segunda-feira, dezembro 17, 2012

Em dia de chuva in heaven, a ficção mistura-se com a realidade. Recordações e despedidas de uma mulher muito bela a quem a vida conduziu à solidão





Choveu hoje, todo o dia a chuva caíu, branda, regular. A casa está fria, húmida. Lá fora tudo molhado, as árvores escorrendo, o musgo subindo pelas paredes. 

Aborrece-me cozinhar apenas para mim. Faço uma sopa que me dá para uma semana, asso um frango que dá para uma semana, como saladas, iogurtes, queijos, frutas. Só não me alimento apenas de fruta, chá, frutos secos, porque acho que isso me poderia trazer problemas e não teria paciência para os resolver.

Peguei na máquina fotográfica, saí. Ninguém na rua. O tempo está para se ficar em casa à lareira, não para andar por aí, à chuva, ao frio. Só por saber que não encontraria ninguém é que saí. Custa-me suportar o olhar das pessoas, as conversas tontas, as vacuidades de quem fala por falar. 

Saí, uma capa cobrindo-me toda, uma sombra também eu, um fantasma deslizando nas sombras. Fui fotografando sabendo que nem vou olhar para as fotografias, fotografo sem objectivo, apenas por necessidade. Ninguém verá as minhas fotografias. Fotografo banalidades, coisas de nada.




Uma rocha coberta de água, uma hera trepando, uns ramos cobertos de pequenas bagas. Fotografo. Depois passo a mão pela pedra fria, molhada. Quero sentir aquilo que vejo, quero aproximar-me daquilo que me convoca.

Depois fotografo umas folhas molhadas, umas folhas de uma cor belíssima mas que, apesar de serem tão belas, em breve estarão desfeitas.




Emociono-me perante estas folhas caídas. Tempos antes fotografei-as na árvore, estavam verdes e viçosas. Agora aqui estão, inertes, belas mas perecíveis. É tão efémera a beleza. E a vida.

Passo por um muro onde sempre gosto de me deter. No verão a parede está branca e as sombras das árvores reflectem-se nele, enchendo-o de vida e de calor.




Agora está frio, a chuva entristece este muro e o painel de azulejos já não parece desafiador como no verão. Agora parece triste, desolado. Les + grands secrets se cachent dans la lumière. Assim foi toda a minha vida: os segredos escondidos pela luz, visíveis. 




O pinheiro parecia coberto de luzes. Talvez seja a forma que encontrou para me lembrar que é quase natal. Ignoro o natal. É um dia como os outros. Um dia de frio e solidão.

Depois voltei para casa. Apeteceu-me pintar. Há tanto tempo que não pintava. Peguei numa tela pequena, depois nas tintas, algumas já estavam secas. 

Um vestígio da antiga emoção, a tela branca sugando as cores que ainda resistem dentro de mim.

Quando pinto sou livre. Não tenho objectivos, não tenho motivos, não tenho restrições. Faço movimentos que não controlo, não vigio, não tento, sequer, interpretar. Não quero que pareça nada, não quero nada.  Sem pensar escolho uma tinta, depois um pincel, depois a minha mão movimenta-se sobre a tela como se dançasse, depois outra tinta, e a dança continua. 




Ninguém me perguntará o que é mas, se o fizesse, eu não poderia responder. Em tempos pintei flores, mulheres, bailados, cidades. Depois, aos poucos, fui conseguindo desfazer-me da realidade, fui conseguindo encontrar a abstracção, a intangível abstracção.

De resto, é assim que vivo, no limiar da abstracção, da intangibilidade.

Alimento-me de recordações.

Há pouco, cavalete, tela, pincéis e tintas arrumados, sentei-me com uma manta sobre os joelhos, peguei num livro. O livro do chá de Kakuzo Okakura. Ultimamente só consigo ler livros assim. O autor é japonês, nascido em 1862. Leio as suas palavras como bebo um chá cuidadosamente preparado,

Por que não destruir flores, se com isso podemos desenvolver novas formas que enobrecem a ideia do mundo? Só lhes pedimos que nos acompanhem no sacrifício ao que é belo. Havemos de expiar o feito consagrando-nos à pureza e à simplicidade. Assim raciocinaram os mestres-do-chá quando estabeleceram o culto-das-flores.

E por estes caminhos feitos de palavras delicadas vou prosseguindo a leitura. Depois volto às minhas recordações. 

Lembro o dia em que soube que o velho senhor que tinha sido o meu companheiro de tanto tempo adoeceu. A minha aflição. A minha vontade de ir ao hospital. Mas, claro, no hospital estaria a família e eu não era da família. A bem da verdade, eu não era nada, não existia. Nem podia manifestar a minha ansiedade para não levantar suspeitas. Toda a minha vida foi assim, viver na sombra. Ninguém desconfiar. Uma vida construída em torno deste propósito: ninguém desconfiar. Disfarçar sentimentos, ansiedades, angústias, alegrias.

