Desligo-me agora das sombras que me cobrem e nas quais me acolho, eu escondida de mim e de quem acolhe as minhas palavras.
Antes que comece a semana com tudo o que me vai exigir e que tanto e cada vez mais é, refugio-me no sossego deste meu recanto, um ponto de luz num canto de uma sala escura, uma música que me envolve, longos cabelos, voz que vem de entre grutas silenciosas, e o saber-vos aí desse lado, as vossas mãos tão perigosamente perto das minhas, as nossas respirações tão uníssonas. Descanso. Guardo dentro de mim a serenidade de que vou precisar nos dias que ainda não nasceram.
Tenho tantos livros, tenho tanta necessidade de os ter junto a mim. Atraem-me cada vez as franjas, o que se situa em incertas fronteiras, o que não se define. Livros sobre nuvens, sobre sombras, sobre como se constrói a luz, sobre árvores, sobre livros, sobre insustentáveis paradoxos. Ou recordações. Ou frases que existem mesmo quando arrancadas aos seu contexto.
Vou pelas livrarias procurando o que me atraia. Geralmente não conheço os nomes dos livros ou os autores. Vejo um livro pequeno, de capa macia e escura, uma garça branca levantando voo entre hastes douradas, folheio-o -- fala do efeito da sombra na pele, fala de tecidos macios com fios de seda e ouro e eu não sei de nada do que ali se fala mas fala-se com palavras simples -- e eu logo fico com vontade de me deixar estar sentada debaixo de uma janela que me traga a luz do céu e eu ali a ler sobre um mundo de que nunca se fala.
Penso em quem sei que me lê e que sei bem que são sabedores, sábios talvez, muito mais sabedores que eu, muito melhor informados que eu. Quantas vezes sorrirão com complacência, tanto o desconhecimento que em mim vêem. Sei disso mas por aqui persisto, as palavras deslizando-me dos dedos, flores do campo, sem tratamento ou cuidados, expostas aos ventos, aos sequeiros, às imparáveis chuvas. Insignificantes as minhas palavras. Qualquer um que passe distraído as pisará sem que ninguém mais dê pela sua falta. Mas persisto, sobretudo pelo prazer de ver como brotam, sozinhas.
Estive a ver uma lista dos melhores livros de sempre -- estudo cruzado, listas de listas, intersecções de gostos. Para quem diz que gosta tanto de ler e que tem uma necessidade física de se rodear de livros, talvez estes devessem ser a base, o alicerce, o torreão. Vejo a lista e sinto até uma certa pena de mim. Uma tola que não leu as obras primas nem tem vontade de as ler e que, cada vez mais, se sente atraída pelo que nenhuma lista quer, escritas marginais, choros até, impropérios, desaforos, carinhos mal dirigidos, apontamentos, fiapos de frases.
Mais pena ainda porque de alguns penso que li mas não tenho ideia precisa, não sei se li até ao fim, não sei se gostei, parece que nada ficou dentro de mim. Tenho vontade de fazer a minha própria lista. Mas não sou de listas, não gosto de pedestais, não quero deixar de fora, por esquecimento meu, alguns fundamentais.
Mas conto-vos quais os primeiros dos melhores cem:
Li mas acho que não todo, li em busca da maestria, a gula da grande literatura, correndo como aquele que, sequioso, procura a corrente de água, a fonte, a cascata. E sempre que as palavras se acalmavam, saltava eu por cima delas em busca de outras que me levassem em alegre corcel por montes e vales.
2 — Guerra e Paz, Liev Tolstói, 1869
Terei lido todo? terei saltado capítulos? Não me lembro.
3 — A Montanha Mágica, Thomas Mann, 1924
Li, deslumbrada. Li como se entrasse num monumento extraordinário. Li e ainda me lembro.
4 — Ulisses, James Joyce, 1922
Não li. Não vou ler. Não me atrai.
5 — Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez, 1967
Li. Li com sorrisos, com emoções, com garridice, com ternura, com agrado. Uma prosa alegre, quente. Mas gostei mais de O amor nos tempos de cólera. Prazer puro.
6 — A Divina Comédia, Dante Alighieri, 1321
Não li, não vou ler. Mas gosto de ouvir trechos. Gosto de ler pequenos excertos. Gosto de pensar que o que vou colhendo em pequenos ramos me dará o conhecimento da vasta floresta.
7 — Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust, 1913
Li alguns volumes, não sei quais, não sei se os que li, li do princípio ao fim. Talvez. Tenho ideia de que gostei mas que não me empolgaram, como se fosse uma planura desapaixonada. Talvez esteja enganada.
8 — O Som e a Fúria, William Faulkner, 1929
Li. Lembro-me da emoção. A energia das palavras vibrava em mim. Estava agora para me levantar para reler algumas páginas, para confirmar, mas não me apeteceu. Acho que não vibraria da mesma forma, prefiro que fique assim.
9 — O Homem sem Qualidades, Robert Musil, 1930-1943
Acho que li e que deixava a meio, que retomava e parava. Não sei se li todo. Talvez tenha lido. Também não me apeteceu ir confirmar.
10 — O Processo, Franz Kafka, 1925
Li com inquietação. Ainda hoje coisas assim me assustam. O indefinido receio, as invisíveis ameaças, o mal difuso e burocrático que não se pode combater.
Transcrevo alguns excertos do artigo da Revista Bula onde pode ser vista a lista dos cem livros.
Para se chegar ao resultado fizemos uma compilação de 15 listas publicadas por jornais, revistas e sites especializados em listas, mercado editorial e livros. (...)
