segunda-feira, novembro 30, 2020

Tudo é verdade e caminho

 


Estava de pé, no terraço, e olhava a chuva que caía copiosamente. Um silêncio só quebrado pelo som da chuva. Fui seguindo o seu cair, os regatos de água que se foram formando. Um pássaro grande saiu de dentro da copa de uma árvore e, numa corrida, foi abrigar-se numa outra. Caíram duas laranjas. A laranjeira está muito pesada. Apanhei uma das laranjas do chão e comi-a logo ali. Estava fria, sumarenta, quase doce. Emocionei-me. Esta é agora a minha casa e já tem frutos para me oferecer. 

Mais à frente, quase aparentando um pedaço de raiz à vista, um grande cogumelo, solto, tombado -- certamente pelo peso da chuva. Virei-o com o pé. Desfez-se. Rendilhado, delicado. Os cogumelos intrigam-me.

Reparei que um dos vasos que tinha uma qualquer verdura junto à terra, tem agora essa verdura toda florida. Mas são umas florzinhas que nunca antes tinha visto. Persicaria capitata. Surpreendo-me e encanto-me. Uma dádiva. Presentes que recebo quando menos espero.

Fui a casa buscar a máquina fotográfica e, quando parou de chover, fui fotografar os pingos de água escorrendo das flores. Debruço-me para cheirá-las. A água leva o seu perfume. Lava o seu perfume. Encanto-me, encanto-me. Depois fui buscar o telemóvel e fotografei flores e árvores para enviar as fotografias à minha mãe. Respondeu que é uma maravilha.

Entretanto, chegaram dois cães à casa do lado. De tarde vi o que deve ser o meu novo vizinho, sentado na varanda a fazer festas a um dos cães. Quando morava num andar não via os vizinhos. No campo também não. Para mim isto é uma novidade, parece que estou a voltar a quando era pequena, na rua todos a conhecerem-se uns aos outros.

Reparei, de novo, na iluminação de natal que puseram na varanda no primeiro dia em que para cá vieram. Nós ainda não fizemos nada. Não sou muito dada a enfeites, só tenho vontade de ter a casa com luzinhas quando vêm os meninos. Tenho umas árvores pequeninas com luzinhas amarelas que piscam-piscam e que dão uma luz acolhedora. A ver se amanhã as vou buscar à cave, pode ser que faça sentido. De qualquer forma são bonitas. Temos no sótão um baú com grandes bolas de Natal. Não sei se deveremos tentar pô-las nas árvores ou arbustos do jardim, na cameleira, por exemplo. Ou na cerejeira do japão. 

Não faço ideia de como será o natal. Por vezes tenho vontade de pensar: que se lixe o corona, quero é estar com o meu pessoalzinho, com todos, abraçá-los, ouvi-los, rir com eles. Mas depois contenho-me: não sou só eu, não é coisa apenas minha, não podemos dar-nos ao luxo de nos arriscarmos a ser mais um ou fomentarmos o contágio. Qualquer um de nós, se precisar de ser hospitalizado, pode ocupar uma cama que faça falta a outra pessoa. Há uma consciência cívica que não podemos deixar que abrande.

Também me faz impressão a minha mãe, sozinha. Agora faz todos os dias uma caminhada com uma amiga. Há dias em que tem aulas da universidade sénior. E está a fazer um casaco de tricot para a minha filha. Está entretida. E diz-me que evita sair e que não se importa de estar sozinha em casa, diz que receia expor-se ao contágio. Não quero forçá-la a nada até porque uma coisa é o verão em que podemos estar na rua e outra é agora, em que estando em casa, os riscos são maiores, especialmente estando sem máscara; e, em casa, quem é que vai estar de máscara durante todo o santo dia?

De vez em quando sinto saudades sem saber dizer, ao certo, de que é que tenho saudades. Talvez tenha saudades de algumas pessoas. Sim, tenho. Sei bem de quem. Talvez também de uma liberdade que agora não tenho. Ou dos hábitos que tinha e que abandonei. Há hábitos que não precisava de ter abandonado mas que abandonei. Por exemplo, passear à noite junto à praia. Íamos jantar e passeávamos antes ou depois. Como agora não vamos a restaurantes, deixámos de ir, à noite, passear mas isso é por comodismo, por não termos ainda conseguido crivar os hábitos possíveis dos que deixámos para trás. 

Tenho vontade de continuar a fazer reset na minha vida. Adquirir novos hábitos, retomar antigos, ir descobrir mais coisas mas não tenho disponibilidade. O trabalho prende-me e condiciona-me, Dantes, não sei como, o tempo dava-me para tudo e agora parece que não. 

Agora que falo nisto, vi no outro dia uma coisa de crochet que não me sai da cabeça, um trabalho em linha fina. Gosto de fazer crochet. Teria que ver onde aplicar mas acho que ficaria muito bonito. Mas quando terei eu tempo para fazer trabalhos de crochet em linha fina? Mas, de qualquer maneira, quando falava em adquirir novos hábitos nem era nisto que estava a pensar, era em mudança mais radical. 

Estive a ler um artigo sobre como será a vida pós pandemia. Há coisas óbvias. O coisinho-19 revirou o sistema. Por exemplo, ser piloto de avião era uma grande profissão, tinham grande poder reivindicativo, não chegavam para as encomendas. Agora é a reviravolta total: a TAP anunciou que vai despedir quinhentos. Todas as companhias aéreas enfrentam a mesma hecatombe. Aviões e aviões em terra. Não vai voltar a ser o que era. Os pilotos, assistentes de bordo, etc, são apenas algumas das profissões que estão em acentuado declínio. Há aquele exemplo das máquinas kodak, das máquinas de película. Não perceberam a tempo que a fotografia estava a tornar-se digital. Com o corona, parte do mundo parou e repensou-se, só que parece que ainda não fomos capazes de perceber como se vai sair desta. Quando houver vacina e tratamento, dificilmente se retomarão todos os hábitos do passado pois, entretanto, teremos adquirido outros. Sofrem os que dificilmente se vêem a fazer outra coisa mas a sociedade, no seu todo, irá reorganizar-se e reequilibrar-se. Surgirão novas profissões ou haverá escassez de outras. Sairão melhor deste pesadelo as pessoas que saibam fazer a leitura correcta dos factos e das necessidades que se criarão.

Mas, enfim, é tarde, nem digo que horas são da manhã. Portanto, melhor fora que dissesse que é cedo. 

Se há seres de outros planetas ou outras formas de vida que desconhecemos e que nos andam a estudar, se me localizarem, talvez fiquem sem perceber que ser é este que, no meio de um casario adormecido, se mantém acordado, sozinho, apenas uma pequena luz sobre as suas mãos, dando mostras de gostar de estar aqui, noite adentro, noite após noite, escrevendo como se não houvesse amanhã. 

E será que há amanhã? Quem o sabe?

(E que interessa isso, se há ou se não há amanhã? Que diferença faz isso para quem parte, depois de ter partido? E para quê perder tempo a tentar adivinhar sobre que face cai o dado que um qualquer deus atira só por desfastio? É viver e fazer o que nos faz feliz enquanto se pode. Convém é, já agora, saber o que nos faz feliz para não andar a deixar passar a felicidade ao lado, só porque não a soubemos identificar) 

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Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza

(de onde extraí o título deste post)

[De novo, pela mão do Cine Povero]

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Fotografias cá de casa na companhia de Agnes Obel com "Mary"

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E queiram continuar a descer caso vos apeteça ler cartas de Agustina à mãe

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Desejo-vos uma boa segunda-feira com saúde, amor e beleza nas vossas vidas.