Tanta vontade de lhe ir dizer que o queria de volta, que resistisse, que não se fosse embora, que me sentia tão sozinha sem ele, que lhe seria eternamente grata por tudo o que tinha feito por mim. Tanta vontade, sobretudo, de lhe dizer que o perdoava por me ter impedido de ter o nosso bebé. Mas não fui. Nunca fui. Nunca soube da minha aflição.

Voltou para casa, debilitado, dependente, com uma enfermeira ao lado. A família por perto. Nunca consegui coragem sequer para lhe telefonar. Uns tempos depois morreu. Chorei, chorei mas em casa, ou quando estava sozinha, ou quando ninguém me via. Como explicaria o meu choro perante quem não sabia de nada? Queria ir despedir-me dele, ir à igreja. Mas não fui. Não suportaria fingir. Não ali, não nessa última vez.

O vazio que fica ninguém consegue imaginar. Nem despedir-me condignamente eu pude, nem chorar me foi permitido.

Dirão que ninguém me impedia. Não sabem o que é viver uma vida paralela, na sombra, uma vida de disfarce, escondida. É uma coisa que toma conta de nós. Se fosse ao enterro e chorasse como uma viúva , como explicaria isso a quem me perguntasse? Diria, ele era o meu homem? Quem me acreditaria? Diriam que era louca. Ou rejeitar-me-iam para sempre. Ah, o medo da rejeição, o medo da censura, o medo sempre tão presente.




Mas, no dia em que o seu corpo arrefecia numa igreja pejada de gente, ao fim do dia, quando a noite começava a cair, ganhei coragem para me aproximar e passei por fora, encostei-me à parede exterior num dos lados da igreja, e ali fiquei sozinha, agradecendo-lhe, desejando-lhe que descansasse em paz. Pensava que ele iria para junto da nossa filha e isso tranquilizava-me pois tinha, e tantas vezes ainda tenho, um pesadelo recorrente, a minha menina sozinha, nua, com frio, perdida nas ruas escuras de uma cidade deserta.

Apesar de separados, era ele que ainda me pagava o condomínio que era muito elevado. Diriam, se o soubessem, que eu aceitava ser comprada, que com a casa, os bons móveis, o carro (sim, porque ele também me tinha oferecido um carro, cujos custos suportava), ele estava a pagar-me. Que erro... Pagar o quê, se eu tão pouco lhe dava? Ele dizia que me amava pela minha juventude, pela minha beleza, pela minha alegria. Mas eu é que tinha razões para estar grata pois os seus conhecimentos, a sua sabedoria, a sua cultura, o seu humor, o seu amor viril, faziam sentir-me uma mulher grata e realizada. Eu é que tinha razões para lhe pagar, tivesse eu como. Era ele que fazia questão de me oferecer tudo aquilo mas fazia-o dizendo eu sou velho, qualquer dia parto e quero que tu fiques bem, aceita, por favor, aceita se me queres bem. A mim nada me custa e, para ti, vai ser importante no futuro.

Quando morreu, fiquei com uma casa grande de mais, um condomínio caro de mais, um carro caro de mais. Durante uns anos, lutei para os manter, pela sua recordação. Não queria desfazer-me do que ele me tinha dado com tanta preocupação pelo meu futuro mas, suportar aquelas despesas, era-me, então, muito difícil. 

Nunca dizia a ninguém onde vivia. Como explicaria um luxo daqueles? Um ordenado como o que eu tinha jamais daria para uma casa daquelas. No entanto, aquele que o meu coração mais amou e de quem já vos falei foi lá muitas vezes. Quando lá entrou, não queria acreditar. Expliquei-lhe que era uma herança de uma tia. Não sei se acreditou mas riu-se, uma gargalhada das suas, isso é que são tias...!

Depois, mais tarde, quando me cansei de tudo, desfiz-me da casa e do recheio. Mudei-me para um apartamento pequeno, um apartamento de acordo com o que eu podia pagar. Depositei o dinheiro da venda do outro e ainda lá está, nunca mais lhe toquei e acho que nunca vou tocar. 

Quantos amores tive depois dele? Amor a sério só um. Mas tive mais uns romances. Talvez vos conte. Mas foram irrelevantes. Em todos procurei o verdadeiro amor, em todos procurei o amor para toda a vida, uma companhia. Nunca consegui. Por isso, aqui estou, sozinha, uma manta sobre os joelhos, a falar para ninguém.


