domingo, fevereiro 09, 2020

Livros novos. Amores antigos.





Tenho livros novos. De excepção em excepção, fui abrindo caminho para o irremediável caminho da perdição. Depois da grande arrumação de não há muito e da firme determinação em não voltar a comprar livros enquanto não abrisse espaço na minha vida para leituras demoradas, era suposto que a casa se mantivesse arrumada, sem livros a nascer de debaixo das pedras. Mas têm nascido. Duas das cadeiras que rodeiam a mesa redonda que está ali junto à janela já têm pilhas que ultrapassam a altura da mesa. Sobre o banco grande que está ao lado do sofá individual ali ao fundo desta sala já há umas quantas pilhas que se amparam mutuamente. Sobre o pequeno móvel com livros dentro que está encostado à estante alta da poesia, ficou, aquando da arrumação, uma pequena pilha. Eram os desirmanados, que não cabiam em nenhum género e que pensei que queria ter à mão. Pois, sobre eles, outros e outros se foram juntando. E de tal forma está que, a todo o momento, temo que a torre se desmorone.


Aqui ao meu lado no sofá está o Explicações de Português explicadas outra vez do Miguel Esteves Cardoso que comprei no outro dia porque não resisti a pagar apenas metade do seu preço e mais o O sentido do fim do Julian Barnes que comprei porque gostei da capa e porque gosto da forma como Barnes escreve. E tenho os Contos espirituais da Índia de Ramiro Calle que comprei porque gostei da capa e porque me lembrei de Kahlil Gibran que, por acaso, não era indiano. E tenho o que hoje, nos minutos que tive livres entre o almoço e o termos recebido uma mensagem a dizer que estavam a chegar em quinze minutos pelo que fossemos descendo, me sentei a ler: 'O lado negro da mente' de Kerry Daynes. E este comprei porque perceber a mente sempre foi fronteira que tive vontade de desbravar. Não fui para psiquiatria porque não consegui superar o medo de ver mortos durante o curso de medicina nem fui para psicologia porque recei que o curso, na altura, não fosse muito credível. Mas o interesse manteve-se intacto e a curiosidade em ler casos e as suas possíveis explicações é total. Mas hoje já não penso como pensava na altura em que não tinha a percepção da quantidade de casos em que a mente tem particularidades que tornam a pessoa única. Hoje tenho para mim que em todas as escolas deveria haver aulas sobre 'perceber os outros'. Não os julgar, não os afastar. Perceber as variantes e as nuances que levam pessoas inteligentes a terem comportamentos dificilmente explicáveis à luz da dita normalidade. Deveria ser obrigatória essa aprendizagem.


Mas, dizia eu, pensando que vou apenas ver o que há de novo, avanço pelas livrarias já receando o que sei que acabará por acontecer. Vagueio por entre estantes, espreito, tomo o peso aos livros, leio excertos. Como se eles me procurassem, vejo-me a espreitar os tradutores para descobrir pretextos  para não os trazer ou a mancha da página tentando que seja densa, deselegante, já aceitando que pretextos fúteis me afastem dos caminhos da perdição.

Mas é escusado. Ler é prazer maior, coisa que me leva aos caminhos da redenção, não há por que medesviar. Trago aqueles que se prendem a mim. Rendo-me. E lamento não ter tempo para o tempo que eles requerem. Mas depois arrependo-me de lamentar: um amor grande como é o amor pelos livros não tem que ser explicado, não tem que ser programado, não tem que ser contido, não tem que ser protelado. Amar livros é uma forma de viver. Não é uma escolha.

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E, por falar em Kahlil Gibran, outra inexplicação: porque gosto de ouvir estas palavras? Por elas em si? Pela voz de quem as lê? Não sei dizer. Sei que, de vez em quando, sem saber porquê, procuro a musicalidade e a paz que se desprende do que ouço. No fim de as ouvir, se me perguntarem o que ouvi não saberei responder. As palavras esfumam-se no preciso instante em que são ditas e encontro beleza nisso. 


