quinta-feira, maio 03, 2012

Das cenas do 1º de Maio no Pingo Doce ao Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, com brevíssima dissertação sobre as fragilidades humanas. Das estatísticas desgraçadas relativas ao desemprego em Portugal que já vai em 15,3% ao artigo de Min Zhu do FMI, passando pela teoria de Sinatra sobre o casamento e o amor. Começa com uma verdade inquestionável: uns vão bem e outros mal e não sou eu que o diz, é Fausto.


Música, por favor

Fausto - Uns vão bem e outros mal 



Hoje, quando bebia o meu café matinal, ao meu lado um cliente dizia ao gerente do pequeno estabelecimento que, na véspera, quando tinha estado no Pingo Doce, não tinha havido distúrbios de maior, que as pessoas é que não sabiam comportar-se

À saída de um Pingo Doce


Contava, com ar de quem tinha ido à guerra e saído vitorioso, que tinha compensado. Que tinha comprado 10 garrafas de litro de azeite, que agora tinha azeite para 2 anos e olhava sorridente à volta, orgulhoso pelo feito. O gerente dizia que também tinha comprado muito azeite mas que tinha optado por garrafões de plástico, vários, que também lhe iam dar para 2 anos, pelo menos, que o prazo de validade é grande. Quando eu saí ainda eles comparavam o volume de compras que tinham feito.


À saída de um Pingo Doce


Claro que, vivendo com dificuldades, as pessoas não pensam duas vezes e disparam, por vezes sem racionalidade, quando lhes acenam com metade das compras à borla. Claro que, para isso, teriam que efectuar compras no valor de 100 euros, coisa que, já de si, não é pouco mas nem devem ter avaliado o impacto no seu orçamento doméstico de compras da ordem dos cento e tal ou duzentos euros num único dia (numa reportagem de televisão vi um senhor orgulhoso dos 400 euros que tinha gasto, em vez dos 800 que seriam).

Questões de vária ordem poderiam ser analisadas sobre este facto mas quero apenas referir que este é, na sua maioria, o povo votante deste país, o povo que decide o sentido de voto. Pessoas que procuram uma instantânea melhoria nas suas condições de vida, sem se deterem a analisar o porquê, o como, o até quando, etc., pessoas que agem por impulso, sem fazerem cálculos ou sem se deterem em considerações de carácter filosófico.

Foi assim - porque gostaram da cara de quem lhes prometia uma política de verdade, que lhes dizia que não era admissível que se aumentasse mais os impostos ou que se sonhasse sequer em mexer nos subsídios de natal - que deram a vitória nas eleições a uma pessoa como Pedro Passos Coelho, colocando-o a ele e  ao Relvas, ao Gaspar e a outros neófitos, ex-jotas e aprendizes à frente da governação deste país.

É fácil, muito fácil, manipular pessoas que, de alguma forma, se encontram fragilizadas (ou porque se sentem inseguras, ou carentes, ou revoltadas, ou doentes, ou desempregadas ou o que for).

*

Parábola dos Cegos - Pieter Brueghel, 1568

Estavam muito perto do supermercado, em algum destes sítios se deixou ela cair, a chorar, naquele dia em que se viu perdida, grotescamente ajoujada ao peso dos sacos de plástico cheios, valeu-lhe um cão para a consolar do desnorte e angústia, este mesmo que aqui vai rosnando às matilhas que se chegam demasiado.
(...)
A claridade do dia iluminava até ao fundo o amplo espaço do supermercado. Quase todos os escaparates estavam tombados, não havia mais do que lixo, vidros partidos, embalagens vazias.
(...)
O cão das lágrimas ganiu baixinho. Tinha outra vez o pêlo eriçado. Disse a mulher do médico, Há aqui um cheiro, Sempre cheira mal, disse o marido. Não é isso, é outro cheiro, o da putrefacção, Algum cadáver que estará por aí, Não vejo nenhum, Então será impressão tua. O cão tornou a gemer. 
(...)
Atravessaram o supermercado até à porta que dava acesso ao corredor por onde se chegaria ao armazém da cave. O cão das lágrimas seguiu-os, mas de vez em quando parava, gania a chamá-los, depois o dever obrigava-o a continuar. Quando a mulher do médico abriu a porta, o cheiro tornou-se mais intenso.