Gente odienta que dorme sobre os próprios joelhos e existem como cães, encolhendo-se na chuva, quase se cumprimentando como os cães!

 



Gente odienta que dorme sobre os próprios joelhos e existem como cães, encolhendo-se na chuva, quase se cumprimentando como os cães!

E que mulheres! Azuis, verdes, amarelas, com cabelos encaixados como perucas -- Deus lhes perdoe, Em que mundo vivemos, que mundo nós fazemos! Há alguma coisa de deteriorado dentro desse mundo para que tais narizes, rugas, peles, dedos, surjam à luz do dia. Oxalá eu saiba sempre pensar com asas para que a minha auréola continue. Oxalá eu saiba ter sempre olhar de lince, mesmo quando descaia no espírito do macaco.  O olhar de lince é coisa importante, mais do que a razão.

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Penso constantemente em que devo ganhar uma fortuna para não ter que me preocupar com a proximidade de ninguém. O maior luxo do mundo é estar só; ricos são os que não têm amigos solícitos e boas intenções à sua volta.

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Não faço outra coisa senão escrever, e faço-o com a gana de destruir e escavacar todos os obstáculos. Não há ninguém vivo neste mundo. É um rebanho podre de macacos a rapar as próprias chagas com um caco, como aquele Job, que tanto se lhe dava como se lhe deu. Não percebo o que fazem cá na terra, nem eles percebem.

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Raramente consigo essa solidão absoluta, esse desprendimento de pensamento e de razões práticas e que constitui a mais grata das felicidades. Às vezes apetecia-me envelhecer depressa, para depressa adquirir uma serenidade, e indiferença pelo actual, que não tenho ainda. 

Transcrição de algumas [Cartas à Mãe] de Agustina in 'Sapatos de Corda' de Mónica Baldaque

Fotografias aqui de casa ao som de Casta Diva na interpretação de Montserrat Caballé

domingo, novembro 29, 2020

Acidentes, regressos e manuscritos de Felipa
[Ah...se eu pudesse trincar a terra toda]

 



Não há muito a dizer. O jardim está verde e florido e a chuva torna-o ainda mais viçoso. Mas a partir do princípio da tarde começou a chover, choveu, choveu, e escureceu de tal maneira que, para ler, só de luz acesa. 

Tenho um hábito: quando me levanto, dou a volta à casa, levanto os estores e vou pondo as janelas na posição basculante. Gosto que entre ar fresco. E, geralmente, gosto que fiquem assim todo o dia. O meu marido agora não concorda, diz que está frio demais para tanto ar fresco, diz que arrefece a casa. Por isso, geralmente, quando me apanha distraída, vai fechar as janelas. Se acordo a meio da noite vou, sorrateiramente, abrir a janela do quarto, gosto de sentir o ar fresco da noite. Se ele dá por isso, passa-se, diz que sou maluca. Mas gosto tanto.

De manhã não choveu. Fomos fazer uma caminhada. Mais de uma hora a bom passo. Uma caminhada bem mais longa do que o costume. Vamos conversando. Às tantas disse ao meu marido que ele sobretudo ouve e responde ao que pergunto. Ele respondeu: 'e não é preciso mais'. Ri-me. Sempre assim foi. Raramente é ele que puxa assunto. Ou tem assuntos de trabalho que o preocupam ou ouviu alguma notícia que achou relevante ou, então, alinha na minha conversa. E assim, nesta conversa solta, nem se dá pelo tempo a passar. 

Este domingo, que parece que vai chover todo o dia, não sei como vamos fazer. Já andámos muitas vezes com chapéu de chuva mas é uma maçada, em especial quando a chuva é forte ou faz vento. Mas ficar sem caminhar é que não.

Tinha ideia de ir fazer umas arrumações mas deu-me uma total preguiça. Estive a ler. Fui fazer a monda aos livros que trouxe no outro dia a ver os que tinham vindo para mim. E estive a ler parte de cada um. Enquanto lia, ia tentando descortinar quais as partículas elementares que ali se encontravam e que não encontro noutros autores. 

Mas não foi pacífico, devo confessar. Pensei que ia ficar rendida mas estou vacilante. Por exemplo, estranhei a linguagem deste Acidentes. Parece que lhe falta ali o sopro de deus. 

E, lá está, quem sou eu para falar em deus? A última pessoa a poder fazê-lo. Mas é o que penso: nos poemas que me parece conterem verdadeira poesia eu acredito que há ali mais do que apenas a inspiração ou a técnica do poeta, há uma qualquer transcendência, a mesma que encontro numa flor perfeita, numa música improvavelmente bela, numa pintura que sobrepõe sentimentos e luzes e sombras e inexistências. Penso: é um sopro divino. Um deus que reina sobre os acasos e se diverte a deixar que uns afoguem algumas coisas e outros elevem as coisas a um patamar tal que quem se apercebe deles tem vontade de se ajoelhar. Mais do que um patamar, um altar. 

O da Mónica Baldaque já cá estava em casa e o do Harari não é dos meus

Mas é isso: ainda não li tudo e talvez não com a devida concentração. Mas, do que li, sinto que há ali palavras destituídas de música ou de luz ou de não sei o quê. Tenho ideia que há palavras que não têm cabimento no reino dos céus que é o reino onde habita a poesia.

Da Adélia Prado parece que também não estou a encontrar nestas páginas a dose habitual de desalinho e a irreverência que nela tanto me cativam. Mas, de qualquer maneira, estou a gostar. Há sempre ali uma graça, um drible, um sorriso escondido por detrás da palavra. Para gostar de um livro tenho que sentir a inteligência mas sem exibicionismo, tenho que sentir o conhecimento profundo da natureza humana mas um conhecimento sem pergaminhos. Não sei explicar.

Do primo, ainda apenas espreitei. E ali encontrei a elegância do costume, a fluidez, o espírito. Lerei depois. Por enquanto, contento-me em folhear, apanhar fragmentos, deixar-me ir pela mão. Depois saltar, ler outro bocado. Há ali aquele saber escrever antigo, aquela prosa bem costurada, aquele saber contar. Não há futilidade, superficialismo. Há o prazer de escrever e partilhar ideias ou conhecimentos.

Ao início da noite fiz encomendas online e falei ao telefone. Antes fui para debaixo do telheiro ver a chuva e fotografar. Também fotografei os livros e algumas coisas em volta. E respondi aos comentários atrasados e descansei. Não é fácil ocupar o tempo quando se está habituado a não o ter. Inconscientemente parece que me sinto ociosa. Dou por mim a pensar se tenho alguma coisa atrasada para fazer, como se não me fosse concedido o direito a estar sem nada que fazer. Geralmente, ou tínhamos a família cá em casa ou íamos visitar a família, ou íamos encontrar-nos com alguém a algum lado ou íamos para o campo onde há sempre mil coisas para fazer ou íamos às compras ou qualquer outra coisa. Agora aqui em casa, num dia de chuva, sem se poder sair, parece que fica aquela sensação estranha de não saber bem o que fazer com o tempo. Mas foi bom, então não...?



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E, de repente, ocorreu-me que há muito tempo aqui não tinha o Cine Povero, bateu a saudade. 