*

Este texto continua a história que venho contando nos últimos dias e à qual ainda não dei nome, porque ainda não percebi onde é que isto vai parar.

A música é Un bel di vedremo da ópera Madama Butterfly de Puccini, aqui interpretada por Maria Callas.

As fotografias são minhas e foram feitas in heaven. A última é a excepção: é de Catherine Deneuve e não sei por quem foi feita.

*

Permitam ainda que vos convide a permanecerem um pouco mais na minha companhia. No meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, ao som de Elger, as minhas palavras distanciam-se daquele que me ama, ao lado das palavras de Eugénio de Andrade.

*

E, por hoje, já chega, não é?
Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda feira. Divirtam-se, está bem?

10 comentários:

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM

"Fotografo banalidades, coisas de nada"

As banalidades, coisas de nada, transformam-se em coisas de muito , porque "construídas por si para levar aos outros o que é o resultado da sua sensibilidade que gostamos de ver! Fotografar e pintar poderão ser para si a mesma coisa! Descobrir ,construir reflectir-se na escolha de uma construção estética, fruto da sua forma de ver realidade. Continue e obrigado!

Gostei da forma como "deu a volta" ao seu texto (conto, relato???). Equilibrou e enriqueceu a narrativa! Gostei ...e muito

um abraço

A Matéria dos Livros disse...

São belíssimas as suas fotografias! Belas e melancólicas, como a história que vai desfiando.

Tenho acompanhado a narrativa e os comentários que os leitores vão deixando. Pensamos muito na dicotomia "uma/outra", "esposa/outra". Pergunto-me o que significam e se a vida pode ser reduzida a categorias tão claras. O modelo do casal é assim tão forte, que não consigamos pensar fora desses limites? Os velhos papéis feudais/patriarcais, que oferecem às mulheres apenas o lugar de esposas, adúlteras, mulheres castas, todos definidos em função do homem, continuam assim tão presentes?

O que procuram estas mulheres e estes homens? Uma vida mais confortável? Sexo? A possibilidade de ter uma vida acompanhada, de casal? A fuga ao presente insatisfatório e a busca de um futuro "feliz"?

No outro dia, no serviço fúnebre de uma pessoa de família, o diácono chamava a atenção para o nosso desejo de sermos felizes, que, por vezes, não nos deixava ver um desejo mais profundo, que era o de sermos salvos.

Será, então, a salvação o que todos procuramos? Uma sensibilidade trágica diria que, sendo assim, só um milagre, para não dizer outra coisa. Eu diria, cristãmente, que, se conseguíssemos libertar-nos do futuro e nos concentrássemos em amarmos os outros, viveríamos melhor. (Mas também não nos devemos esquecer de nos valorizarmos...)

Talvez se cultivássemos a alegria, como faz em tantos dos textos que partilha connosco...

Fico por aqui, na minha melancolia, que o dever me chama.

Um beijinho

Anónimo disse...

Sigo, como sempre, com interesse esta sua última história.
E gostei da menção anterior a Ovídio, que acabou tão maltratado por Octávio Augusto (que já tinha tido para com sua filha, Júlia – esta sim, mulher que desfrutou a vida como poucas na sua época -, idêntica decisão), acabando no exílio.
No fundo, um texto, esta sua história, que aborda uma série de “pequenos grandes dramas” da nossa cínica Sociedade. Na pele de persongens. O que empresta mais força a esses dramas. Interessantíssimo!
Cá fico a aguardar pelo final.
Tenho uma amiga que sabendo muito bem das infidelidades do marido, tipo bem parecido, 50 e poucos, bem colocado na vida, CEO de uma multanacional, a viver no estrangeiro, se recusou a aceitar o divórcio, pedido por ele e lhe propõs que se mantivesse no estrangeiro, vivendo as suas infidelidades, mas que mantivesse o casamento e sempre que estivesse em Portugal, se comportassem como um casal normal, “e assim não se quebrava a estrutura familiar”! Não foi bem sucedida e o divórcio acabou por suceder. E foram 2 anos e tal de ódio terrível, de rancor, contra o ex-marido (que entretanto a veio a trocar por uma das mulheres com quem a atraiçoava, bastante mais nova, estrangeira e sua colaboradora na multinacional onde era CEO).
Acalmou, passado um bom tempo. Quando lhe pergunto o porquê daquela sua atitude, ainda por cima sendo uma mulher inteligente, culta, com formação, bem na vida, ainda interessante (recentemente até teve uma proposta curiosíssima, de um homem um pouco mais novo, que não aceitou), responde-me que achou que era a atitude correcta. E que ainda hoje pensa assim. Enfim!
Ocorreu-me esta história verídica, mas desculpe-me e continue esta sua que a estou a seguir, como disse, com muito interesse.
P.Rufino

Maria disse...