[Excertos de uma das cenas pungentes de Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, cena em que os cegos tinham invadido o supermercado e depois se tinham precipitado, escada abaixo, caindo uns sobre os outros... e mais não digo porque o que vos aconselho a ler é o livro todo, um dos livros que mais me impressionou desde que me tenho por gente. Digo-vos apenas que é um documento impressionante sobre as baixezas mais torpes e vis de que as pessoas são capazes em situações limite - e que, ao ler, sentimos que nós próprios - bem falantes, bem pensantes - também o faríamos se nos víssemos naquelas circunstâncias]

*

Imagem do filme Ensaio sobre a cegueira (Julianne Moore como a mulher do médico, um dos muitos cegos)


Hoje soube-se que o emprego continua a subir. Já vai em 15,3% (e em mais de 36,1% nos jovens) e estes são os números oficiais que são inferiores aos números reais.

Pois ia eu no carro à hora de almoço quando ouço, perplexa, o Secretário de Estado do Orçamento, Luís Morais Sarmento a mostrar-se muito admirado com estes números inesperados (inesperados dizia ele, claro)...!

E concluía a "inteligente" criatura que o que era preciso para resolver isto era liberalizar o mercado de trabalho, flexibilizar ainda mais.

Fiquei de boca aberta. É que, meus Amigos, o problema maior não é só estarmos a ser governados por quem não sabe o que faz: o problema maior é que nem sabem tirar conclusões face às consequências do que fizeram...! Então se o problema é o desemprego estar a aumentar a um ritmo que nem eles percebem, o remédio que lhes ocorre é, justamente... facilitar ainda mais  os despedimentos...?!

Ou isto não é nabice da mais pura que há mas, sim, coisa deliberada? Maldade pura?! Defesa de interesses inconfessáveis?! Já nem sei que diga, perante coisas destas.

Quanto ao Álvaro ou a alguém do Ministério das Falências e do Desemprego, nada: estão noutra. Economia e Emprego é coisa que não lhes assiste.

Portugal é o 3º país ex-aequo com o maior desemprego num conjunto de 29 países ditos desenvolvidos, li num artigo do FMI. 



O autor, o chinês Min Zhu, questiona-se: ‘desenvolvidos na miséria?’ pois é nestes países que o desemprego mais se acentua e, de entre eles, para nossa vergonha e sofrimento, Portugal, só é antecedido (na desgraça) pela Espanha e pela Grécia (e igual à Irlanda). 

Logo no início do artigo, Min Zhu parafraseia uma frase de Frank Sinatra - em que este diz, referindo-se ao casamento e ao amor, que não existem um sem o outro - dizendo que é a mesma coisa em relação ao crescimento económico e ao emprego. Não há emprego sem crescimento, nem crescimento sem emprego.  

E mais uma vez recomenda moderação na aplicação de ajustamentos e, também, garantia de liquidez no sistema financeiro. Injecções de liquidez, políticas de desenvolvimento, abrandamento nas políticas de austeridade – só assim se evitará o suicídio.

Mas, claro, nem Passos Coelho nem nenhum do seu grupo lêem este género de artigos. E, mesmo que lessem, duvido que percebessem. 

No dia 1 de maio, com ar ligeiro de quem pronuncia uma banalidade irrelevante, Passos Coelho disse que os portugueses se deveriam preparar para mais uns anos de desemprego alto. Ainda não percebeu o buraco em que está a enfiar Portugal nem a miséria para que está a atirar os portugueses.

*

Não me apetece falar mais disto que fico indisposta.

Por isso, com vossa licença, para terminar, um bocado mais de Ensaio sobre a Cegueira para que saibam, meus Caros Leitores, que há cegueiras de que se recupera e que há histórias que acabam bem (e, se há lágrimas no final deste excerto, não se admirem, elas são de compreensível emoção de descompressão).

Eu acredito nisso.


Então o médico disse o que todos estavam a pensar, mas que não ousavam pronunciar em voz alta, É possível que esta cegueira tenha chegado ao fim, é possível que comecemos todos a recuperar a vista, a estas palavras a mulher do médico começou a chorar, deveria estar contente e chorava, que singulares reacções têm as pessoas, claro que estava contente, meu Deus, se é tão fácil de compreender, chorava porque se lhe tinha esgotado de golpe toda a resistência mental, era como uma criancinha que tivesse acabado de nascer e este choro fosse o primeiro e ainda insconsciente vagido. O cão das lágrimas veio para ela, este sempre sabe quando o necessitam, por isso a mulher do médico se agarrou a ele, não é que não continuasse a amar o marido, não é que não quisesse bem a todos quantos se encontravam ali, mas naquele momento foi tão intensa a sua impressão de solidão, tão insuportável, que lhe pareceu que só poderia ser mitigada na estranha sede com que o cão lhe bebia as lágrimas.


