Vagueio entre Agustina e Paula Rego. Leio textos de uma, respostas de outra. Que véus se soltaram de sobre os pudores de uma e outra para assim falarem?
As suas palavras fascinam-me. Há nelas a raiz da fala, da escrita, do pensamento. E há também a seiva original da voz, do canto, da expressão dos sonhos, do esconjuro dos medos. Não são palavras produzidas: são palavras nascidas. Palavras que nascem do corpo de duas mulheres raras e com qualquer coisa de indefinível em comum.
Percursos de vida que não se intersectaram mas em que a força do imaginário bem português sempre esteve presente.
O tempo passa. Não é mau que passe. É como um filme, nós passageiros efémeros e também efémeros espectadores. Há treze anos de diferença entre ambas: Agustina está com 94 e Paula prestes a fazer 82.
Agustina cansou-se das palavras, deixou de falar, deixou de escrever. Paula parece ausentar-se, de quando em vez, para o seu mundo povoado de histórias e medos.
E, no entanto, quando Agustina ainda gostava de provocar, as coisas que ela dizia. Parecia soltar palavras ao vento e elas que se juntassem a seu bel-prazer. Só que as palavras, elegantes, sabiam arrimar-se com estilo. E do estilo nascia o sentido. E, depois, lendo melhor, o sentido sempre lá estivera. Liberdade. Prazer. Uma vontade de sacudir o pó à prosa molestinha que os medianos produziam. Ela não. Prosa rija, desempoeirada, lavada de fresco, posta a corar ao sol, bem cheirosa, reluzente, tratada com cremes caseiros ardilosamente preparados com pólen, flores de laranjeira, verbena, jasmim, risos cristalinos cruzando os jardins, segredos desfiados em surdina nos corredores escusos, bolsinhas perfumadas, recadinhos indecorosos escondidos em envelopes de seda. E setas certeiras atiradas ao som de irrefreadas gargalhadas. Prosa gostosa a de Agustina.
Como as pinturas de Paula. Por ali habita gente oriunda de dramas camilianos, de bruxedos, de sibilas agustinianas, de sustos, e lobos uivando na noite escura, meninas matreiras, sargentos com grandes botas, mulheres-cães, avestruzes bailarinas, mulheres parindo em camas antigas, homens bebés entregues aos carinhos maternais de matronas condescendentes, anjos a fingir, cães rosninhos, saias drapeadas, luas prateadas iluminando a noite escura. E ela, Paula, inventora desbragada, rindo, riso de menina malvada, de menina perigosamente inocente.
Leio uma, leio outra. Pelo meio, olho a janela, vejo os desenhos que a luz e as sombras desenham no vidro.
Faz um calor bom. A salamandra distribui um calor suave e um perfume azinho na sala. E o sol que entra em casa sobe-me pelo corpo, sabe-me bem.
Faço um chá. Um amigo deu-me ervas suas. E eu agora preparo uma infusão. Misturo lúcia-lima e hortelã-pimenta no pequeno depósito rendilhado, mergulho-o na água fervente. Deito um pequeno pingo de mel. Fica muito bom. Agarro a caneca quente com as duas mãos, aqueço-me. E volto a Agustina. E volto a Paula. Há uma autenticidade sem véus, há uma aceitação sem amarguras, há uma sinceridade substantiva. Sinto-me bem entre gente assim.
Fotografo, então, enquanto o sol não se põe, o pequeno painel de azulejos onde fiz escrever os versos de Sophia que tenho como lamento-desejo meu:
Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!
As mulheres inteligentes e livres têm uma força que os homens -- ainda que também inteligentes e livres -- não conseguem ter. Mulheres assim não têm medo, são bravas, expõem-se sem rebuços, ousam. Os homens não, os homens raramente conseguem ser completamente livres, temem expor a sua fragilidade, temem ser alvo de chacota, temem a rejeição. Disfarçam então, mostranto-se violentos, desinteressados, superiores. As mulheres não precisam de escudos, entregam o peito às balas. Estão habituadas a abrir as pernas para que a vida por lá entre, para que a vida por lá saia, para que os médicos por lá espreitem. O seu corpo é um campo de batalha, um campo de glória, um pátio de prazeres. Habituadas a não temer a invasão das entranhas, as mulheres nada temem. Pelo menos as mulheres livres, com cabeça.
Ler ou escutar mulheres assim é uma lição, um exemplo, um prazer. Agustina e Paula, minhas companheiras de um dia no campo, in heaven.
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De novo aqui comigo
O mundo de Agustina
É assim Paula Rego
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Porque o mundo tem mais graça se às mulheres livres e inteligentes se juntarem homens também com um toque de diferença e graça, trouxe aqui David Gilmour, rapaz que já vai nos 70, com Smile.
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Porque o mundo tem mais graça se às mulheres livres e inteligentes se juntarem homens também com um toque de diferença e graça, trouxe aqui David Gilmour, rapaz que já vai nos 70, com Smile.