E cá está: vem com Alberto Caeiro na voz de Pedro Lamares


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E desejo-lhe, a si muito em especial, um bom domingo.
Descubra o que lhe traria felicidade e procure-o. 
Geralmente não é nada de transcendente, está certamente ao seu alcance.
Be happy

sábado, novembro 28, 2020

Ainda não me restabeleci da visão do pequeno pónei

 


Tenho acabado os meus dias muito tarde. Hoje acabei de jantar quase às onze da noite. Depois, quando aqui chego, ao sofá, dá-me o sono. Há dias que não consigo responder aos comentários. A ver se amanhã consigo. Tem coincidido isto com ter andado a levantar-me mais cedo. Pode parecer absurdo, estando eu em teletrabalho. Mas a verdade é que é isto mesmo. Reuniões, assuntos complicados, telefonemas. E outros afazeres de permeio. Há pouco, quando despertei, pensei que devia ir dormir e deixar o blog. Mas há este misto de vício, de dever e de parvoíce que me leva a abrir o computador e olhar a página em branco impelida pela vontade de escrever alguma coisa.

Não tenho conseguido responder aos comentários mas tenho lido. Eu sabia, e brinquei com isso, que ao dizer que nunca tinha conseguido ler nenhum livro nem do Mãe nem do M. Tavares, estava a expor-me à censura: se não leu, como pode dizer mal? 

Mas passa-se o seguinte. Sou velha, para cima de centenária. Na verdade, talvez até já bicentenária. Por isso, não sei quantos mais anos vou ainda viver mas intuo que menos do que os que já vivi. E, nesse sentido, tenho que ser criteriosa. Não posso gastar os preciosos anos que tenho pela frente a fazer sacrifícios, por exemplo lendo livros que me parecem arremedos de qualquer outra coisa que não de literatura. Podem ser palavras agrupadas em frases, podem ser tópicos a fazerem-se passar por tiradas, podem ser lugares comuns travestidos de profundidades, pode tudo vir enroupado e dar-se ares de coiso e tal. Não papo. Santa paciência. Não papo aquilo de que não gosto ou que não me convence. Só papo coisa pela qual sinta apetite ou que sei que me vai deixar de alma lavada. Ou tumultuada, tanto faz. 

E aqui volta a entrar aquela séria e legítima dúvida: mas se não leu, como pode dizer tais virulentas barbaridades? 

Explico. Quando se é velha e relha já não tem que se ver o filme do princípio ao fim para perceber de que é que a casa gasta. Ou isso ou a intuição, que é como o vinho do porto, cada vez mais apurada. Folheia-se e lê-se, abre-se mais à frente, lê-se, mais à frente, lê-se. E outra vez. E outra vez. E não há uma frase que cative, uma ideia que valha a pena, uma palavra que surpreenda. Nada. Fecha-se, vai ver-se outra coisa e regressa-se não vá ser infundado preconceito. De novo. Nada. Nada. Vulgaridades. Bonitinhos. Monotonias. Nada. E aí a gente extrapola. Não precisa comer a sopa toda para vir a saber que era uma seca, basta umas colheradas para perceber que vai ser uma seca, e escusa de passar por ela.

Depois abre-se outro, outro autor, e logo a página se ilumina. Ainda na quinta-feira, na Escriba (yes, APS, na Escriba) que prazer este de abrir um livro e não conseguir resistir-lhe. Uma frase, uma palavra, uma ironia dita de forma elegante, um piscar de olhos à inteligência, a beleza de uma toada que se antecipa. É a diferença entre ser literatura ou ser outra coisa qualquer. Se o tempo me escasseia para ler tudo o que me encanta, como desperdiçá-lo com aqueles que se ocupam a escrever 'outras coisas quaisquer'?

E, no entanto, ao ver como pessoas que considero gostam do que eu não gosto, sou forçada a reconhecer que nem os cem ou duzentos anos que já vivi me conseguem fazer perceber como é possível que, perante o mesmo objecto, haja leituras tão distintas. E chamo-lhe objecto como poderia dizer outra coisa qualquer, obra, por exemplo. Veja-se com as obras de arte: um quadro, uma escultura, um jardim. Onde eu me emociono, há quem ache incompreensível que alguém de bom senso se emocione perante coisa assim. Onde outros veneram a perfeição de um trabalho, eu passo ao lado, achando monótono. Não há verdades absolutas, essa é que é essa. 

Para além disso, gostava de contar que os meus vizinhos do lado, os da casa grande, se mudaram. Nunca vi a senhora. Soube que raramente saía de casa. Via o marido, ela nunca vi. A anterior proprietária desta minha casa disse-me que, em vários anos, apenas a viu duas vezes, e foi porque lá foi bater à porta aquando do desaparecimento do gato. Diz que era assombrosamente bonita. Tenho pena que se tenham mudado pelo piano. Gostava de estar no jardim ou em casa a ouvir tocar piano. Há umas semanas, estiveram lá uns brasileiros animados, faladores, brincalhões a fazer as arrumações e depois a mudança. Durante dias era uma conversa e uma risota pegada. A seguir, mal eles carregaram e levaram tudo, começaram a vir jardineiros, brasileiros também, limparam árvores, arbustos, cortaram a relva, desbastaram tudo. E antes todas as semanas lá iam dois jardineiros. Não sei como foi que fizeram tal limpeza num jardim já de si tão permanentemente tratado. E vieram empregadas das limpezas. Chegavam de manhã, três, falavam e riam e cantavam todo o dia. Janelas abertas, uma animação. Mais de uma semana de limpezas de manhã à noite. E antes, todas as semanas, também lá iam duas mulheres fazer a limpeza. Não sei também que limpezas foram aquelas a limpar uma casa que supostamente estava limpa. Esta sexta-feira de manhã mudança de registo, nem jardineiros nem limpezas. Mas ouvíamos vozes, movimentações, carros, portões. Saímos ao fim da tarde e apenas regressámos às dez e tal da noite. E, para nossa surpresa, não apenas estavam todas as portadas abertas com as luzes do terraço a toda a volta da casa acesas como, junto à porta, no alpendre, umas luzinhas  piscar, luzinhas de natal.  Não sei que fenómeno foi este. Portanto, já devo ter vizinhos novos.

Na casa do outro lado não há estores ou cortinados. Ou, se há, estão sempre abertos. Vejo tudo o que lá se passa, do lado da casa que dá para a minha. Como os dias estão curtos, acendem a luz ainda cedo e ainda melhor se vê. Parece que estou a ver um filme. No outro dia, estava eu numa mesa no terraço da minha casa que dá para esse lado da casa deles, estava a ter uma reunião e, mesmo sem querer, ia assistindo à jovem a apanhar o cabelo, prendia-o no alto da cabeça dando-lhe uma volta e segurando-o com um lápis, a ir à cozinha buscar uma caneca com qualquer coisa quente, via como ela a envolvia com as mãos como que para as aquecer. É uma coisa curiosa, isto. Lembro-me de andar a passear em Amsterdão e achar curioso o desprendimento das pessoas dentro de casa, com as janelas à altura das ruas, sem portadas  ou estores, sem cortinas, a ver-se tudo para dentro de casa e elas na maior descontração. Aqui também é assim, a gente anda pelas ruas e em algumas casas também se vê tudo lá para dentro.

