segunda-feira, abril 16, 2012

Em dia de ventania, 'vou onde o vento me leva e então não preciso de pensar': Fernando Pessoa, plural como o universo - uma grande exposição na Gulbenkian, uma festa feita de palavras


Poesia, por favor

João Villaret - Tabacaria de Fernando Pessoa



Depois de um sábado atribulado, eis que este domingo de tarde, por razões circunstanciais e imprevistas, fomos para os lados da Gulbenkian. Em boa hora.

Nem me lembrava da exposição do Fernando Pessoa mas o acaso tem destas felizes coincidências.

O dia estava todo ele uma ventania mas o vento quando sopra em sítios assim - sítios de um verde suave onde as crianças correm e gritam de alegria, sítios que são recantos a seguir a recantos, recantos em que a intimidade verde e fresca se acolhe, e regatos, lagos, patos e pombos, um alvoroço de sorrisos, arbustos floridos, plumas, imponentes árvores, uma subtileza permanente - em sítios assim, o vento é festa, é brincadeira, é vontade de abraços, de beijos dados às escondidas. E as pessoas festejam o lugar e a vida sem se importarem com o vendo ou, até, abençoando-o. E agora, ao ver esta fotografia, o que vejo é a quietude, a paz. O vento é apenas uma ideia que ficou dentro da minha cabeça.


Nos belos jardins da Gulbenkian tudo é, pois, perfeito e o vento não é senão música, dança, um sopro que nos conduz.

E, portanto, sem que eu tivesse disso ideia, o vento conduziu-me pelos jardins até que cheguei à Exposição Fernando Pessoa, Plural como o Universo.



Como transmitir-vos agora aqui o que senti naquelas salas escuras, em que a personalidade de Fernando Pessoa se desdobra em imagens, em poemas, em sons, em cores?


Pelos vários espaços e recantos, a tal intimidade que os recantos sempre nos reservam, e vozes que vão dizendo poemas ou, sem se perceber de onde vem uma outra voz quente e quase silenciosa dizendo poemas, poemas que se vão multiplicando, uma toada quase sem palavras, ou palavras soltas, palavras que nos vão soando mágicas, puras, muito puras. 

E o ambiente é escuro, íntimo, variado. E o escuro é pontuado por elementos de uma luz azul, limpa, ou por uma luz amarela, quente, ou uma luz encarnada, vibrante.


E as pessoas, tal como eu, deslizávamos em silêncio, um silêncio perturbado, andando no meio dos vários eus e era a caligrafia de cada um, de Ricardo Reis, de Alberto Caeiro, de Álvaro de Campos e os eus continuam e é Bernardo Soares que depois escreve, e as vozes continuam, os recortes, a época, os jornais, os recantos, os poemas. E eu e as pessoas íamos deslizando, recortando-nos contra os painéis com os poemas e nem eu nem as outras pessoas éramos mais do que figuras recortadas, sombras andando no meio de palavras, silhuetas deslizando no meio das muitas palavras.


E o poeta que finge e o poeta sem amigos íntimos, o poeta que colhe flores e depois o homem, o homem que escreve cartas, que escreve, que escreve, que escreve, que fez das palavras a sua vida, o seu sentido de ser, e que precisou de ser muitos para poder dizer o muito que tinha para dizer, o guardador de rebanhos, o pastor que apascentava pensamentos, palavras, o engenheiro, o médico, o homem múltiplo, o homem antes do tempo, o homem grande, inteiro, o homem todo em cada coisa, o homem que pôs quanto foi no mínimo que fez.



E no fim ficou uma arca, uma arca de madeira lisa, uma bela madeira macia e dentro da arca havia milhares de papéis, milhares de palavras, de poemas, de frases, de lamentos. Dentro da arca havia fragmentos de vida, amores não ditos, sonhos por sonhar, palavras, tantas, ainda por dizer. E a arca lá está como arca sagrada num templo feito de palavras.


:::: algumas vozes, só algumas ::::

Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos:

                                      O essencial é saber ver,
                                      saber ver sem estar a pensar,
                                      saber ver quando se vê
                                      e nem pensar quando se vê,
                                      nem ver quando se pensa.


                                      Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
                                      isso exige um estudo profundo,
                                      uma aprendizagem de
                                      desaprender.


Bernardo Soares, Livro do Desassossego:

                                                                Criei-me eco e abismo, pensando.
                                                                Multipliquei-me
                                                                aprofundando-me.

De Álvaro de Campos:

                                   Pertenço a um género de portugueses
                                   que depois de estar a Índia descoberta
                                   ficaram sem trabalho.


De Ricardo Reis:

                         Tenho mais almas que uma.
                         Há mais eus do que eu mesmo.
                         Existo todavia
                         indiferente a todos.


De Fernando Pessoa:

                                Não pertencer nem a mim!
                                Ir em frente, ir a segui
                                a ausência de ter um fim,
                                e da ânsia de o conseguir!

                                Viajar assim é viagem.
                                Mas faço-o sem ter de meu
                                mais que o sonho da passagem.
                                O resto é só terra e céu.