Gosto.....da autora. Não gosto das personagens. Mas por favor....continue.

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim Castilho,

Leio o que transcreveu e reconheço-me mesmo nas minhas próprias palavras. Não procuro motivos especiais, não enceno situações, sou incapaz de fazer daquelas fotografias em que os retratados dizem cheeeese para ficarem de boca aberta a fazer de conta que se estão a rir.

O que me desperta a tenção são coisas assim, folhas, pedras, frutas, o sol no meio das árvores, um muro, uma gaivota, o olhar de um gato.

É como pintar. Cansei-me de tentar fazer reproduções da realidade. Agora quando pinto é pelo prazer puro e abstracto de pintar e só gosto de pintar o que não existe.

Quanto à história eu não premedito, não planifico, não penso. Limito-me a escrever.

Hoje estou cheia de vontade de o fazer mas não sei o que escreveria, se escrevesse.

Mas se calhar não vou ter tempo. Estive a escrever sobre Passos Coelho e companhia limitada e escrevi mais do que pensava. além disso, quando escrevo sobre este sujeito, fico mal disposta.

E ainda queria ir até ao meu Ginjal. E ainda estou nos comentários e já é meia noite. Ai...! As noites deviam ter mais 3 ou 4 horas...!

Um abraço!

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora de A Matéria dos Livros,

O que escreve faz-me sempre pensar. As suas análises são a um tempo racionais e, a outro, subversivas.

Acabo de a ler e fico sempre com vontade de ir a correr escrever mais, incorporando no texto resposta às questões que suscita.

Como expliquei acima, hoje é quase impossível eu ter tempo para o fazer mas talvez amanhã o consiga.

Percebo o que diz e dou-lhe razão. Uma mulher é um ser de corpo inteiro, muito mais do que a uma ou a outra, como diz.

Uma mulher não deve viver em função do marido, do amante. A sua identidade pode incorporar isso mas deve ir muito para além disso.

Mas a verdade é que a sociedade molda de tal forma a mentalidade feminina que uma mulher que seja 'a amante' quase inevitavelmente centra nisso a sua vida. Identicamente no que se refere à 'esposa'. Há mulheres que colocam aí toda a sua existência - geralmente são infelizes.

A mulher deve ter orgulho em si própria independentemente do seu estado civil ou do seu estado amoroso. Deve ser feliz, deve construir a sua felicidade, deve ter confiança, deve ter objectivos próprios. O resto virá por acréscimo.

Obrigada pelo que escreveu. Palavras inteligentes e lúcidas, como sempre.

De resto: espero que as melancolias sejam mais literárias do que vividas. E espero que o dever seja uma chama que se mantenha acesa (apesar das burocracias) e lhe traga algumas alegrias.

Um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Sempre com um apontamento cultural e com um episódio que vai enriquecendo a nossa vivência (porque descreve tão bem as situações que quase parece que nós próprios estamos a acompanhá-las).

Eu tive uma colega (é o que dá trabalhar em empresas grandes: temos colegas para todos os gostos) a quem o marido deixou para viver com outra mulher. Pois bem, apesar disso essa minha colega nunca o reconheceu. Não concordou com o divórcio e, perante os colegas, fingia que ainda era casada.

Uma das cenas mais tristes a que assisti até hoje foi no velório do marido que, coitado, morreu passados alguns anos. Numa das grandes igrejas de Lisboa, à frente, no banco em frente do altar, ela e os filhos e o padre a dirigir-se a ela como a pesarosa viúva. No final, quase toda a gente do lado dela, a foi cumprimentar, cumprimentos que ela aceitou como se fosse a viúva.

Mas a grande maioria eram pessoas do lado dele que foram consolar 'a outra', que chorava desconsolada e infeliz e que, de facto, era a viúva.

Uma coisa estranhíssima, o que se passou naquela igreja.

Vá lá a gente perceber coisas assim, não é?

E obrigada pelas suas palavras, sempre tão gostosas de ler!

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Fez-me rir. Percebo-a.

Mas eu sou como uma mãe para as minhas personagens... gosto de todas...

Ainda um dia vou ver se consigo inventar um vilão para ver se consigo odiá-lo.

Um abraço, Mary! Já sentia falta das suas observações. Venham mais, está bem?

Isabel disse...

Adorei as fotos lindíssimas.
Adoro ouvir a Maria Callas.

Um beijinho

jrd disse...

Realidade(sempre)dolorosa: Ser a numero dois enquanto há "vida" e deixar de ser seja que número for, depois da "vida" acabar.

Abraço