domingo, novembro 11, 2012

Numa noite de chuva, junto a uma salamandra quente, na companhia das mulheres de Schiele e Picasso, in heaven (infelizmente, Jeanne está lá fora, despida, ao frio)





Estou in heaven. A internet hoje está impossível, vagarosa, a pedal, e cai, cai, cai. Vamos ver se tenho a paciência necessária para me aguentar aqui sem desistir. 

Chove, chove muito. Numa casa térrea ouve-se mais a água, ouço-a no telhado, ouço-a a cair dos beirais, imagino-a a escorrer das folhas das árvores. Acabei de ir espevitar o fogo e de pôr mais um tronco na salamandra que aquece esta sala. São boas as noites assim. Um chá quente, o calor orgânico do fogo, a chuva que cai, o som familiar da televisão, almofadas confortáveis.

O dia já vai longo, passa das duas da manhã.

Hoje o dia começou cedo, com um passeio pela beira do rio. Como sempre quando a noite é de mau tempo, as águas levam árvores, arbustos, ramos. 




Gosto de fotografar as águas assim, agora mansas mas carregadas de despojos, raízes à vista, folhas verdes, cheias de vida, mas, de facto, arrancadas à vida. 

Hoje havia mais gatos do que é costume. Muitos. Reproduzem-se muito estes animais livres que vivem aqui na beira do rio, no meio de casas em ruínas, no meio das rochas junto à margem, que entram e saem dos buracos junto aos muros, procurando restos de peixe que os pescadores por ali deixem.




Fotografo-os também, seres misteriosos que me olham sem suspeição, que deixam que me aproxime, que vigie os seus movimentos, seres superiores que não temem as mulheres que deslizam em silêncio fotografando a sua intimidade. Admiro e invejo a sua liberdade.




Aproximo-me, olhos nos olhos e, com desarmante cumplicidade, deixam-se olhar, olham-me também, olham-me com compaixão, sabem que eu queria ser um deles. Gata da beira do rio. Ou gaivota.

Depois, saciada, voltei para cá, para a casa onde a chuva é uma música líquida e suave, envolvente.

A vinha virgem despede-se da folhagem ardente; em breve não restarão senão pequenas garras agarrando a parede.




E as laranjeiras têm cachos de laranjas lustrosas, lavadas pela chuva. Em breve estarão boas, sumarentas e doces.




Mas já há medronhos maduros, uma polpa macia e doca, por fora vermelhos, por dentro cor de carne. Disputo-os aos pássaros. Doces, doces. Coexistem os maduros, os que estão a caminho disso, as pequenas flores que parecem minúsculos balõezinhos brancos. E intercalam-se os ramos do medronheiro com os do cedro, este carregado de bagas.




E, de repente, do chão que parece fértil, atapetado e húmido, nascem cogumelos, muitos, carnudos, com as belas cores deste outono chuvoso. Gostava de saber se são comestíveis mas não sei, não me arrisco. Mas dá vontade mexer-lhes, são pequenos animais carnudos, de aspecto macio. Há-os por todo o lado. À volta dos pinheiros, a caruma e as ervas e as folhas secas envolvem estes belos seres mágicos e eu tenho vontade de inventar histórias que metam bosques aconchegados que abriguem duendes, grutas profundas onde vivam seres que se alimentam de cogumelos dourados.




E, depois, quando olhei para o céu, tive a prova de que o mundo é perfeito, imaginado, belo demais para ser real.




As árvores estavam douradas, o céu escuro abria-se para deixar passar uma luz dourada. E um arco colorido, com as cores da infância, desenhava-se, perfeito, perfeito, belo, muito belo, desenhava-se  sobre mim. Uma imagem efémera, irreal. Se eu pudesse tocá-la com as minhas mãos, sentir que é de verdade... mas não, não posso. Talvez tenha sido apenas uma visão, um sonho. Uma aparição.

A seguir o céu voltou a fechar-se, escureceu, e a chuva voltou a cair, muita chuva.

Abriguei-me, então, junto a Jeanne Hébuterne que, também desabrigada, junto à mesa coberta de folhas murchas e restos de figos apodrecidos, sob a figueira agora de ramos nus, sente o frio e o abandono deste outono frio e chuvoso, saudosa do seu tão dramaticamente amado Amedeo.




Voltei então para casa. Aqui mais duas mulheres me aguardavam. Agora eram as mulheres de Egon Schiele e Pablo Picasso.

São mulheres belas, serenas. A beleza tem estrutura própria. Invade e penetra como uma boa música. E ocupa o momento de forma tão inesperada que você respeita. Emana uma alegria só de ver, é uma força de vida. Um ser muito belo não pode estar trabalhado nem muito preparado. Tem de ser uma surpresa.




