não sem antes vos desejar uma bela semana a começar já por esta segunda feira.
8 comentários:
Excelente reportagem amiga! Escritores ali enjaulados como «macacos» a quem se distribuem amendoins é muito triste...e deprimente! Mas parece! que quem não se aprestar a estas «figuras» não tem direito a ser publicado.
Olá UJM!
Mais uma excelente reportagem ,como sempre "mozarteana", que é um prazer
ler e reler como se estivéssemos a passear na feira ... Gostei...e muito!. Obrigado
Olá jeitinho,
Também fico "sem jeito"de pedir autografos aquelas pessoas que tanto admiro e depois também tenho receio de os conhecer e de me desiludir.
Beijinho Ana
Migona,
Depois de tudo isto vamos lá saber se os jacarandás estão na RUA Joaquim António de Aguiar ou na AVENIDA António Augusto de Aguiar .... Ai o roteiro...
É que dá gosto vê-los. Todos os anos eu fotografava os do Parque Eduardo VII e por fim os do final da Rua Castilho. No geral os nossos olhos ficam com a sua cor tal a sua beleza.
Bêjos
Olá UJM
De facto, só um grande respeito por quem nos compra justifica que estejamos ao sol a assinar livros. Gosto muito de jacarandás e de roxo/lilás, como se pode deduzir pela imagem...
Caro PSA
Pode crer que não me senti enjaulada, nem a fazer figuras tristes. Senti-me contente por assinar livros a quem prefere, a uma blusa, compra-los e se dispõe a esperar para trocar umas palavras connosco!
E não é verdade que só os que ali vão sejam publicados, acredite. Essa é uma visão de alguém que nunca andou pelo "meio".
Apenas para lhe dizer que gostei de ler e fiquei cheio de inveja por não poder fruir uma tarde tão cheia como essa.
Abraço
Cara Helena
Por si garanto-lhe que olhava para o lado e não lhe ia pedir um autógrafo que acho isso...enfim..mas um beijinho se mo permitisse ia com certeza...agora que há algumas chancelas que «obrigam» os autores a fazer grandes fretes...Bj para si Helena e para a excelente anfitriã
Qualquer pessoa que não possa ir à feira do livro fica com uma visão geral do que por lá se passa. Depois desta reportagem fotográfica excelente é como se estivesse a passear a seu lado e a ver os escritores juntos e ao vivo! Tenciono ainda poder ir à feira para adquirir alguns livros. Trabalhei muito anos nessa zona e todos os dias atravessava o Parque Eduardo VII, quando os jacarandás estavam em flor era como se estivesse a entrar num paraíso lilás, havia flores nas árvores e no chão. Era lindíssimo!...
Obrigada e um beijinho
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