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quarta-feira, janeiro 29, 2025

É suposto termos medo?

 

Dá vontade de classificar como palhaçada, como se estivessem armados em bons. Ou melhor: em maus. Como se quisessem que a malta se acagace com eles. 

Ele é o que se sabe, tem a mania que é o maior, o melhor, o único. E ela, pelos vistos, não lhe quer ficar atrás. 

Parece que querem que a malta pense que, lá porque eles querem parecer sinistros, o melhor é fazer-se tudo o que querem sem que ninguém solte um pio.



Tenho lido ou ouvido que a Melania está elegante e que quer mostrar-se empoderada. Sobre a elegância não me pronuncio mas sobre o empoderamento o que tenho a dizer é que detesto a palavra, detesto quem a usa, detesto tudo o que a rodeia. E seja isto a propósito de mulheres ou de homens.

O que vejo nas fotografias é gente fechada sobre si própria, fechada aos outros. Melhor dizendo: cagando-se para os outros.

Mesmo que, na realidade, nem um nem outro façam pessoalmente mal a uma mosca -- por exemplo, não deem murros na cabeça de crianças, não estrangulem velhinhos, não torçam o pescoço a pássaros, não andem ao pontapé a cães velhos que já não consigam morder de volta -- a verdade é que fazem muito mal ao mundo. Poluem o mundo, poluem o planeta, agridem o género humano, atentam contra a dignidade e a inteligência do ser humano, desprezam os mais frágeis.

De gente assim, devemos guardar distância. 

Mas quando acontece o impensável e milhões de pessoas votam neles e que, quando o veem a dar ordens estúpidas ou maldosas, ainda os aplaudem, então fica a dúvida: o que podem os outros fazer? Os que não se reveem em nada disto, os que não gostam disto, os que acham que ter gente assim na Casa Branca é um assustador retrocesso civilizacional -- o que podem fazer?

Creio que uma única coisa: não ter medo, não vergar, não ceder. 

A história avança aos soluços, umas para cima, outras para baixo, um passo para a frente, dois para trás, um para o lado, outro para a frente. Analisando a coisa, vê-se que a longo, longo prazo, não se avança muito. Se calhar... até se recua. Mas como se vai para o lado, se calhar, sendo a rota outra, talvez não seja tão dramático assim. Não sei (ou melhor, esforço-me para não ser pessimista)

Sei é que se agora estamos num torvelinho, o mundo aos coices e às patadas, um dia destes a malta vai perceber a asneira que é votar nos porcos que, lá por andarem em duas patas e se vestirem de fato e gravata se acham tão bons ou melhores que os homens, é um barrete dos valentes.

Por isso, há que suster um bocado a respiração porque este mau bocado há-de passar.

terça-feira, agosto 27, 2024

Caro Leitor, não se assuste. Não fuja. Isto não tem que meter medo.
Vou falar, mas muito ao de leve, em Ser mortal

 

Sempre tive pavor da morte. Nunca consegui ver, ao vivo (passe o disparate da expressão neste contexto), nenhum morto.

Há pouco tempo uma amiga contava que, quando a mãe tinha morrido, tinha resolvido que ela iria (ora aqui está outro verbo desajustado neste contexto pois nenhum morto 'vai', quando muito 'levam-no') vestida com uma camisa de dormir branquinha com rendinhas. Depois resolveu mandar fazer uma bandelete com florzinhas para a mãe levar no cabelo. Diz que o pai, quando viu a mãe, disse que ela estava mesmo bonita assim. Perguntei se ela tinha conseguido ver a mãe, Disse que sim, claro. Corajosa.

Também nunca gostei de conversas sobre a morte. 'Ai que mórbido', sempre disse quando o tema deslizava para esse buraco (desculpem o mau gosto da expressão). Fugia a sete pés de conversas sobre doenças terminais, sofrimentos atrozes, estados de quase morte. Parece que tinha medo de ter medo, tinha medo de ficar a pensar no assunto e ficar aterrorizada.