E por aqui me fiquei. Aqui estou, pois, a salamandra quente, as chamas aquecendo o ambiente, a chuva tombando com força, companhia fraterna. Aqui estou convosco, trazendo-vos para dentro da minha casa, oferecendo-vos as minhas palavras como quem oferece um chá quente. Aqui estou, ouvindo a chuva, escrevendo-vos como se vos estendesse a minha mão.


*

A música é o Prelúdio de Chopin conhecido por Raindrops.

As palavras em itálico fazem parte da interessante entrevista de Ivo Pitanguy concedida a Ana Soromenho e Bernardo Mendonça, publicada na Revista do Expresso este sábado.

*

Desejo-vos, meus Caros Leitores, um bom domingo. 

14 comentários:

Maria disse...

Amiga:
Jeanne Hébuterne, linda e infeliz.
Já não lhe chegava ter aturado o Modigiane, agora apanha chuva e frio!
Gostei de a saber in heaven, quentinha, ouvindo a chuva lá fora.
Gostei das fotos. Gostei de Chopin.
Gosto de si.
Abraço
Maria

A Matéria dos Livros disse...

Linda, a entrada de hoje.

Obrigada pelos chá, quentinho neste domingo de sol, mas ainda frio.

Um abraço!

Isabel disse...

Tudo lindo neste post.
Lindíssimas fotografias.
Um beijinho e bom domingo aí em Heaven.
Aqui hoje chegou o sol do Verão de S. Martinho!

MCP disse...

Que bom deve ser esse seu refúgio, in heaven!!
Aí deve conseguir recarregar baterias para as agruras do di-a-dia.
A noite foi chuvosa, mas hoje temos um lindo dia de sol, Verão de S.Martinho...
Amiga, goze ao máximo o que resta deste fim de semana.
Adoráveis as suas fotos, os frutos, as árvores, os gatos...
Que bem sabe um chá quentinho perto de uma lareira!!!
Um grande abraço.
MCP

jrd disse...

Olá,
Nem é necessário motor para se escrever com tanto ritmo. Basta uma pedalada persistente e segura.
Quem me dera! Eu, que também estive muito tempo, com a net às arrecuas, que ainda é pior do que estar parada.
Sem gatos nem cães para me confortar.

Abraço

Anónimo disse...

Olá,

É tão bom quando nos deixa entrar no seu in heaven!

Gostei muito de estar consigo a ouvir a chuva a cair, a sentir o quentinho da salamandra, a beber um chá...

Gostei de ver os gatos (adoro gatos! Sabe que já lhe 'roubei' alguns?), de sentir o cheiro das laranjas e dos medronhos, de espreitar os cogumelos, de sentir o vento e o cheiro da terra molhada...

Tudo isto 'somewhere under the rainbow'.

Adorei as maravilhosas Jeannes, junto à figueira, agora também ela despida de folhas e frutos.

Obrigada por este pedacinho de paraíso.

Beijinho,

Antonieta

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Até eu fiquei com pena da Jeanne, essa mulher que sofreu e que morreu por amor. E o frio que estava lá, in heaven, vento e tanto frio... Hoje ainda estava mais frio que ontem. Não chovia, o céu estava limpo mas que frio. Mas gosto tanto de estar de noite, a ouvir a chuva e a ver as chamas dentro da salamandra, sentindo o calorzinho bom que vem de lá.

Muito obrigada pelas suas palavras e pela sua amizade, tão calorosa também.

Um abraço, Mary.

Um Jeito Manso disse...

Olá Leitora,

Muito obrigada. Gosto muito de chá, bebo canecas de chá, de chá e de infusões. Ando sempre a experimentar novos sabores. Ontem à noite estava a beber maçã e canela, um sabor agradável. Agora, neste momento, estou a beber lúcia lima. Bebo sempre sem açúcar, bem quentinhos. Acho que, no outono e no inverno, nada melhor para acompanhar a leitura, a escrita, a conversa.

Quando estou a escrever, penso muito em quem me lê e gostaria de poder servir um chá.

Já lhe deixei lá escrito, n'A Matéria dos Livros que me deixou interessada pelo livro do José Riço Direitinho.

Uma boa semana, Leitora, e que a boa disposição e o bem estar físico tenham vindo para ficar!

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Lá in heaven, depois de uma noite de borrasca, o dia amanheceu azul, ensolarado. Mas ventoso, com muito frio. Mas no campo a vida é sempre muito feliz, muito boa.

E depois, ao fim da tarde, estive na casa dos meus pais e comi umas belas castanhas assadas, salgadinhas, estaladiças, quentinhas, mesmo boas, mesmo a calhar num dia com o sol de S. Martinho.

Uma boa semana, Isabel, e um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá MCP,

Desde pequena que gostei muito de viver à solta, no campo, na rua, e também à beira de água (pois nasci numa cidade com um grande rio e com praias).

Ainda hoje me divido. Preciso de andar junto à água e, sempre que posso, ando à beira rio, e preciso, depois de me enfiar, sossegada, no campo.