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As fotografias são de Nick Knight
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E a si que aí está desse lado desejo um belo dia de domingo

4 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Hum. Tive alguma dificuldade em acompanhar o fio da meada da prosa, um pouco extensa e tal e bué intimista. Já nem recordo o princípio, era ler ou amar? Que tal lendo amar? Ou amar lendo? È um pouco uma pescadinha de rabo na boca, não é?

P. disse...

O seu gosto pelos livros é um tema recorrente, ao que vou vendo. Ainda bem, pois ler (sobretudo boas leituras, sejam elas prosa ou poesia) é algo que nos lava a alma. Nos distrai, nos cultiva, nos informa, nos diverte, nos preenche, etc.
E, claro, cada um lê o que gosta e mais aprecia. E ainda bem que assim é.
Agora, pelo menos para mim, não faz sentido comprar-se livros, muitos livros, se depois não os lemos, ou lemos só partes deles. Sou incapaz de comprar um livro que à partida não vou ler. Ou que só irei ler, ou folhear, partes, capítulos, desses livros. Não faz sentido. Não é normal. O normal é ler-se o que se quis comprar, o que se gostou de adquirir. Ter muitos livros em casa e não ter lido uma boa parte deles e, pior, nem se fazer a menor ideia de quando se vão ler, é algo que ultrapassa a minha compreensão. Acaba por ser uma atitude compulsiva, comprar por comprar, em vez de comprar para ler, ou melhor, porque se quer ler esse, ou esses, determinado/s livro/s.
Tenho também cá por casa, quer eu, quer minha mulher, uma quantidade de livros que de facto nos têm obrigado a repensar como os arrumar. Agora, dos inúmeros livros que por cá tenho, já os li quase todos. São muito poucos os que ainda não li, mas sei que vou ler. E, nesse sentido, não compro outros enquanto não ler estes poucos que faltam. Embora, possa suceder que, em determinadas circunstâncias, se um livro que eu gostei pode vir a esgotar-se, eu decida, nesse caso, comprá-lo antes que tal suceda, até por me ter acontecido no passado e depois me arrependi.
Mas, os livros existem para serem lidos (e não folheados). Só assim concebo a sua compra. Para os ter e não ler ou ler um dia sabe-se lá quando, ou só para o ter em casa, ou só para ler partes dele, não faz sentido. E, pior, é começar a ler do fim, ou partes do meio, etc.
Caso contrário para quê ter livros, se não se sabe se vão ser lidos? Há algo de ilógico numa atitude dessas. Mas, há pessoas assim.

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio Ferro,

Pois, de facto. Não abreviei palavras, não as substituí por emojis... Nem sequer escrevi um resumo executivo para gente apressada, habituada a tweets. Ainda por cima andei às voltas, dando corpo à chamada escrita circular. Mas é isso que conclui: amar e ler, ler e amar. Nada que saber, só mesmo isso.

Uma boa semana.

Um Jeito Manso disse...

Olá P.

De facto escrever sobre livros é, em mim, recorrente. Amor antigo, daqueles que se intensificam com o passar dos anos.

Quanto ao meu gosto em ter livros, tanto como em lê-los, é capaz mesmo de ser ilógico. Também é capaz de ser peculiar pegar num livro e lê-lo avulsamente, abrir aleatoriamente e ler. Ou ter livros que não sei quando vou ter tempo para ler -- peculiar, ilógico.

Mas, que quer?, há pessoas assim, P., ilógicas.

De qualquer forma acho que pessoas assim, carregadinhas de ilógica, são muito menos nocivas aos outros do que as que se acham um modelo de perfeição, imbuídas de uma auto-atribuída superioridade moral. Pessoas assim, que as há, não apenas não acrescentam nada à felicidade do mundo como, verdade seja dita, são uma seca.

Uma boa semana, P.