Por isso, morreram-me pai e mãe sem que nunca nenhum de nós tivesse falado em vontades relacionadas com o seu fim. Quer dizer, o meu pai pedia muitas vezes para o deixarmos morrer. Mas ficávamos chocadas, não queríamos que ele dissesse isso, parecia quase coisa de mau gosto (olha que coisa mais estúpida de eu agora dizer). Mas quando ele, coitado, infeliz até à última das suas células, queria que o deixássemos desistir, eu era parva até dizer chega, dizia para ele não dizer isso, dizia que ele estava confortável na sua cama, não tinha dores. Burra, mil vezes burra. Como se estar numa cama (embora sem dores) fosse motivo suficiente para se querer viver.

Mas eu não estava preparada nem fui formatada nem aconselhada nem nada para lidar com uma situação assim. Apegamo-nos à vida daqueles que amamos e não os queremos deixar desistir. Nem paramos para pensar que, com isso, estamos apenas a querer que sofram mais.

Nunca me passou pela cabeça ter uma conversa assim: 'A sua vida vai disto para pior. Por isso, vamos falar francamente. Como gostaria de viver daqui até morrer?'. Nunca. Nunca. Nem teria coragem. Parece que estaria a assumir que admitia que ele fosse morrer. E, assumindo, poderia parecer que estava a desistir. 

Fui muito cobarde. Fingi até ao fim que ele teria razões para estar bem, que não deveria querer desistir. Se calhar, por isso, por me saber frágil, nem ele, nos seus momentos mais lúcidos e deprimidos, foi capaz de me dizer para deixar de ser parva, para cair na real, para assumir de vez que ele era mortal e que merecia poder ter uma palavra sobre como queria viver os seus últimos tempos.

Sobre a minha mãe, ainda foi mais traumático. Estando obviamente moribunda, nunca consegui deixar transparecer que sabia que ela estava por dias, nunca fui capaz de ajudá-la a enfrentar a sua mortalidade. Ela não queria morrer. As enfermeiras diziam que ela chorava e pedia para não a deixarem morrer. Eu ficava transida de medo que ela me pedisse isso a mim pois não saberia o que dizer, seria um sofrimento insuportável para mim pois, deixando que ela percebesse o meu sofrimento, provavelmente fá-la-ia sofrer ainda mais.

Quando a psicóloga da ala dos Cuidados Paliativos me chamou para falarmos, nunca cheguei a perguntar como, perante uma pessoa moribunda, devemos comportar-nos. Eu gostava de ter tido coragem de dizer: 'Vai morrer em breve, mãe. Toda a gente morre. Não é uma fatalidade morrer. Estamos a fazer de tudo para que sofra o menos possível. Não tenha medo, mãe. Não vai custar. Pode ir em paz que eu cá me arranjarei, não se preocupe comigo.' Claro que não tive coragem. Nem de longe nem de perto. O meu comportamento foi o mais oposto disto. Dizia: 'Está com melhor aspecto hoje. Não chore. Já esteve pior, está a melhorar. Tenha esperança'. 

Saía de lá arrasada. Não apenas me era doloroso até ao limite por vê-la assim como vinha atordoada por intuir que a minha cobarde atitude não seria a mais indicada. Ficaria ela mais tranquila se soubesse que eu iria aceitar bem a sua morte? Não sei, não faço ideia.

Já lá vão sete meses que a minha mãe morreu e quatro anos o meu pai. E continuo a achar que a forma como lidei com a sua finitude e com os momentos que precederam a sua morte foi pouco racional, muito dolorosa e que, para eles, não sei se foi a mais adequada ou se queriam também ter agido de outra forma e não o fizeram para me poupar ou porque não venceram os seus próprios medos.

Penso hoje, e penso cada vez mais, que a forma como toda a vida fugi do tema da morte e como fui poupada a isso, não faz sentido. Eu deveria ter estado melhor preparada.