Lá, in heaven, no meio das minhas pedras e árvores, sinto-me muito bem. Esteja o tempo que estiver, eu gosto de lá estar. Se está frio como hoje, gosto de estar na sala a receber o sol que bate na porta (de vidro) e aquece o sítio onde me sento, ou gosto de estar junto da salamandra, sentir o calorzinho tão bom. E depois ando lá fora, de máquina fotográfica a tirar fotografias a coisas que já fotografei mil vezes, as folhas caídas, as bagas vermelhas da piracanta, a cinza da salamandra que deito junto a uma árvore e se mistura com o musgo. Tudo me parece bonito. O meu marido diz que sou maluca.

Um beijinho, MCP. Desejo-lhe uma boa semana.

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Sabe lá o que foi aquilo ontem com a net. E quando vai abaixo, faz aquele som enervante, um toque que eu já nem conseguia ouvir. Eu ligava e caía logo a seguir. E depois ficava a pastelar, nem para a frente, nem para trás e já era eu que a deitava abaixo a ver se, depois, já 'pegava' melhor.

Eu ontem, lá, também não tinha gatos nem cães. Até há algum tempo, tinha a minha amiguinha, carinhosa e alegre, a boxer que viveu connosco durante 13 anos. Agora já não a temos connosco. E há lá gatos, sim, mas são vadios, andam lá por fora, aparecem e desaparecem quando querem. Por vezes ouço passos no telhado e fico com um bocado de medo mas depois percebo que deve ser algum gato.

No Ginjal, onde passeei de manhã antes de ir lá para o campo, é que há agora imensos gatos, de todas as cores, ariscos, por vezes, mas pacientes, outras.

De resto, obrigada pelas suas palavras tão simpáticas.

Um abraço, jrd, e desejo-lhe uma boa semana!

Um Jeito Manso disse...

Olá Antonieta,

Mais do que um bocado de terra pedregosa, deixada um bocado à sua sorte, meio selvagem, aquilo ali é, para mim, o meu bocado de paraíso na terra. Há muito mato, agora há tojo que precisa de ser cortado, rebentam ramos 'ladrões' junto ao tronco das árvores e que também têm que ser cortados, há muitas folhas caídas nos caminhos e que têm que ser apanhadas e há sempre muita coisa para fazer.

Mas eu gosto tanto disso tudo. E há pinhas para serem apanhadas porque são óptimas para atear o fogo na lareira e na salamandra. E há musgo, macio e de um verde lindo. E há, sim, o cheiro a terra molhada, um cheiro tão bom.

E depois, dentro de casa, há os meus livros, os meus tapetes de arraiolos, feitos por mim, e as almofadas e mantinhas, e as molduras com fotografias dos meus amores, e há todos os objectos de que gosto de estar rodeada. E, por isso, adoro estar lá. Dá para perceber, não é?

Quanto aos meus gatos, os gatos do Ginjal que passo a vida a fotografar: o meu marido, mal os vê começa logo a dizer para eu não parar, para deixar os gatos em paz, que já os fotografei mil vezes. Mas eu não consigo resistir. Para além disso, os gatos deixam-se fotografar. Ando ali mesmo ao pé deles e eles deixam-se olhar, com aqueles olhos com uma cor extraordinária. Pode 'usá-los' à vontade. São animais especiais. E são muito livres. Por ali andam junto ao Tejo, livres, livres.

Obrigada pelas suas palavras, Antonieta. Um beijinho e uma boa semana!

Maria Eduardo disse...

Olá,
O seu paraíso e a paixão com que fala dele é contagiante. Na sua companhia, sensível e a seu lado, percorri todos esses recantos, senti o calor da sua salamandra, cheirei os frutos das suas árvores etc. etc. Lindíssimo!
Um verdadeiro post de encantar!
Lindas fotos e ao som de Chopin, só pode vir de si! Gostei muito.
Obrigada pela partilha.
Um grande beijinho

Um Jeito Manso disse...

Olá Maria Eduardo,

O meu pai, quando ainda lá podia ir, olhava em volta e dizia que havia muito mato, que deveríamos arrancar o mato todo, alisar a terra, trazer terra boa, plantar e manter a terra tratada. Nunca consegui ter vontade de fazer isso (e nem eu, nem o meu marido). Sempre preferi ter a terra tal como ela é, a natureza à solta, livre. Plantámos árvores e algumas vingaram e cresceram. E nasce alecrim, rosmaninho, sálvia, nasce o que a terra resolve dar. E eu adoro aquilo.

E gosto também muito da minha casa. Tenho móveis que eram das minhas avós, tenho móveis que eram de uma tia do meu marido ou dos avós dele. E tenho carpetes de Arraiolos feitas por mim, quadros pintados por mim, e, talvez por tudo isso, não há lugar na Terra onde mais eu goste de estar.

Já falei disso mil vezes mas tanto é o meu prazer em estar lá, que não me canso de o fazer.

Obrigada pelas suas palavras.

Um beijinho, Maria Eduardo, e uma boa semana!