quarta-feira, agosto 04, 2021

Dia de ida ao médico

 



Há dias em que tudo converge: todas as reuniões parece que têm que ser naquele dia, todas as urgências parecem inadiáveis. E calha no dia em que há consulta, também ela inadiável. E a campainha a tocar quando se está em reunião, telefonemas a chegarem quando se está ao telefone. Podem dizer que isto dos astros é treta mas, se isto não é um alinhamento astral destrambelhado, não sei o que seja.

Foi esta terça-feira. Hoje era dia de ir mostrar análises e um dos exames mas parece que não havia mais coisas para tentar encaixar. Um stress que tentei gerir sem me stressar.

No médico, nada de muito especial mas, ainda assim, necessidade de continuar e complementar a medicação e prescrição de novo e algo sofisticado exame, daqui por uns seis meses, para validar como estão as coisas e observar mais em pormenor o fluxo sanguíneo, em especial em determinadas condições. Ainda se tenta perceber o que me aconteceu e causou as sequelas que subsistem. Melhor: não propriamente a causa, que essa pode ter sido qualquer uma, mas, mais, tentar perceber os riscos de que volte a acontecer algum acidente ou se as sequelas são apenas as já identificadas ou se há outras.

Gosto do médico. É sóbrio, atento. 

Lê o relatório, vê as imagens, volta a ver e pergunta-me: 'Como se sente?'. Respondo: 'Bem'. Ele olha para mim com atenção. Faz-me impressão que me olhem assim quando tenho a cara quase toda coberta. Tenho vontade de tirar a máscara para que veja que não estou a mentir. Insiste: 'Não sente cansaço? Falta de ar?'. E olha-me. Confirmo: 'Não, não sinto nada.' Depois rectifico: 'Sinto-me normal'. Ele continua a olhar-me. Por momentos duvido de mim. Serei tão optimista que nem percebo que não estou bem...?. Mas não corrijo a resposta. Ele diz: 'Ainda bem'. Mas depois, volta ao mesmo: 'Não tem sentido dores no peito, tonturas, falta de fôlego?. Confirmo de novo: 'Nada. Normal'.

Explica-me e comenta os resultados do exame. Ouço com atenção. Por sua iniciativa, responde à pergunta que eu poderia ter feito: 'No limite o que poderá acontecer-lhe é...' e diz o que é. Não digo nada mas penso e ele, de novo adivinhando-me o pensamento, acrescenta: 'Mas, face ao seu estado actual, diria que é pouco provável que isso aconteça'. Não comento mas penso que também acredito que é pouco provável. 

Depois levanta-se, coloca-me a pinça no dedo e lê o valor no monitor. Então comunica-me, como se a tranquilizar-me: 'O oxigénio está bom'. Já no outro dia aconteceu o mesmo. Fico intrigada. Será que pensa que isso me preocupava? Melhor: será que isso é coisa com que deva preocupar-me? Não percebo. Mas, como ando numa de não querer saber tudo, não pergunto. Mas porque haveria de estar com o oxigénio baixo? Depois passa para a tensão. 'Está boa', diz-me. Ausculta-me. Como não diz nada, agora pergunto. Ele diz: 'Está bem'. Depois vê-me a pulsações nas pernas, um pouco acima do tornozelo. Diz: 'Também está bem'. Nunca tal me tinha acontecido, verem-me a pulsação na perna. Estive para perguntar mas logo me desinteressei. Se calhar acha os meus pulsos pouco credíveis.

Por fim, pergunto se há cuidados que deva ter. Detesto 'cuidados a ter' mas, apesar disso, acho que devo saber. 

No domingo estivemos in heaven e, na sequência das pinturas, a casa estava virada do avesso, tudo cheio de pó. Com a porta aberta e gente a entrar e sair durante uns dois meses (dois meses intermitentes pois acho que foram mais os dias em que não iam do que os que iam), deixaram a casa num lindo estado. Ainda por cima, levaram o balde e a esfregona. Por momentos pensámos que o melhor era contratar uma empresa de limpezas. Mas as coisas não estavam no sítio, tudo desarrumado e, sem lá estarmos, gente desconhecida, era outra chatice e mais demora. Fomos comprar o balde, a esfregona e produtos e deitámos mãos à obra. 

Gosto de fazer limpezas profundas. Limpo móveis ao pormenor, por trás, por baixo, escovo-lhes os meandros, lavo casas de banho, azulejos, esfrego. 

Há tempos uma conhecida cujo marido é um médico experiente, conceituado, disse-me dele, à sua frente: 'acho que a vocação dele é tratar da casa'. Ele sorriu e encolheu os ombros, com compreensão perante os desmandos da mulher. Eu entendo-me bem com ela, o meu marido entende-se bem com ele. Ela disse isso na sequência de estar a contar-me que o marido, uma ou duas vezes por ano, aluga uma máquina profissional de encerar, se bem percebi uma máquina que antes retira a cera anterior e, depois, aplica a nova e dá brilho. Dizia ela que ele andava pela casa com a máquina, parecia, dizia ela, um daqueles trabalhadores que, nos hospitais, andam com grandes máquinas a lavar e encerar os corredores dos hospitais. E eu às vezes penso que, na volta, a minha vocação também é fazer limpezas profundas, grandes arrumações. Não a banalidade e a pouca coisa. O dia a dia, na lida doméstica, não me despertam interesse. Mas andar descalça, meio despida, cabelo apanhado, de vassoura, balde, esfregona, panos e embalagens de produtos de limpeza, isso, sim, motiva-me à brava. 