A tradução destas legendas é pavorosa mas, enfim, foi o que arranjei...
O filme é uma adaptação da obra de José Saramago, e foi realizado pelo brasileiro Fernando Meirelles

*

Bom. Caso ainda tenham paciência, não quererão os meus Amigos ir dar uma espreitadela lá ao meu Ginjal e Lisboa? Hoje as minhas palavras voam em volta de um poema de que gosto muito de Maria Sousa. Acompanha com Puccini, La Bohème... mas oh que encenação!... Só mesmo visto. A sério.

*

E, claro está, desejo-vos uma bela quinta feira, de olhos bem abertos... 
(para verem as coisas boas desta vida!)

4 comentários:

Anónimo disse...

Cara UJM:
Vimos pessoas, vimos acontecimentos. O que não sei é se teremos visto a alma dos acontecimentos.
Boa desmontagem, a que nos oferece.
Terrivelmente violenta a mensagem de “Ensaio sobre a cegueira” sobre a condição humana. Tocou-me a compaixão do cão que não podendo fazer mais nada, bebe as lágrimas daquela mulher.
Não podemos perder a confiança, apesar das alterações tão graves da vida social como as que vivemos hoje.
E tenha dias felizes
abraço da
Leanor formosa e segura

Maria disse...

Amiga:
O excerto do "Ensaio sobre a cegueira" diz tudo.
Sinto vergonha, daquilo que se passou.
Eu era cliente daquele espaço. Gostava de lá ir, as marcas brancas eram boas, sabia os cantos à casa, era perto. Daqui em diante, não sei se terei coragem de lá entrar.
Como se pode alguém, aproveitar assim, da desgraça alheia? Onde foram as pessoas, num país de desempregados e pedintes, arranjar dinheiro, para trazer carradas de inutilidades e coisas perecíveis, como a carne e o peixe. Será que neste país, todos têm arcas frigoríficas gigantes?
Há crise, ou não há crise?
Onde tinha o senhor 400 euros? Era pobrezinho?
Tudo isto me dá voltas ao estômago.
Daqui a uns dias, os contentores do lixo, estarão a abarrotar de comida estragada.
Porque não deu o senhor, a comida e outros géneros, para o Banco Alimentar?
Começo a afligir-me com as reacções das pessoas, perante a grave crise que atravessamos. Em vez de poupar, gastam. Gastam desvairadamente, como se o mundo fosse acabar.
E não há nenhum médico que trate a cegueira, dum povo à beira da miséria e da fome!
Tudo isto me entristece, me desgasta.
Beijinhos
Mary

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor formosa e segura,

Ao ver as reportagens do que se pagou no Pingo Doce foi justamente dos comportamentos ávidos, quase selváticos dos cegos acossados que me lembrei.

E custa-me ver a alegria das pessoas, vitoriosas, depois de terem gasto dinheiro no supermercado.

Mas tem razão, melhores dias virão. Acredito e não me canso de lutar por isso. É uma luta limitada e que, provavelmente, não obtém resultados palpáveis mas, pelo menos, dou voz à minha inquietação e desagrado.

Dias felizes para si e para os seus, Leanor!

Um Jeito Manso disse...

Mary, olá!

Gostei imenso de ler o que escreveu. Tem toda a razão, é isso mesmo. Foi uma manobra de marketing, sem dúvida que foi. Mas foi uma manobra que joga muito pensadamente com vários factores que funcionam como uma mola na cabeça de consumidores pouco esclarecidos e carentes. Num início de mês, com dinheiro nas contas, num dia feriado, e a perspectiva de levar coisas sem pagar é um poderoso estímulo e como só tinham direito ao desconto se consumissem mais de 100 euros, às tantas as pessoas quase sem pensar vão carregando o carrinho com coisas e mais coisas e mais coisas na ânsia de perfazer os 100 euros e, a partir daí, pensa-se que é à borla e vá de carregar mais. É jogar com o lado mais irracional das pessoas.

Mas, enfim, é o que é... Para as pessoas que gastaram um dinheirão foi uma vitória. Havia de ver a cara feliz daquele senhor ao meu lado no café a dizer que tinha azeite para 2 anos... estava orgulhoso do feito...! Com um ar tão humilde e com azeite para 2 anos em casa e continuou a descrever os troféus...!

Bom... o país parece que está a dar nisto.

Um beijinho, Mary!