No mês em que a minha esteve internada, às portas da morte, eu vi dezenas de vídeos em que médicos, enfermeiros ou doentes falavam da pré-morte. A minha família achava que eu, ao querer saber mais e mais e mais, estava a auto deprimir-me, corria o risco de ficar passada. Mas não. Estava apenas a querer adquirir algum conhecimento sobre algo para mim totalmente desconhecido. Mas não me serviu de nada. Continuei assustada, sem saber se devia assumir perante a minha mãe que sabia o que se passava ou se devia manter aquela atitude palerma de parecer optimista.

Uma outra coisa em que tenho pensado muito é na fobia e na aversão que a minha mãe tinha a medicamentos. Temia os efeitos secundários, achava que lhe faziam pior do que a doença em si. Por não tomá-los esteve duas vezes internada, o que, curiosamente, ela aceitava bem. Era como se ganhasse uma vida adicional. Pelo contrário ficava deprimida, assustada, aterrada, infeliz quando era convencida a tomar os medicamentos (e não sei se os tomava pois arranjava maneira de nunca ninguém ver). Mas não deveria eu ter respeitado a sua vontade e aceitado pacificamente que a minha mãe não queria tomar medicamentos? Só fico na dúvida pois ela não queria tomá-los porque preferisse morrer. Não. Ela queria viver. Queria era viver sem tomar medicamentos. E isso, em meu entender (e dos médicos), não era possível. Só que nunca houve a coragem de ter uma conversa franca em que num dos pratos da balança estivesse uma decisão consciente de encurtar a vida, embora vivendo a seu gosto, sem medicamentos, e no outro prato a decisão de tomar medicamentos e viver aterrada com os efeitos secundários.

São questões complexas. Ter conversas deste tipo exige preparação, coragem.

De uma maneira ou de outra todos teremos um dia que passar por situações assim ou com pessoas que nos são queridas ou mesmo connosco. Um dia, esperemos que longínquo, seremos nós a estar nas últimas. E, pelo menos pela parte que me toca, gostaria de ter a coragem de falar abertamente nisso com os meus, gostava de poder ajudá-los a enfrentar a situação da melhor forma melhor possível. 

Por exemplo, custa-me pensar que um dia, estando eu ainda lúcida e com vontade de viver, alguém possa decidir por mim que já não posso viver em minha casa, que tenho que ir para um depósito em que os velhos e os incapacitados passam os dias em cadeiras de rodas, a dormir de boca aberta, sem um único propósito de vida. Ou que, perante um cenário complicado, alguém me force a estar acamada, de fraldas, entubada, sem voz activa para coisa alguma.

Ou seja, é um tema que é bom que seja falado, discutido, que deixemos cair os tabus, que sejamos capazes de enfrentar os nossos medos, que conversemos, que troquemos experiências e opiniões.

Finalmente acabei o 'Ser Mortal' de Atul Gawande, médico. É um livro que gostei muito de ler. Fala da sua experiência pessoal e do que tem pensado e estudado sobre o assunto. O livro tem uns anos e os vídeos que aqui partilho também. Contudo parece-me que a realidade é ainda a mesma do que tudo ali se diz.

Dr. Atul Gawande on what we should .be asking in end-of-life care

Dr. Atul Gawande helped transform the conversation about aging and death in his book, "Being Mortal: Medicine and What Matters in the End." The book spent 85 weeks on the New York Times Best Sellers list and is now available in paperback. Dr. Gawande, a surgeon at Brigham and Women's Hospital in Boston, joins "CBS This Morning" to discuss the importance of focusing on how someone wants to live at the end of their life -- not just how to keep them alive.


When Should Dying Patients Stop Treatment? | Being Mortal |

Why is it so hard for doctors to speak openly with their terminally ill patients about death as the end nears? Dr. Atul Gawande, Boston surgeon and author of the best selling book "Being Mortal" had a remarkably candid and intimate conversation with the widower of a deceased patient and apologizes for offering false hope in the end. 

It's the story of Sara Monopoli who was diagnosed with Stage 4 lung cancer during the 9th month of her pregnancy at the age of 34.