Saímos de lá já tarde mas com parte da casa já habitável, limpinha, cheirosinha.

Felizmente, foi no domingo passado. É que o médico disse-me hoje: 'o cuidado a ter é, sobretudo, quando estiver cansada, descansar.' Fiquei a olhar e a processar. Parecia um conselho la-paliciano demais. Ele explicou: 'Evite cansar-se. Se sentir cansaço, descanse'. Quando cheguei ao pé do meu marido pensei se não deveria sonegar-lhe essa informação. É que, agora, receio que tente condicionar-me por tudo e por nada. Mas a verdade é que, no domingo, andei naquela trabalheira toda e não me cansei. Contudo, se fosse agora, não só andaria ele a querer que eu não andasse naquilo como, com tanto cuidado, até eu ficaria de pé atrás, se calhar a tentar descobrir algum vestígio de cansaço.

Não tenho vocação para ser uma 'mulher doente'. 

Enquanto estou na sala de espera, esqueço-me da minha própria condição. Durante um bocado, mantive-me sentada, sossegada. Quando dei por mim estava quase a dormir. Então, para ver se me mantinha acordada, pus-me a observar as pessoas. A mulher, talvez com uns quarenta e tal anos que devia ter tido um avc ou qualquer outro acidente que a deixou combalida, quase incapacitada. O marido e os filhos tentavam ajudá-la, orientá-la. Ela apática, arrastando-se, perdida. 

Às tantas, para espertar, levantei-me pus-me fazer piscinas no corredor. Eu num sentido, um outro, talvez da minha idade ou um pouco mais novo, a fazê-las em sentido contrário. De cada vez que ele passava ao lado da funcionária, protestava. Estava quase colérico, que no sns os atrasos compreendiam-se, ali não. Eu, tranquila, observando. Já não tinha compromissos, estava zen. Depois uma mulher jovem, despachada, bonita. Queria saber se podiam tirar-lhe um pontos que tinham ficado esquecidos. Sentei-me por perto para ouvir e tentar perceber que mistério era aquele. Como tantas vezes me acontece, pensei que gostava de abordar as pessoas, pedir para fotografá-las, fazer-lhes perguntas. Depois chegar aqui e fazer reportagens autorizadas. Assim, não posso dizer tudo o que ouvi: sem autorização das pessoas, seria coisa de paparazzi pôr-me aqui a relatar o que ouvi à sorrelfa.

Depois do médico, fomos ao Leroy comprar primário e um rolo com cabo e à Fnac buscar uma coisa. Ao estar ali, deu-me uma vontade súbita de mergulhar no mundo antigo. Fui à Zara. Estranhamente, nada me seduziu. Para onde olhava, não apenas não via nada de extraordinário como pensava que não tinha falta. Ao passar pela Natura e pelos seus saldos, também me deu vontade de espreitar. A mesma coisa. Ao fim de cerca de ano e meio sem entrar em lojas de roupas de mulher... entro e nada me seduz. Nada. Concluí que estou curada: já não sou consumista. Como é óbvio, fiquei contente.

Ao chegarmos a casa, estreámo-nos nos testes covid. O meu marido tem andado constipado, com tosse, com dores de garganta, adoentado. Então, resolveu testar-se. Eu ia lendo as instruções e ele ia zaragatoando as narinas, espremendo a zaragatoa no frasco não sei quantos, etc. Comprou dois testes. Se ele estivesse positivo, a seguir testava-me eu. Felizmente está negativo. Portanto, tout est bien qui finit bien.

Para o jantar, resto do frango assado que trouxe, no domingo ao fim do dia, de um take away não muito longe da casa da minha mãe. Tinha feito ontem uma salada russa, cujo resto acompanhou o frango. Fácil e agradável. 

Depois de jantar, ligou-me o meu filho. Tinha estado a jantar com um outro médico com quem falou do que o meu me tinha prescrito. Eu tinha-lhe contado quando ele me ligou antes de ir jantar. Tinha-me logo dito que achava que o medicamento novo batia na trave. Confirmou: a opinião do outro médico era também que os colaterais eram grandes e que, na opinião dele, eu não deveria tomar. O meu filho disse que nisto o melhor seria eu ler o folheto, avaliar e tomar a decisão por mim, levando também em conta a confiança que o cardiologista me inspira. Concluí que a medicina é tudo menos ciência exacta. Concluí também que vou perguntar à minha mãe que chá me recomenda. Ou seja: não tenho paciência nenhuma para isto.

Tenho aqui ao meu lado o livro que ando a ler, de que estou a gostar bastante e do qual queria transcrever um bocado. Mas não deu. A ver se amanhã, consigo. 

E, assim de repente, nada mais. Apenas mais um dia nesta minha vida que tem pouco que se lhe diga.

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Fotografias provenientes do artigo do Guardian: Top seeds: artists capture global efforts to future-proof nature

Ben Harper & Vanessa Paradis interpretam Waiting on an Angel

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Desejo-vos um dia muito bom

Saúde. Alegria. Ânimo

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