E uma outra coisa. Hoje tive que ir, durante o dia, a um sítio longe daqui, onde antes nunca tinha ido. Nem sabia que existia. Demos com aquilo graças ao gps. Um lugar meio urbano, nem sei bem como descrever, com uns certos laivos de campo. Com muita estranheza lá fomos de rua em rua, ruas muito estreitas, nem sabíamos se eram de um ou dois ou nenhum sentido. Fui com o meu marido. Não me aventuraria a ir para o desconhecido sem companhia. Às tantas, sem saber se o gps nos estava a levar para lugares completamente errados, olho para o lado e tenho uma visão. No meio daquele casario meio desordenado, um burrinho. Exclamei: olha, um burrinho! O meu marido que estava a esforçar-se por caber na rua, olhou desinteressado e fez um ar arreliado: qual burro, não vez que é um pónei? E, então, ainda mais perplexa, reparei que sim, um pequeno pónei branco com uma grande franja loura, um rabiosque todo farfalhudo em louro platinado, um ser irreal, ali, na maior improbabilidade. O mundo é um lugar cheio de coisas imprevistas, inusitadas, incompreensíveis. Vim intrigada com aquilo. Se não fosse por me ficar tão fora de caminho e não ter tempo, teria lá voltado só para ver se ainda lá estava ou se tinha sido uma visão natalícia.

Bem. Comecei a escrever a dormir e agora é que estava a apetecer-me começar a escrever. Mas acho que não faz sentido, é muito tarde.

Mas vou partilhar um vídeo de que gostei muito e que vi antes de, há bocado, adormecer.

Redefine masculinity with this Cuban ballet dancer

Andy Sousa is a dancer from Cuba. By the age of 5 he knew he had a passion for movement so decided to pursue ballet. With all its vintage charm and exciting cultural pluralisms, the Caribbean island, however, still favors a type of hegemonic masculinity that indulges in machismo behaviors. Although he had the encouragement of his father, Sousa's adolescence was scarred by peers and relations who attempted to undermine his heterosexuality and masculinity through bullying...


As fotografias mostram construções das melhores The 2020 Architecture MasterPrize
Não têm nada a ver com nada mas apeteceu-me tê-las aqui. 
Gosto de arquitectura. É das artes mais completas e, como contém matemática e humanismo à mistura, ainda mais me interessa

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E tenham um belo sábado, apesar de todos os pesares, confinamentos, restrições à circulação e etc., ok?

sexta-feira, novembro 27, 2020

Alf e Gonçalo M. Tavares: o elogio da derrota em grande estilo
[Com o Valtinho aqui no meio a segurar a vela]

 

Fui a uma pequena livraria de bairro. Há muito tempo que andava a ser catequizada para lá ir e, na verdade, de bom gosto lá iria se me ficasse em caminho, se fosse fácil estacionar lá perto ou se estivesse aberta fora de horas. Nunca era o caso. Mas desta vez, por outros motivos, tive que ir a um sítio nas redondezas e aproveitei. 

Gosto de comprar livros em livrarias a que já conheça os cantos. Ali não. E, como é pequenina, tem tudo muito concentrado, cada milímetro ocupado. E não estão apenas ao alto, em estante. Não, há pilhas, tem que se ir levantando um e outro e outro para descobrir o que está por baixo. E há estantes até ao tecto e eu, míope, não consigo ver nada do que para ali vai.

Mas uma livraria é uma livraria é uma livraria e, passados os primeiros minutos de desorientação, já eu estava a separar um e outro, a fazer montinhos. E pus-me na conversa com a simpática Livreira que me contou que há quase trinta anos luta para manter a livraria aberta e que, apesar da luta, é para ela um prazer ali estar. Que conversa boa, que ambiente acolhedor.

Comprei a pensar que dali extrairia presentes de Natal para todos e, pelo meio, acredito que sobrarão um ou dois para mim. 

E, às tantas, na exploração, dei com um do Mãe, essa coisa mais fofa (refiro-me ao Mãe, não ao livro, que não li). Tenho ideia que saiu livro dele há pouco tempo pois tenho-o apanhado por aí, sempre a dizer coisas fofinhas, sempre a lamentar não ter filhos, sempre a ser o amiguinho fofo que as meninas tristes e as senhoras solitárias gostariam de ter. Nunca percebi porque é que, com tanta senhora a babar com suas as fofices, nunca nenhuma se ofereceu para ser mãe de um filho que teria duas mães, sendo que uma do sexo masculino (ups, que trocadilhinho mais coisinho). Folheei o book e pareceu-me o do costume, mais do mesmo. E digo-o isto com à-vontade e isenção até porque nunca consegui ler nenhum livro do peludo escritor. Não sei se o que vi é o último mas lá estava ele na capa, desenhado como gosta de se mostrar, nu, peludão, quase machão. Mas estava com o bracinho em frente das partes pudibundas pelo que, ó que pena, não se lhe vê o passarinho. Aliás, cá para mim já nem o tem no sítio pois, fofura das fofuras, está com ele na mão. 

Mais à frente, um do ilustre escritor Gonçalo M. Tavares. Outro que tal. Só não se queixa de não conseguir fazer filho. E, que eu saiba, também nunca se apresentou em pelota. E acho que não dá entrevistas fofas. Mas tem ar de também ser peludo e, sobretudo, também nunca conseguiu escrever coisa que se aproveite. E, igualmente, estou à vontade para o dizer: nunca li nada do ilustre escritor. Nunca consegui vencer a barreira que se ergue entre mim e a sua prosa.

Sou como os enólogos: cheiro, espreito, vejo-lhes a cor. Folheio, folheio. E só compro aquilo que me parece ter substância. E, caso me pareça que tem substância, que me pareça ter elegância. Mas, até hoje, nunca vi nenhum livro do Gonçalo M. Tavares que cumpra os mínimos.

Sou leiga? Claro. Leiguíssima. Básica? Ui, ponham básica nisso. Portanto, é do alto da minha ignorância que o digo: de cada vez que, nas livrarias, folheio algum livro do Gonçalo M. Tavares penso sempre: este fulano não dá uma para a caixa. Nada do que escreve faz sentido, tem graça ou, sequer, tem utilidade. Penso eu. De que.

Por isso, nunca percebi como é que continua a publicar livro após livro, uma publicação numerosa e incompreensível, direi mesmo torrencial  -- por acaso até acho que alguém deveria fazer-lhe o que se faz aos cães: esterilizá-lo, literariamente falando, claro --, a receber prémios, a andar por aí, até literalmente falando (passava a vida a vê-lo, na minha encarnação pré-pandémica). 

E ainda menos percebo que uma pessoa como o digníssimo alf se dê ao trabalho de escrever um longo, elaborado e erudito texto sobre a obra do dito GMT. Será que o alf conseguiu submeter-se ao castigo de tragar tanta página de tão desconchavada prosa? Ou é que nem eu (mas em bom) e consegue fazer tal dissertação só a partir do que intui da extensa e desiluminada obra? Mistérioooo....

Seja como for, é digno de se ver. Se puderem apreciem a arte de bem esquartejar a todo o post: Gonçalo M. Tavares: investigação de um sucesso inevitável (com um bocadinho de inveja à mistura, texto galhardamente ilustrado com imagens de Irina, ex-Miss Aveiro, que nada tem a ver com o contexto tal como David Gandy que aqui nos visita e que, qual J. Pinto Fernandes, igualmente nada tem a ver com a história.


Tão lindo que ele é apesar de não ser um escritor de alto gabarito como o nosso fofo Valtinho ou o nosso prolixo Gonçalito.
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E queiram continuar a descer para presenciar os pré-beijos na boca da Catarina & Mortáguas ao Rio e, quem sabe, um qualquer dia destes, ao Ventura. Como diria o outro: uma órgia.