Desejo-vos um dia bom
uma vida longa e feliz

sexta-feira, outubro 13, 2023

Quando um pai, em lágrimas, diz que sorriu e gritou: 'Boa!' ao saber que a filha de 8 anos tinha sido assassinada e não raptada, violada, agredida, deixada morrer à sede e à fome

 

Tudo é horroroso demais. O horror escancarado, cheio de pó e de sangue, em que os gritos e as lágrimas quase são de somenos, as pessoas transformadas em corpos, os corpos na rua, no chão, enrolados em plásticos ou panos, no meio do pó, dos escombros, do sangue. Ao pé crianças chorando, os rostos também cobertos de pó ou de sangue. Outras rindo e brincando, inocentes, convivendo com o horror.

As cidades destruídas e sem um raio de sol ou de esperança. 

A agonia. A aflição. O medo. 

A raiva. A sede de vingança.

Um ciclo infernal de destruição.

O fundo de um poço tenebroso, onde há almas afogadas, corpos em decomposição, sonhos destruídos, vísceras. E sangue e pó.

Não sei o que sobra.

sábado, março 12, 2022

Ucrânia, terra de gente extraordinária.
Zelenskyy, um inesperado líder europeu, e Vitali Klitschko, um corajoso lutador -- por exemplo

Украина, земля необыкновенных людей.
Зеленский, неожиданный европейский лидер, и Виталий Кличко, мужественный боец ​​-- например

 

No meio desta guerra feroz, inclemente, de uma violência absurda, no meio das chacinas infligidas pelos russos ao povo de cidades ucranianas sitiadas, da tortura da fome e da sede a que Putin está a submeter milhares e milhares de pessoas, apesar das tentativas de homicídio a que os líderes ucranianos têm estado sujeitos, apesar do medo -- medo por eles próprios, pelas famílias e, sobretudo, pelo povo em geral e pelos mais indefesos, em particular --, apesar das dificuldades e dos problemas quotidianos cuja dimensão nem conseguimos imaginar, Zelenskyy, Presidente da Ucrânia e Vitali Klitschko, Presidente da Câmara de Kiev, arranjam maneira de, quase todos os dias, falar aos ucranianos, aos europeus, ao mundo... e aos russos. 

A coragem deste povo é qualquer coisa de extraordinário e de muito comovente. E os seus líderes não apenas honram a valentia dos ucranianos como são um exemplo, um imprevisto e tocante exemplo. 

Ukraine War: 'This is the war, this is the fight' says President Zelenskyy

The Ukrainian President said he understood why the people of Ukraine might be feeling weary - but he tried to galvanise them, saying it was a 'patriotic war'. 

And Volodymyr Zelenskyy appealed to the European Union to do more to help them - calling for more sanctions against Russia, "who must pay every day". 


Mayor of Kyiv Klitschko gives emotive message to Russia and tells Putin 'you will pay'

MAYOR of Kyiv Vitali Klitschko gives an emotive and powerful message to the Russian military and its leader Vladimir Putin. 

The former heavyweight boxer, told Russia's President 'you will pay' for the lives lost of woman and children in attacks on his Ukraine homeland.

Russian forces have been accused of bombing a care home for disabled people in the latest horrific attack on civilians by Vladimir Putin.

quarta-feira, novembro 24, 2021

Estes nossos queridos tabus

 

Quando eu era pequena a minha mãe gozava com um perfume chamado Tabu. Dizia que era intenso, vulgar. Na minha cabeça um tabu era isso, uma coisa vulgar mas, porque intensa, algo violenta. 

Aos poucos fui reconhecendo alguns. Não saberia definir: talvez preconceitos que nos tolhiam. 

A primeira vez que o senti e me fez sentir muito revoltada aconteceu teria eu uns quinze anos, por aí. 

Tinha um namorado e tinha um grupo de amigos de quem era inseparável. Por vezes, quando tinha aulas de manhã, almoçava e depois voltava ao convívio. Podíamos passear, ir para o parque da cidade, voltar ao recreio do liceu caso houvesse jogo de futebol a que assistir ou podíamos ir para a beira mar. Sempre fui chegada a água, mar ou rio. Mas, na altura, era mais o ambiente de largueza e a tranquilidade. 

Nada de mais. Conviver e descobrir o prazer da amizade eram coisas boas e inocentes. 