Participaram do levantamento as publicações: “The New York Times”, “Amazon”, “Le Monde”, “The New York Public Library”, “BBC”, “The Guardian”, “Modern Library”, “Time”, “Newsweek”, “Telegraph”, “Lists Of Bests”, “Wikipedia”, “Folha de S. Paulo”, “Revista Época”, “Revista Bravo”.
Obviamente que listas são sempre incompletas, idiossincráticas. (...)
O resultado não pretende ser abrangente ou definitivo, antes é apenas um reflexo da paixão de leitores e críticos que ajudaram a construir, com suas opiniões, um vasto guia literário que percorre mais de 2 mil anos de história.
Nesta lista de cem livros procurei alguns dos que me ajudaram a fazer-me aquilo que hoje sou. Alguns encontrei, outros não. A maior parte não. Fico a pensar se me terão impressionado tanto, na altura, porque eu ainda não tinha vivido o suficiente ou se será que eu, desde cedo, me movi preferencialmente nas margens do que não é consensual.
Agora tenho aqui para ler, vai ser o próximo, um belo livro, pequeno, estreito, comprido, uma capa mesmo bonita com pintura de autoria de Luís Alves da Costa que também o prefacia. Chama-se Gilgamesh e é a versão de Pedro Tamen do texto inglês de N.K. Sandars. Já comecei a petiscar nele e já estou a antecipar o prazer da descoberta de um outro mundo. A estranheza atrai-me tanto.
Mas não conheço os gregos, lamento, e não li a bíblia -- da bíblia só o cântico dos cânticos, e só o que leio quando abro ao acaso (e me traz respostas, sem que eu saiba quais as perguntas) -- se calhar não li os grandes clássicos e, por isso, o que sei assenta sobre fracos pilares. Mas penso que talvez isso me fizesse falta se eu quisesse ser um monumento de sabedoria ou um poço de erudição. Mas eu não quero. Eu quero ser uma rudimentar palafita, uma cabana no bosque, um ninho no seio de uma árvore grande como aquela onde hoje me sentei, uma árvore imensa, grande como uma casa de uma família feliz, maternal, acolhedora. Quero ser apenas eu, inocente no acto de quase nada saber, feliz na minha ignorância inofensiva, sempre pronta para aprender e para me apaixonar. Poderia apaixonar-me tanto, com tanta entrega, se soubesse muito, se já tivesse lido tudo o que importa e me recordasse ainda de tudo, dos clássicos, das obras fundadoras?
Temo que não.
Por isso, vou continuando assim, rodeada de livros, livros que alguém um dia escreveu e que eu, carente de exotismos e singelezas, acarinho com desvelo, passando as mãos pelas palavras, como que querendo guardá-las no meu coração antes que a cabeça se aproprie delas, querendo delas o prazer mais puro, o prazer inicial, o prazer feito de liberdade.
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O prazer segundo Kahlil Gibran
in O Profeta
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Lá em cima, Loreena McKennit interpreta Dante's Prayer.
As fotografias são da série Beauty de Francis Giacobetti.
Desconheço a autoria da última ilustração.
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E queiram, por favor, descer até ao Elogio da Sombra
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5 comentários:
Olá UJM, já li muitos livros extraordinários mas não sei quantos! Quando me perguntam algo sobre um livro que já li há três coisas que normalmente não sei: o nome do livro, o nome do autor e a metáfora! Ficam-me os personagens, as histórias e os sentimentos de cada um deles. O resto, perdoem-me, mas não me interessa. Leio para mergulhar não para analisar. Boa noite. Rita
Olá Rita!
Então já somos duas.
Volta e meia vejo-me no meio de sabichões que elencam, de uma assentada, livros, autores, citações, e, de forma doutoral, falam como se quem não estivesse ao corrente de tudo aquilo, mais valesse nem ter nascido. E eu penso que se quisesse ombrear e dizer alguma coisa, não me lembraria de nada.
Fica-me impresso nas células e as células não sabem falar em culturês, deve ser isso.
Bjs, Rita-boa-Onda!
Minha cara, se não leu os gregos nem sequer os três grandes tragediógrafos nunca entederá com profundidade as ideias e o fundo dos fundamentos daquilo que já leu até joje.
Olá José Neves,
Já viu? Eu a pensar que ando a perceber alguma coisa e afinal... Mas acho que não leu bem o que eu escrevi: é que eu não quero mesmo entender as coisas com profundidade. Qual fundo dos fundamentos...? Ná. Isso não é para mim. Não viu a imagem que escolhi para acabar o texto? Flutuações, borboletas, coisas assim.
Mas vou fazer uma confissão. Sabe...? é que eu até gostava de não perder pitada dos gregos mas teria que os ler em tradução e tenho cá para mim que só lendo os livros na língua nativa é que chego lá ao fundo do fundilho.
E, mesmo assim, não sei se chegaria. Ponho-me a pensar e acho que bom, bom mesmo, era lê-los na língua nativa mas lá, na terra onde a coisa foi escrita. Isso é que era mesmo! Pelos poros adentro!
E, pensando melhor, acho que ainda assim não seria suficiente: bom, mas bom mesmo, era fazer uma regressão temporal, recuar no tempo, ver-me lá, respirar o ar do tempo de então.
Mas, com tanta exigência, acabo cansada ainda antes de enveredar por tão exigente caminho. Eu almejo a perfeição do conhecimento mas... como? Como José neves? Não me diz?
Viva UJM!
Li alguns gregos que, como entretenimento, são de bradar aos céus. Choradeira e gritos. A Antígona aos berros, o Edipo a estrabuchar. Acho que vale sobretudo pela História.
JV
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