A Catarina Martins, porta-voz das manas Mortáguas, e o alpacas Rui Rio não estão mesmo bem um para o outro....?

 

Escrevam o que vos digo: ainda os havemos de ver aos beijos na boca. 

Ná... Quais beijos na boca...? Ná... Havemos de vê-los é numa animada suruba com o André Ventura à mistura que, a bem dizer, é farinha do mesmo saco.

E, pela parte que me toca, nada mais tenho a dizer. Só acho é que os artistas do bando dos quatro, futuramente dos cinco, para mostrarem que fazem parte do mesmo clube, devem passar a apresentar-se com a mesma marca num dos olhinhos. Sugiro esta da autoria de Tal Peleg. Teria ainda mais graça. Quando víssemos alguns deputados a avançar, Assembleia adentro, com a marca num dos olhinhos já saberíamos: olha lá vem a turminha que gosta de vir brincar para o Parlamento.


Filme de terror...?

Ná. Uma paródia. Não percam os próximos capítulos. Antevê-se mais cenas com arma branca do que as rixas entre gangs no Bairro da Laranjinha de Esquerda. Escrevam.

quinta-feira, novembro 26, 2020

Toda florescida de brincos de princesa

 



Tenho um puzzle de muitas peças para montar. Quero que fique perfeito, harmonioso. Contudo, muitas peças são imperfeitas e nem todas parecem encaixar na perfeição. Sei que há quatro peças a mais, desajustadas, desagradáveis, boas para serem descartadas. Contudo, vejo-me forçada a inseri-las no puzzle, tentando o prodígio de que, em cima de todos os demais condicionalismos, ainda consiga que o resultado se pareça com um puzzle perfeito... Um quebra cabeças. Nem as minhas artes para resolver impossibilidades estão a conseguir salvar-me deste complexo enigma que me calhou em sorte.

Durante o dia, por duas vezes, saí para o jardim para fotografar as flores a ver se descia em mim alguma inspiração. Fotografei, maravilhada, os meus brincos de princesa, a floreira que estava partida e que colei, a casinha dos passarinhos e tudo em que o meu olhar pousa. E as ideias até que desceram mas, passado um bocado de descer uma, logo descia outra que me fazia parecer absurda a  anterior. 

Depois, ao fim do dia, recebi um telefonema: alguém, que está nesta tanto ou mais do que eu, queria saber do puzzle. Ainda se riu com algumas das minhas ideias peregrinas. No outro dia desatámos os dois a rir, eu quase sem conseguir falar, uma risota pegada. Mas, até ver, as minhas ideias luminosas não lhe pareceram grande coisa. Quer um puzzle onde ninguém possa botar defeito. Também eu. Mas como? Ele diz: sei que não tenho soluções mas para isso conto consigo. Digo-lhe: ou a gente aceita que o puzzle fique com quatro peças meio de fora ou deitamos as peças fora. Mas isto sou eu a querer forçar a solução imperfeita porque, na verdade, não sou de deitar peças fora. Quando me sinto a ponto de deitar a toalha ao chão penso: 'isto é capaz de ser bom para evitar a demência'. E penso naqueles sudokus ou jogos de terceira idade em que se quer exercitar a memória ou o raciocínio para ver se os neurónios não se deitam a dormir. Penso que este meu pincel é tipo vacina em dose dupla. E rio-me. Tudo para ver se não desisto. 

Hoje deu-me para metáforas, que maçada, como se isto fosse horas para estar com isto. Só pode ser porque ainda não consegui desligar... 

Mas, pronto, vou ver se mudo o chip. Perfumes. A minha mãe estava a pensar oferecer-me um Nº5 pelo Natal. Tive que lhe dizer que não, praticamente já não uso perfume, não me dá jeito perfumar-me para estar em casa ou fazer caminhadas ou ir à praia. Embora, reconheço, seria chique a valer um Chanel e uma esvoaçante echarpe de seda para ir caminhar à beira mar. Um sucesso junto das gaivotas. Um sucesso e uma vingança junto dessas flausinas que me fazem sentir inveja delas.

Tenho no quarto, no closet, duas prateleiras com os meus perfumes. Frascos lindos, perfumes maravilhosos. Encanto-me a contemplá-los. De vez em quando destapo alguns para relembrar o odor. Sinto saudades. Cheirinhos mais bons...

A minha vida mudou. Desde meados de Março que não ponho o meu relógio. É um relógio solto, pesado, lindo. O ponteiro das horas tinha voltado a adiantar-se estupidamente, os menos próximos a alertaram-me que o relógio não estava certo. Mas, tirando o tempo em que esteve a ver se conseguia ser arranjado (duzentos euros para nada), nunca o tirei. Não era para ver as horas, era mesmo só pela sua elegância e beleza e pela companhia. Se o não pusesse, sentiria a falta daquele peso no pulso. Só não o usava ao fim de semana. A aliança também nunca mais usei. Mãos sem nada. Brincos só para as reuniões. Saltos altos também nunca mais.

No outro dia, fui ao dentista. Andava há séculos a adiar, não era nada de urgente, mas, quando vi que isto da covid estava para dar e durar, acabei por achar que o melhor era deixar-me de coisas e ir. O dentista (que agora já não dá pelo nome de dentista, cada um tem sua especialidade) que é homem novo, enquanto punha a cadeira para baixo, olhou-me para os pés e exclamou: ah, que ténis tão giros... e são confortáveis, não são...? Desatei a rir. 'São velhos... e confortáveis, sim'. E ele, olhando-os, 'são muita giros'. Depois olhou para mim e disse: 'Acho muito melhor assim... Há quem ande em cima de saltos altos e nunca experimente o conforto de andar com sapatos assim'. Voltei a rir-me e expliquei-lhe que até Março eu andava todos os dias da semana, de manhã à noite, montada em sapatos bem altos. E ele, que é novo ali e não me conhece de outros carnavais, olhou para os meus jeans, os meus ténis, o meu rabo-de-cavalo e espantou-se: 'A sério...?!'. Ah pois é, bebé. Aqui a je já foi madame empinocada, perfumada, emperiquitada de alto a baixo. Agora é tudo na base do casualware e já vai com sorte. Quando vou entrar numa meeting, uns minutos antes, ponho uns brincos, penteio-me, visto uma blusinha de seda, agora que está mais fresco ponho uma echarpe, passo um brilhozinho nos lábios e está feito. Mantenho as leggings, as meias fofas e quentinhas porque isso ninguém vê. O meu marido goza que se farta. Se me vê andar à pressa a ir à procura de uma echarpe ou de uns brincos, goza logo: 'temos reunião... certo?'. Ele não é como eu: veste-se como se veste e não se altera para as reuniões. 

E pode não parecer mas a minha ideia quando peguei no computador era escrever sobre perfumes. Se eu ainda estivesse numa de usar perfumes, gostava de receber um presente assim: uma cestinha com um vasinho com uma orquídea -- ando com esta coisa de querer ter uma orquídea -- e, ao lado do vasinho, dentro da cestinha, um frasquinho com um perfume raro. E uma caixinha com uns brincos lindos, talvez uma filigrana pequenina, moderna. E uma caixinha com pedrinhas às cores e conchinhas. E ainda um voucher para ir fazer um curso de perfumista. Gostava de saber fazer perfume. Tinha era que ser um curso remoto. Penso que seria um presente que iria deixar-me encantada. Mas como já não uso perfume, e brincos só os remotos, nada de grandes necessidades, acho que vou ficar à espera apenas da orquídea. De resto já o fiz saber aqui em casa. Sempre tive vontade mas sempre achei que era bicho tricky, como os gatos. Não sei se saberei tratar animal tão senhor de si. Mas deve vir com manual de instruções. No outro dia até pensei comprar uma orquídea artificial. Mas as coisas artificiais não dão luta e eu, como é bom de ver, a sério, a sério, só gosto mesmo é do que dá luta.

