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Neste Actual do Expresso pelo menos o Pedro Mexia e a Ana Cristina Leonardo estiveram para aí virados nas suas crónicas hebdomadárias (palavra mais engraçada esta: hebdomadária).
Diz Pedro Mexia que, chegados ao fim do ano, toda a gente faz ou comenta listas. Mas depois diz uma coisa que me tira logo o tapete para o que eu me preparo para dizer. Diz ele do alto da sua sapiência: Os espíritos sofisticados detestam listas, acham-nas hierarquizantes, conformistas, mercantis. E depois, num assomo de auto-indulgência (e lá está: mais um fishing for compliments) diz que as defende sempre e continua o texto arranjando uma claque do caraças: Homero, Proust, Umberto Eco, Barthes, etc, etc, e até aos autores da Bíblia ele vai buscar apoiantes.
À Ana Cristina Leonardo parece que deu uma coisinha má e faz uma lista de efemérides, uma para cada dia do mês de Dezembro até ao dia 25 em que, com graça, acaba com uma interrogação, uma data por confirmar, a do nascimento do Menino Jesus.
Agora ligo o computador e percorro a galeria lateral e vejo a Joana Lopes a invocar as listas de efemérides para chegar à Liv Ullmann.
E há as listas dos livros bons para oferecer, a lista das músicas que têm que se ouvir, os livros de que jamais se deverá esquecer, as listas de recados, as listas de palavras.
E logo eu que acho que nunca fiz uma lista na vida.
Sou atípica, eu sei: não faço anotações nos livros, não tomo apontamentos, não faço listas, não guardo nem nunca guardei bilhetes de cinemas, de museus, de comboios, bilhetinhos de amor, nada, nada, nada.
Acho que já o confessei. Vou para as reuniões de mãozinhas a abanar. Chego lá e vai tudo com valises cheias de dossiers, pastas com pastas dentro, iPads, portáteis, tudo. E eu como se fosse fazer turismo.
Sentam-se à volta da mesa, cada um puxa do seu arsenal - e eu nada.
Depois escrevem, escrevem, e eu nada. Por vezes lá há um ou outro assunto que me parece merecer registo. Então pego numa folha A4 daquelas que há em cada lugar e escrevo um ou outro tópico, não mais que uma meia dúzia de palavras por junto. A maior parte das vezes quando a reunião chega ao fim dobro e rasgo discretamente e fica ali mesmo. Outras vezes, raras, raras, dobro bem, meto na carteira. Quando chego ao gabinete faço um ou outro telefonema ou um ou outro mail, o assunto é esclarecido ou posto em marcha e a folhinha rasgada.
Atrás de mim tenho armários fechados até ao tecto. Praticamente vazios. Já mudei de empresa e de local de trabalho várias vezes. Ao princípio, quando me mudava, enchia vários caixotes. Havia trabalhos de que achava que não me devia separar até ao resto da minha vida (trabalhos no âmbito de uma linha de apoio do Banco Mundial, reestruturações de envergadura, relatórios Mckinsey ou Boston Consulting Group ou outros relativamente a projectos complexos em que participei, etc, etc). Aos poucos fui achando que tudo aquilo era datado, irrelevante e fui deixando para trás. Os meus caixotes foram-se reduzindo. A última vez trouxe apenas dois mal cheios e quase tudo coisas pessoais, uma pedra que apanhei na praia, um bocado do tronco de uma árvore, uma caixa metálica com o Fernando Pessoa, um bonequinho com um grande coração nas mãos, uma caixa com canetas (que nunca uso), umas meias de reserva, coisas assim.
Aqui em casa é a mesma coisa.
Listas? Zero.
Detalho. Listas de presentes? Zero. Listas de compras para a casa? Zero. Listas de tarefas para cumprir? Zero. Listas de ideias para pôr em prática? Zero. Lista de palavrinhas? Zero.
A única coisa que me interessa é o que me ocorre no momento. Apontamentos ou listas são para mim sempre coisa do passado e do passado só me interessa o que me fica de cabeça, o que a minha memória possa temperar livremente.
Mas vá lá. Já que toda a gente anda numa de listas, não vá haver por aí algum picuinhas que ainda ache que estou a fingir que tenho um espírito sofisticado, vou fazer, por uma vez, uma tentativa.
Lista de palavras: suculenta, sibilina, esfínge, palaciano, intravenosa, oscilante, dormente, arrojada, truculento, desnudada, artemes, artemísia, diana a caçadora, brincos de princesa, brocado, macio como a carne de um diospiro, bagos de romã, grevílea robusta, musgo macio como uma fresca penugem, gruta, silêncio, falacioso.
Não tem graça. Vou parar. Não dá, isto não é para mim. Serve para quê? Para daqui por uns anos olhar para estas palavras como flores secas cheias de pó?
Que as pessoas normais as façam. Eu desisto. Não sou normal - e não, não estou fishing for compliments porque estou bem assim, aqui sentadinha a assistir às listas e às conversas das pessoas normais. Eu sou mais dada a ouvir e imaginar blackbirds, a inventar manchas ocasionais de cor, impressões passageiras - e sempre disponível para o que der e vier, sem laços, livre de listas ou outras amarras.
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As pinturas são de Joan Snyder. A fotografia é de Franco Fontana.
A canção é Blackbird e aqui é interpretada por Sarah McLachlan
5 comentários:
Olá UJM
Gostei muito das pinturas de de Joan Snyder de que nunca tinha ouvido falar e do seu desabafo anti- lístico e anti guarda papeis , como sempre muito bem desabafado!!!
Um abraço
eu não quero ser desmancha prazer, mas esta última foto com o "bicharoco" em grande plano, pode-lhe dar problemas, é que não sei se reparou mas está a usar o "Bloguer" que é de uma empresa (Google) de gente temente a Deus, e virgens puritanas.Digo isto porque o facebook fechou a conta do blogue " edeuscriouamulher", pelos vistos pode-se pôr filmes de torturas e outras merdas, mas mamas e bichos é que não-)))
Olá Joaquim,
Imagine que eu também não a conhecia. Há uma teoria que diz que, quando se desconhece em absoluto um assunto, até à sexta iteração geralmente encontra-se.
Começo a crer que assim é. Procurei 'listas' sem saber bem o que queria ter aqui (apenas sabia que não queria imagens óbvias) e, de procura em procura, dei com estas pinturas que me encantaram e com esta pintora que, afinal, até é uma pintora reconhecida.
Um abraço!
Olá Anónimo!
Mas eu, como já deve ter percebido, não sou convencional, moralista, puritana (nem virgem, imagine: sou caranguejo).
Por isso, enquanto não me vierem atar as mãos, continuarei a escrever e a postar o que, a cada momento, me der na veneta.
Achei a fotografia muito bonita e na mesma linha cromática e estética das pinturas assim. E achei que ilustrava bem o texto na qual se insere.
Além disso, acho que não há nada de mais natural do que o corpo humano. Não vejo que faça sentido escondê-lo como se fosse coisa vergonhosa.
eu só a favor de que só o que é bonito é para se ver, o resto pode estar escondido-)))
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