::::: Fernando Pessoa, palavras ditas, palavras cantadas :::::


Poesia e música, por favor

Maria Bethânia declama poemas de Fernando Pessoa e canta o Doce Mistério da Vida


Música, de novo, por favor

Marisa  interpreta Cavaleiro Monge, letra de Fernando Pessoa


:::::::::

Apontamento de ordem prática: por ser domingo a entrada foi gratuita. Percorrer os Jardins da Gulbenkian também não custa dinheiro. Afinal, vendo bem, há grandes prazeres que não custam dinheiro. 

«««»»»

Hoje, lá no meu Ginjal temos palavras que caminham em volta de Hélia Correia e de um gato (e tanto que Hélia Correia gosta de gatos) que tem um olhar orgulhoso. William Tell abre, por aquelas bandas, a semana que dedico a Rossini. Gostarei de vos saber por lá.

«««»»»

E tenham, meus Caros, uma bela semana, a começar por esta segunda feira. 

16 comentários:

Anónimo disse...

CARA UJM:
Os seus passeios são sempre surpreendentes. Este, de hoje, é excelente!
Obrigada pela partilha, por nos fazer sentir íntimos do Eus.
Quero ver se não perco!
E tenha dias felizes
Abraço da
Leanor formosa e segura

P.S. Deixei sugestão no post de sexta-feira.

Anónimo disse...

Uma excelente homenagem a Pessoa e à exposição sobre o grande Poeta na Gulbenkien. Quando ainda jovem universitário, namorei e estudei por aqueles jardins tantas vezes! Tal como muitos outros jovens de esses tempos e de hoje.
Uns amigos alertaram-me para a dita exposição e em boa hora!
Que poesia bonita, de Pessoa e seus heterónimos, aqui publicou neste seu Post!
Tenha uma boa semana, que, ao que parece, nos irá trazer mais sol.
P.Rufino

Maria disse...

Amiga:
Quem melhor que Villaret, para dizer Pessoa.
Até quando estará a exposição. Pelas imagens, deve ser interessante.
Deve ter sido maravilhoso, sentir-se metida no meio de Pessoa e seus heterónimos.
Os poemas que escolheu, são todos lindos.
Quem melhor que Mariza, para interpretar "O Cavaleiro Monge"?
Belo texto, este seu.
Beijinho
Mary

Isabel disse...

Já tinha visto a referência à exposição em outros blogues que visito e de cada vez que vejo, fico a conhecer mais um bocadinho e fico com mais pena de não poder ver. Creio que estará até final deste mês.
Gosto muito de Fernando Pessoa

patricio branco disse...

f pessoa deve ser o poeta de que mais ouvimos falar; sobre o qual se organizam mais coloquios; mais exposições; edições e antologias de vária ordem; o unico (?) que tem uma casa, etc.
Gostaria tambem de ver uma casa de camões; ou de garrett; ou de cesário verde ou de nobre.
e exposições sobre régio, sá de miranda, camóes claro, jorge de sena, teixeira de pascoaes, e outros.
Gostaria de ver na universidade 1 cátedra camões, de estudos e ensino camonianos.
f p é o nosso apollinaire mas tambem o nosso baudelaire, o nosso aragon ou paul valery.
diversificamos pouco, ele merece muito, mas outros merecem igualmente tempo e atenção.
é o poeta que divulgamos no estrangeiro, possivelmente há mesmo a ideia de que somos uma literatura de um só poeta.
é justo para ele mas injusto para vários outros.
Que sairá ainda mais da arca, ao fim de 70 anos? que continuem a sair surpresas, são os votos.
e as arcas dos outros poetas, ou romancista, foram esquecidas, desprezadas? espero que tambem voltem a ser reabertas. Que surpresa boa seria um novo romance, conto ou grupo de poesias de régio, pascoaes, cesariny, sena etc etc.
são belos os jardins da gulbenkian, sem duvida, com recantos tranquilos, apetece deitar se na relva e dormitar uma sesta, ou ler um livro num banco, depois de ver uma exposição ou pinturas

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor, formosa e segura,

Para quem goste de poesia e de exposições sobre palavras, está é imperdível. As palavras cercam-nos, voam em nossa volta e sempre maior intimidade. Está lá até 30 de Abril.

Já comentei o outro comentário dos restaurantes lá em baixo. Como era para um post diferente (e como tinha eliminado um que estava repetido) quando dei por falta dele, pensei que me tinha enganado e apagado.

Obrigada e daqui lanço um alerta aos leitores: quem quiser saber de bons restaurantes, pode ir até aos comentários do post de 6ª feira e ver a recomendação da Leanor. Para saberem melhor, devem ser 'servidos' como complemento à visita aos miradouros também recomendados pela Leanor em post anterior.

Em nome de todos, agradeço!

E dias felizes para si também!

Anónimo disse...

Patricio Branco tem muita razão naquilo que aqui diz. Há - Grandes - Poetas esquecidos, ou enos lembrados. Que P.B fez questão de nos recordar - e muito bem. Oxalá alguém se lembre deles. Sobretudo de Camões!
UJM nada tem a ver consigo, naturalmente.
Mais uma vez, reitero, um excelente Post.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

O Gulbenkian é também um dos locais em que mais namorei (estudar acho que nem tanto; mas lembro-me que ia para lá com livros e sebentas mas, se a memória, me não falha, nunca chegava à parte do estudo). E ao longo dos anos nunca deixei de lá ir. A memória dos meus filhos está cheia de idas à Gulbenkian (jardim, exposições, almoços no restaurante do CAM).