Mas, pronto, como me distraí com a conversa e daqui a nada tenho que estar a pé, passo já ao vídeo que aqui me trazia. Um vídeo Vogue, uma casa fantástica, um jardim de sonho, uma colecção de vidrinhos e cheirinhos boa para a gente sonhar com ela. A Paola Locatelli não faço ideia de quem seja mas, a julgar pelo que aqui vejo, deve ser simpática.


E um dia feliz, ok?

quarta-feira, novembro 25, 2020

Ah... que pena Bosland não ser aqui perto...





Quando chego a uma qualquer terra -- ou melhor, quando chegava... -- mais do que ir logo enfiar-me nos museus, procuro os jardins ou parques públicos. Tenho para mim que a alma de uma terra está nos seus jardins.

Dantes, por cá, era muito amante do Jardim Botânico, lugar romântico e onde já fui muito feliz. Por vezes tinha que vir o seu guardião expulsar-nos, não dávamos pelo passar do tempo. Claro, também, dos Jardins da Gulbenkian, lugar sempre mágico e do qual sinto muito a falta. Até meados de Março, pelo menos à sexta-feira à hora de almoço, ia sempre passear por lá. Ou almoçava num dos restaurantes ou ia ao nepalês ali perto e depois ia para lá passear, quer nos jardins quer nas livrarias. Mal comecei a circular por minha conta e risco pela cidade, era para a Gulbenkian que os meus passos me levavam. As exposições atraíam-me muito, mesmo quando era confrontada com coisas que me deixavam doida de incompreensão. Era, então, demasiado jovem para saber que a maioríssima parte do conhecimento me seria estranha para o resto da vida. O riacho, o lago, os recantos onde poderíamos estar a bom recato, eram outras tentações. Por lá namorei, primeiro com o segundo, depois com o terceiro, por lá tenho andado com os meus filhos desde bebés até agora, e agora também já com os meus queridos pimentinhas que sobem às árvores a que os pais subiam, que vêem os netos dos patinhos que os seus pais viam. 

Havia a Estufa Fria mas coisa sempre organizada demais para o meu gosto. Nunca foi destino de predilecção. Não é bem jardim, muito menos é Parque, é Estufa. Lugar de descoberta mas, na realidade, para mim nunca lugar de espanto e rendição. Com os miúdos também o Jardim Tropical, adoravam as raízes daquelas árvores gigantes, subir e descer e saltar, descobrir, brincar. E ainda o do Palácio de Queluz, bonito mas muito civilizado, muito feito a régua e esquadro, muito estruturado para o meu gosto. Sou mais pela natureza a l'aise, sem coleira ou preceitos.

E ainda me lembro de um amigo me falar do Parque Urbano do Porto. Mora perto, ia contando sobre o andamento dos trabalhos, ia antecipando o lindo que ia ficar. E ficou muito bonito, começa na cidade, vai até ao mar. Não nisso de descer até às águas mas no resto é um parque com afinidade com o Parque da Paz, também uma maravilha. 

Numa altura em que ia várias vezes por ano a Madrid não podia deixar de andar pelo Retiro. Havia sempre alguns musts em Madrid: a loja de lingerie da Serrano que me tirava do sério, tal a elegância e ousadia das suas peças, e os passeios nas belas alamedas e recantos do Retiro. Claro que também as temporárias dos três museus do triângulo ou os petiscos ao início da noite ou aquelas belas zarzuelas de marisco que comia antes de confirmar, a duras custas, que sou alérgica a marisco de casca encarnada -- mas, enfim, isso agora não vem ao caso.

E agora estou a lembrar-me de Monserrate. Aquelas árvores... que maravilha...

Sintra é Sintra é Sintra mas, em Sintra, para além de uma certa casa de que aqui apenas falo quando a disfarço de fantasia, casa essa onde me ensinaram a gostar de vinho, para além dos travesseirinhos quentes que se compram ali perto, para além dos passeios pela serra ou pela lagoa, são os verdes e as grandes árvores de Monserrate que sempre ali me prenderam. 

E, numa de cerises a puxarem cerises, de muitos outros parques ou jardins poderia aqui dar conta. Como aquela primeira vez em Hyde Park em que, vinda de um país onde não era costume desfrutar a vida ao ar livre, fiquei muito surpreendida por ver concertos no meio do jardim, as pessoas a puxarem uma cadeira e a assistirem na boa, na maior informalidade, outras deitadas na relva, tudo na maior felicidade. 

E é verdade, já me esquecia, a esplanada do parque rente a um lago perto dum outro recanto com estátuas, lugar de romance e mil beijos, tantas e tantas tardes lá passei, tanto que por ali cirandei, no alto do Parque Eduardo VII, uma esplanada resguardada, tão, tão, agradável -- e, houve uma altura que agora também não vem ao caso, tão irresistivelmente clandestina. 

Ah, sim, claro, é verdade, outro que também me maravilha: Serralves. Tão bonito. Sempre alguma coisa a descobrir. Lindo, lindo. Há tanto tempo que não vou ao Porto, que saudades.
Aliás, há tanto tempo que não vou a lado nenhum. Como estarão os parques das cidades? São os últimos refúgios dos seres humanos?
Agora me lembro, nunca conheci parques que adoraria conhecer: os etéreos do Japão. Não serão luxuriantes como os que costumam fazer-me cair de paixão mas, sim, elaboradamente requintados, a beleza reduzida à sua mais íntima essência. Como me sentiria lá? Depurada? Sereníssima como nunca antes? Nem conheci aqueles outros, igualmente longínquos, em que as árvores e as suas raízes rebentam em verde por entre ruínas, uma simbiose perfeita entre a exuberância da natureza e a decadência mágica de antigas esculturas ou edificações. Gostava muito de ainda vir a conhecer essa realidade que apenas conheço remotamente. Penso que choraria de emoção, as minhas raízes entrelaçando-se com as das árvores mais antigas.

Vem-me este gosto desde a minha meninice vivida à larga, perto do campo, casas com jardins e hortas tudo sempre de porta aberta, vida de largueza de movimentos, à rédea solta, de admirar os rapazes subindo às árvores, de meninas sentadas à sombra, da menina que fui andando a apanhar pinhões que depois comia depois de os partir com uma pedra. Ou virá de qualquer outra coisa. Talvez noutra encarnação tenha sido árvore. Ou pássaro ou outro bicho que tenha vivido no mato, em florestas. Sei lá.


Por tudo isto, o que eu gostaria que estes caminhos entre as árvores que aqui se vêem no vídeo abaixo estivessem perto de mim. Não é arborismo mas é quase. Andar entre as árvores, mesmo quando andamos com os pés nos chão, é bom. Revivo, revigoro-me, desligo-me do resto do mundo quando caminho entre árvores. Imagine-se como será bom ir subindo, subindo, e ficar bem perto do céu em que as copas se encontram, ser irmã dos pássaros, ser folha, ser luz entre as folhas, ser pouco mais que uma aragem.