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E queiram prosseguir, meus Caros Leitores, para um encontro com Amadeo, no Chiado
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8 comentários:
hummm....a menina não descansa? Tenho de voltar está visto. Que não aprecio ler à pressa.
Desde que nåo sejam fufas. Para fazer uso das palavras da rainha måe de inglaterra sobre a cunhada americana, they are the lowest of the low. E sei do que falo.
They are mean, they are vicious, they are treacherous, they have bound-limits, they create havoc.
Agora publique este pedaço de homofobia. Moderado, diga-se, porque o penso ë muito pior. By the way, i am gay.
Ah, mulher mulher, no problems. O problema nåo estå no que o fufedo faz. Estä na personalidade e no modo como instrumentalizam e prejudicam os outros. No inferno há gente melhor.
Bom, bom, bom. Já aviso que ainda não tive tempo para os vídeos, mas que as suas palavras JM, talvez pela admiração que sente pelas duas senhoras - que o são -, têm um quê de exagero. É verdade que uma na arte e outra nas letras foram e são livres e grandes. Nelas afrontaram e enfrentaram. Do ser de cada uma nada se sabe, ou sabe-se o que quiseram/quiserem dizer e que pode ser se assim o entenderem, um pouco elas. Mas as palavras nunca serão a realidade. E posto isto, o livre e o mais deixemos para a obra.
Aprecio Paula Rego e os seus quadros meio dementes que apontam tanto do que durante tempo demais foi calado, apenas sussurrado ou pensado. Como se não dizer ou não mostrar fosse igual a não existir.
De Agustina, confesso, li pouco, uns dois livros apenas. Reconheço-lhe uma prosa e sobretudo a forma de pensar que a sujeita, única. E com isto não quero dizer ligeiramente diferente, ou apenas com pontuação adversa, mas muito específica. E só um pensamento de igual natureza e calibre produz prosa de tal natureza.
Caro Anónimo Proudly Gay,
Já não é a primeira vez que aqui vem para deixar esta prosa contra as lésbicas. Admito que, para estar tão traumatizado, que tenha conhecido umas mesmo pérfidas. A que eu conheço (que eu saiba, de entre as minhas relações mais próximas, apenas uma mulher o é) é simpática, boa pessoa.
Não sou capaz de classificar as pessoas em função da sua orientação sexual. Por isso, falar de 'fufedo' parece-me uma generalização absurda.
Publiqei o seu comentário homofóbico porque me dá oportunidade para lhe dizer que nem me interessa a sua orientação sexual nem me interessa a de ninguém e, muito menos, faço juízos de valor acerca da personalidade ou do carácter de alguém, em função de ser gay, não gay, ou louro ou moreno.
Finalmente: gostava de ler um comentário seu sobre qualquer assunto e sem que o tema da homossexualidade viesse à baila. Por exemplo, não quer dizer o que acha da Agustina ou da Paula Rego?
Olá bea,
Acha que exagerei, bea...? Se calhar sou como o outro, ponho tudo em tudo o que sou.
Tal como Amadeo que tão mal conhecido é, também Agustina ou Paula Rego são pouco conhecidas por cá. Ou, quem conhece de 'ouvir falar' ou, até, de conhecer mais ou menos, frequentemente olha com estranheza e não gosta.
E, no entanto, são vultos maiores. Paula Rego faz obras de uma força imensa, outras de uma ternura encantadora.
Agustina é uma força telúrica. Não gosto dos romances por aí além mas gosto imenso das crónicas, de textos soltos, do livro sobre a Vieira da Silva, do livro sobre o Camilo. São, por vezes, quase uma loucura mas tão extraordinários...!
Quanto a mim, bea, já devia saber: sou imoderada mesmo.
ao ler este seu post hoje lembrei-me de uma chafrado que dá pelo nome de pio de abreu que diz que os homens têm medo das mulheres
mulheres como as amigas dele
e que têm um Y atrofiado
eheheheheh
nem imagina a celeuma que esta entrevista já deu nas hostes femininistas nas quais me incluo poistáklaro porque o estafermo com este pensamento vem justificar a violência sobre as mulheres
e o grave grave é o que ele não terá feito nas suas consultas em momentos em que as mulheres se encontra particularmente frágeis
:)
http://www.sabado.pt/vida/detalhe/elas_nao_encontram_homens_que_lhes_despertem_a_libido.html
Caraças qualquer dia ainda começo a ler Agustina :)
Beijos
GG
GG
Fui ler a entrevista do dito Pio qualquer coisa e não a achei assim má. Até penso que tem razão em vários aspectos e não vejo é como é que ele abre portas à violência sobre as mulheres. Viu bem um dos lados. Só que a relação homens-mulheres é plurifacetada.
Tão bom. Gostava de ter sido eu a escrever.
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