Esta exposição do Fernando Pessoa merece ser vista. É uma maravilha.

Obrigada pela sua visita aqui a este meu reflexo da exposição.

Um Jeito Manso disse...

Olá, Lady Mary,

A exposição está lá até dia 30 e, se me permite a sugestão, é programa para quase todo o dia entre a dita, os jardins, almoço no Centro de Arte Moderna (buffet de 4 ou 6 variedades), loja de compras no edifício do Museu, livraria no edifício da Fundação. Se forem de carro e não houver lugar na rua, há o Parque Berna, ao lado (acho que é esse o nome do parque).

Quanto à exposição, escolhi aqui o Villaret para tentar transmitir a sensação de andar a vaguear na exposição, ouvindo a toada dos poemas.

E temos vários poemas dele musicados, mas este da Mariza é uma maravilha. Ou a canção é uma maravilha. Ou é ela a cantar que é uma maravilha.

Um beijinho, Mary.

Um Jeito Manso disse...

Isabel,olá!

Não lhe é possível dar uma escapada a Lisboa num domingo até ao ao dia 30? Se vir acima a sugestão que dei à Maria, seria isso mesmo que lhe recomendaria a si. Um programa para o dia inteiro. Ao domingo as entradas são gratuitas e o almoço no CAM é relativamente económico e muito bom (se gastar 10 € por pessoa já terá uma bela refeição). Além disso poderá ver algumas figuras públicas...

Pense nisso, Isabel. A exposição é uma maravilha.

Um Jeito Manso disse...

Caro Patrício Branco,

Tem toda a razão, todíssima. Até me permito sugerir mais: parecer-me-ia mais do que justificável que tivéssemos um Museu da Poesia.

Vendo a maravilha que é a exposição sobre Fernando Pessoa, em que as novas tecnologias são usadas de forma tão sensível e inteligente, penso que seria um Museu maravilhoso, nada chato.

E aí talvez tivesse cabimento aquilo que sugere e que, de forma isolada é capaz de ter problemas de sustentabilidade, uma casa individual para cada poeta. Num poeta poderia ter espaços individuais para cada um dos que se entendesse.

Quanto a Fernando Pessoa, penso que tem sobre os outros o sex-appeal de ser uma criatura múltipla, e é, por isso, inédito e rodeado de obras inéditas, sempre à beira de se poder descobrir outro, ou mais textos, ou mais qualquer coisa.

Mas um Museu que preste homenagem a todos os outros, acho que seria uma boa, não lhe parece?

Obrigada, uma vez mais, pelas suas palavras sempre tão criativas e oportunas.

Um Jeito Manso disse...

P. Rufino,

Vi agora o seu comentário, depois de ter comentado as observações do Patrício Branco.

Sugeri aquilo do Museu da Poesia e fiquei a achar que é uma ideia que poderia ser um projecto viável.

Mas onde arranjar mecenas, berardos com dinheiro, que possam 'bancar' uma coisa assim?

patricio branco disse...

há poetas que já têm casas, refiro me a casas onde realmente habitaram e trabalharam, conheço a de j regio em portalegre, hoje um museu que se pode visitar com antiguidades valiosas que deixou o escritor; a casa de pascoaes em amarante, a de camilo. mas são poucas.
um museu da poesia seria boa ideia, tambem há um museu do fado p ex.
a exposição da gulbenkian deve ser bem interessante, mas organizar outras semelhantes sobre outros autores seria igualmente bom.

Isabel disse...

Por acaso devo ir aí passar o último fim-de-semana, mas vou para Cascais. Não sei se vou ter companhia para ir à exposição, já que quem vai comigo não liga muito a estas coisas. E sozinha não me oriento por lá.
Vou estar tão perto e provavelmente não vou ver a exposição.
Se conseguir ver logo lhe conto.

(Não ligo a isso de ver figuras publicas, mas gostava de conhecer alguns artistas e escritores que admiro. Isso gostava.)

Um Jeito Manso disse...

Patrício, eu sei que têm mas vêem-se aflitos para as sustentar e por vezes fecham. E muitos há que, por isso, nunca terão a sua.

Se se conseguisse reproduzir o quarto, o sítio onde escreviam, poderia recriar-se o ambiente. Mil coisas se poderiam fazer e tornar este um museu interessantíssimo.

Se me sair o euromilhões já sei o que vou fazer.

Um Jeito Manso disse...

Isabel,

A Praça de Espanha fica num sítio que é um desvio fácil. Quer venha de carro ou de outro meio de transporte e tenha que apanhar o metro, é muito fácil. Tente...

A minha companhia também não é extraordinariamente aficcionada por exposições destas mas lá andou (e, afinal, até gostou).

Mas, enfim. Se não vier, outras ocasiões haverá para ver exposições boas, não é?

Um abraço, Isabel!