E aqui fica a sugestão: que os nossos autarcas, todos, invistam em projectos deste género em que o contacto próximo com a natureza seja estimulado. 

Boa?

terça-feira, novembro 24, 2020

Um dia normal em tempos pouco normais
[Com jasminum mesnyi em flor, folhas caídas e culinárias de permeio]

 

Encanto-me com as flores que vou descobrindo no meu jardim. O gosto pela jardinagem da anterior proprietária é muito idêntico ao meu. Todas as suas opções me agradam e me surpreendem. Ando com o telemóvel a fotografar e a identificar. Que prazer sinto nisto.

Hoje descobri que tenho um maravilhoso jasminum mesnyi. As frágeis hastes estão a cobrir-se de florzinhas amarelas. Quando era apenas verde estava perto de uma das buganvílias e apenas há pouco tempo percebi que aquilo não eram rebentos frescos de buganvília. Que contente fiquei quando as pequenas florzinhas amarelas começaram a surgir. Foi como se fosse magia, as florzinhas a brotarem, de dia para dia mais florzinhas. Tão perfeitas, tão lindas, tão cheias de sol.

A romãzeira, por sua vez, como que ao despique, está com as folhinhas todas amarelas, muito bonita. E mais bonita ainda quanto as folhinhas vão tombando e a relva está, ela própria, coberta por aquela poalha dourada. Encanto-me, encanto-me.

Ao pé está um vaso que também está florido, umas flores matizadas, rosa e branco. Tudo tão bonito, deus meu. E uso a palavra deus deliberadamente pois tem que haver algures um bando de divindades ocultas e desenhar e a fazer existir todos estes pequenos seres tão superiores e tão cheios de beleza. 

A anterior proprietária queixava-se das formigas, dizia que havia sempre muitas formigas, que tinha que pôr um pó para as neutralizar, que lhe davam conta das flores. Ainda não dei por elas e as flores rebentam de alegria e cor. Fico feliz por ver como as flores não me estranharam e parecem felizes com a minha companhia. 

As florzinhas das buganvílias também vão caindo na relva. Apanhei umas quantas e coloquei na taça que está em cima da mesa redonda do recanto da sala junto à cozinha e a que chamamos copa. A minha filha já lá tinha posto algumas que já estão secas embora ainda bonitas e eu agora juntei outras, mais frescas.

De cada vez que passo naquele bocado de jardim penso que, se calhar, deveria varrê-lo. Mas não o faço. Aquele colorido é bonito demais para ser varrido da superfície da terra. Ah, se eu pudesse conservar todos estes instantes. Fotografo para ver se as imagens que vou colhendo me ajudam a guardar a memória destes momentos de cor, paz e beleza.

Hoje, durante a caminhada da hora do almoço, passámos por uma casa em construção. Deve vir a ser uma bela casa. Contudo não me seduz. Casas feitas de raiz não me seduzem. Casas que já viveram outras vidas, sim (desde que me agradem, claro). Esta, onde agora vivo, com um jardim que vinha sendo plantado, melhorado e acarinhado talvez há uns vinte anos, tem para mim um valor inestimável. Quando por aqui passa, a anterior proprietária fala sempre nos cursos de jardinagem ali da Ajuda, diz que eu iria gostar. Claro que sim. Hei-de frequentá-los. Assim tenha disponibilidade, lá estarei. Penso que, tendo aprendido a melhor cuidar dele, ainda mais prazer terei com este belo jardim que me encontrou e pelo qual logo me apaixonei.

Tirando isso, o que posso acrescentar é também muito simples.

No domingo tive preguiça de fazer sopa. Fiz esta segunda de manhã. Fiz assim:

Numa panela, coloquei água, três cebolas, duas cenouras bem grandes, duas courgettes ainda maiores, uma batata doce cor-de-laranja, um pouco de sal. Lume no máximo para ferver, antes de baixar. Depois, num tachinho mais pequeno, coloquei uns quantos feijões-verdes laminados, uma mão-cheia de ervilhas e cenourinhas baby congeladas e umas favinhas pequenas também congeladas. Verti um pouco do caldo da panela sobre estes legumes e depois de ferver, depois baixei. Quando estava tudo cozinhado, já fora do lume, juntei azeite virgem de baixa acidez e, com varinha mágica, desfiz tudo até estar um belo puré de legumes. Juntei, depois, os legumes do tachinho com respectivo caldo. Misturei tudo com uma colher e juntei uma generosa rama de hortelã. 

Ao almoço, estava morninha, saborosa, bem cheirosa.

Comemos sopa. O meu marido mexeu ovos onde misturou alguns legumes que ontem sobraram do peixe cozido do almoço e ficou uma saborosa tortilha espanhola. Com isso fez umas sandes, em pão quentinho, a que juntou umas folhas de alface. De sobremesa comi dióspiro cortado às rodelas com canela.

Para o jantar, descongelei carnes e miúdos de galinha do campo (vulgo canjinha de galinha) e, como me pareceu pouco, tirei um saquinho com peitos de frango. Pensei: faço um arroz vagamente de frango para acompanhar peito de frango recheado. Afinal, os peitos de frango eram bifinhos do lombo de porco. 

Portanto, acabou por ser assim:

Num tachinho, coloquei um bocado de água com um pouco de sal, uma cebola grande, umas folhas de louro, salsa e os bocados de galinha e respectivos miúdos. Deixei que cozesse. Quando tudo estava macio, retirei a carne que desossei e cortei tudo aos bocadinhos. Coloquei o caldo de cozer numa caneca. No tacho coloquei o caldo da cozedura que completei com água para encher a caneca, outro tanto só com água da torneira. Piquei lá para dentro uma cebola picada, feijão verde cordado aos bocados grandes, uma cenoura aos bocadinhos, ervilhas qb. Deixei cozer um bocado. Juntei, então, uma caneca de arroz basmati e as carnes cortadas. Depois de ferver, baixei, o tacho sempre tapado. Quando o arroz absorveu todo o caldo, desliguei.

Entretanto, numa frigideira grande juntei azeite, dentes de alho com a casca a que apenas dei um golpe, muitos, uma cabeça grande inteira, mais folhas de louro. Quando os alhos começaram a dar mostras de querer abrir, coloquei os bifinhos. Polvilhei com um pouco, muito pouco, de sal, um pouco de orégãos, poucos, um pouco de alecrim seco, pouco. Tudo na conta. Fui virando até estarem com ar de querer ficar dourados, macios.

O arroz e os bifinhos foram acompanhados de salada de alface. E o que tenho a confessar é que a frigideira foi colocada na mesa e foi difícil resistir a molhar vezes de mais o pão de nozes, quentinho, no molho. 

Para sobremesa, comi maçã que cortei às fatias, cada uma com uma lasca de um bem apaladado cheddar maturado.

A ver se arranjo coragem para intercalar com uns jantares mais à base de chá para ver se não chego ao verão a pesar para cima de uns cem quilos. Ponho-me a cozinhar de gosto, depois gosto de sentir os aromas desta culinária caseira, e depois, com esta vida saudável que levo e que ainda mais apetite me dá, sinto vontade de comer mais do que a conta. Acho que, em vez de fazer uma simples caminhada por dia, tenho é que passar a andar a correr e aos saltos a ver se dou cabo das avantajadas calorias que esta santa vidinha corre o risco de me trazer.

Esta coisa do corona tem coisas tramadas -- e escuso de elencar todas as mil coisas que estão a destruir muitas vidas e a virar o mundo do avesso -- mas, para mim, até ver, apesar da falta que me faz a proximidade estreita e assídua dos meus mais queridos, tem tido alguns aspectos positivos: não perco horas no trânsito, não vivo horas e horas fechada numa torre de vidro sem janelas que se possam abrir, não passo a vida a comer em restaurantes, vivo muito mais em contacto com a natureza, desfruto mais o prazer de estar em casa, não tenho que conviver de perto com gente de quem prefiro guardar distância. Até ando com vontade de fazer doces, compotas, licores. E até nem é tanto para depois me lamber com eles, é, sobretudo, pelo cheirinho bom que imagino que a sua confecção deve espalhar pela casa. Ando nisto. 


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E uma feliz terça-feira
Saúde. Alegria. Força.

segunda-feira, novembro 23, 2020

Lightplay -- pensando no Covid Christmas, num dia atípico de praia

[Je te laisserai des mots]

 


De manhã encontrámo-nos na praia. Um dia azul. O céu azul, o mar azul. O ar transparente, leve, feliz. 

Há, contudo, invisível, aquela sensação estranha de não sabermos quando voltaremos a estar juntos. Nos próximos dois fins de semana não será. Depois começará a aproximar-se o Natal. Costumávamos ter festa de família de véspera e festa de família no dia. Este ano ninguém sabe como adaptar festas tão especiais para que as crianças sintam, na mesma, a magia, a surpresa, a alegria, o aconchego das luzes e do afecto em família. 

Na praia, ao verem-se, os meninos mostram-se contentes, brincam uns com os outros, os rapazes, os pequenos e os grandes, jogam à bola, as meninas, as pequenas e as grandes,  conversam, jogam ao disco, o mais pequeno dá cambalhotas, os outros fazem a roda e o pino. O tempo foi pouco pois à uma havia que estar em casa; mas foi bom enquanto durou. Estivemos todos de máscara excepto o mais pequeno que não tem paciência e a tira e os restantes enquanto comeram o lanchinho que levámos. Como não posso tê-los em casa, em volta de uma mesa grande, levámos um lanchinho. Por dentro sinto que isto me custa, que é uma pena que tenha que ser assim. Mas, pragmatismo oblige, tem que ser assim e contra factos não há argumentos. Não mostro que me custa pois, para além de tudo, estou contente por estarmos juntos e porque sei que ainda tenho é que me sentir agradecida por morarmos perto uns dos outros, por gostarmos de estar uns com os outros, por podermos estar juntos. 

Os meninos, em especial quando andavam a jogar futebol, queixavam-se da máscara. Transpiravam, corriam, iam ao chão -- e tudo, a areia e o estarem ofegantes, de facto, não ajuda a sentirem-se confortáveis com máscara. Mas não dá para facilitar: os mais pequenos andam na escola sem máscara, sabe-se lá, e, em cima disso, pensava-se que o pai de parte dos meninos poderia ter contactado com uma pessoa positiva. De manhã soube-se que o teste dessa outra pessoa tinha dado negativo mas há casos de testes negativos em que, dias depois, se confirmam as piores suspeitas e, por isso, nunca fiando. 

E a manhã passou num instante e nem deu para contemplar o mar que estava grande e muito bonito. Antes de nos virmos embora, um dos meninos, dos cinco o que é o do meio, agora já com nove anos, foi sentar-se perto do mar. Gosta de se sentar a meditar. Fica imóvel, o corpo deixando transparecer uma grande tranquilidade. Depois, quando estava cá em cima a calçar-se perguntei se, quando está assim, pensa em alguma coisa. Ele disse que não. Eu e a minha filha perguntámos ao mesmo tempo: 'E consegues?'. Com naturalidade disse que sim. E acrescentou que fica a ouvir o mar. Este menino surpreende-me. O mais crescido está quase da minha altura. Quando falo com ele ponho-lhe o braço pelos ombros e ele o braço dele pela minha cintura. O meu marido sempre a dizer que nos afastemos. Mas é difícil. Gosto de os sentir. A menina também está crescida e sempre linda, fala em vídeos tik-tok, fala em seguidores. Por dentro, arrepio-me. O mundo das redes sociais alastra e substitui a vida de bairro, de brincadeiras na rua. Une o que a distância afasta. Disso não tenho dúvida. O pior é o que vem por acréscimo. O outro menino, esguio, sempre atento, sempre ágil e pronto para dançar, genuíno na sua versatilidade. E o mais pequeno, brincalhão, alegre, com uma destreza física e verbal que nos deixa espantados.

Fotografei-os. Ficam registados estes dias de pandemia, de máscaras e tentativa de adaptação a estes estranhos tempos.

Depois, em casa, foi uma tarde tranquila. Lida doméstica. Leitura. 

Tínhamos, in heaven, um cadeirão relax, dos que se reclinam e em que deles, puxando uma pequena alavanca, sai em baixo, um suporte para as pernas. Um dia resolvemos levá-lo para a casa da cidade. Na altura, acho que contei a proeza. Pesado, pesado, pesado. Não conseguimos que coubesse no elevador. Impossível voltar a enfiá-lo na carrinha. Tinha sido um pesadelo, os bancos todos rebatidos, a porta do porta bagagens mal fechada. Então resolvemos levá-lo escada acima. Morávamos no último piso de uma torre. Íamos desfalecendo várias vezes. Ele, em cima, içava-o degrau a degrau e eu, em baixo, tentava equilibrar e que o cadeirão não se despedaçasse escada abaixo de cada vez que a coisa não corria bem. Várias vezes pensámos que não íamos arranjar forças para o levar até dentro de casa. Mas há aquela velha máxima de que querer é poder. E conseguimos.

Desta vez não fomos nós que o trouxemos para aqui, foram os fantásticos brasileiros da empresa de mudanças. Está na sala grande do sótão, junto à janela onde dá o sol. É lá que me sento nestas tardes em que o tempo corre com vagar. A ler. A sentir o sol a deslizar sobre mim. A deixar que o sono desça, adoçando-me a consciência, a existência. 

Depois aqui, à noite, vendo uma vez mais o Perfume de mulher, esperando para ver, uma vez mais, o magnífico tango no qual o Al Pacino mostra o que é saber encantar uma mulher, ponho-me a escrever sem saber porque o faço. Escrevo porquê? Porque tenho que escrever? Porque não consigo deixar de escrever? Neste domingo, 1604 pessoas vieram aqui. Sei de alguns, não sei da maioria. Quem são? Agora passa das duas da manhã e já 175 aqui estiveram desde que a segunda-feira começou. Quererão encontrar alguma coisa em concreto? Será que gostam de acompanhar estes meus passos? Não tenho feitos a anunciar, a minha vida nada tem de mais. Porque vêm aqui? Saberão que, quando aqui estou à noite, é como se estivesse a conversar convosco? É como se sentisse a vossa companhia. É convosco que falo. E agradeço-vos.

E, para retribuir o conforto da vossa presença aí desse lado, aceitem que partilhe convosco este vídeo maravilhoso. Leio que é um presente de Natal. Tomem-no como o meu presente de Natal antecipado. 

"Lightplay, A Christmas Gift" -- Sergei Polunin

Voa, Sergei, voa


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Pinturas de Lee Kyung Hae ao som, uma vez mais, de Je te laisserai des mots, Patrick Watson

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E queiram, por favor, continuar a descer. 

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Ânimo. Boa sorte.