Até que um dia a minha mãe chegou ao pé de mim, toda cheia de censura, ares de recriminação, e disse que lhe tinham contado que eu ia passear para a beira-mar. E disse-o como se a beira-mar fosse lugar de perdição e como se, por eu lá andar, estivesse a conspurcar-me. Aquilo ofendeu-me de uma maneira profunda. Em especial não consegui aceitar que a minha mãe desse ouvidos a quem lhe foi contar isso e viesse acusar-me nem eu sei bem de quê. Lembro-me que chorei de fúria. Queria que ela me dissesse quem tinha ido denunciar-me por coisa tão absurda. Não disse. Não sou, nunca fui, de armar zaragatas. Mas sou de tomar decisões irrevogáveis. 

Passear à beira-mar era um tabu. E eu e os tabus nunca convivemos amistosamente. 

Quando acabei o liceu, tornou-se muito claro para mim que tinha que sair de sob o jugo dos tabus. Resolvi que iria ficar numa residência de estudantes. Foi uma luta. Os meus pais não percebiam tal obstinação. Desculpei-me com o tempo que perderia em transportes e que seriam preciosos para estudar. Foi muito difícil. Mas consegui. Tinha dezassete anos acabados de fazer. Voltava a casa à sexta-feira e saía à segunda. O doce sabor da liberdade sempre foi imprescindível para mim.

Também quando deixei um namorado e comecei a namorar outro, a minha mãe preocupava-se com o que as pessoas iriam dizer. Outro tabu. Uma rapariga não podia ter mais do que um namorado e, muito menos, ser adepta do lema de rei morto, rei posto

E eu sempre me estive nas tintas para o que pensavam ou deixavam de pensar. A opinião censora e preconceituosa dos outros nunca foi coisa que entrasse nas minhas equações. Nunca me ocorre sequer recear o que pensem. Visto-me, penteio-me, faço o que quero, como quero, quando quero, com quem quero. Não tenho que dar satisfações a quem quer que seja sobre coisas que apenas a mim dizem respeito.

Ou, já quando trabalhava, ainda novinha, quando tinha que ir apresentar projectos à sala de direcção (com acetatos que se colocavam num retroprojector) e me recomendavam que fosse vestida de uma forma mais austera. Era coisa que, obviamente, me entrava por um ouvido e saía por outro. Nunca achei que uma mulher tivesse que se tornar menos feminina para progredir num mundo de homens. Nunca alterei a forma como me vestia, calçava, penteava, falava ou comportava. A toilette de fato completo cinzento com camisa branca nunca fez o meu género. Pelo contrário, vestia-me como me sentisse simultaneamente mais bonita e mais confortável. 

Uma vez uma colega mais velha disse-me: uma mulher aqui só progride na horizontal. Primeiro, nem percebi. Depois quis que me explicassem: porque dizia isso se não havia uma única mulher na direcção, muito menos na administração. Explicou-me que nem como chefe de secção. Disse-lhe que ela deveria passar a dizer: aqui, nem na horizontal, uma mulher consegue progredir. 

Quando tinha que ir a outros locais da empresa, ia muitas vezes com algum colega. Só tinha colegas homens pelo que só ia com homens. Mesmo ao estrangeiro. Uma vez, tínhamos ido a Zurique, o meu director da altura disse que a mulher lhe tinha dito para ele se portar bem. Fiquei espantada. Mas com quem poderia ele portar-se mal? Comigo não era com certeza. 

Progredi e nunca tive que me colocar na horizontal. Se calhar quebrei um tabu. Mas, se calhar, foi-me fácil porque sempre me marimbei para tabus. Não me esforcei, não alterei um milímetro da minha conduta. Simplesmente, não me intimidei. 

Os tabus são grilhetas que acorrentam a força de vontade das pessoas. Só que o mais dramático é que são grilhetas invisíveis, muitas vezes apenas existentes na cabeça das pessoas. Muitas vezes são as próprias pessoas que se acorrentam. E fazem-no apenas por medo. Medo da opinião dos outros, medo da rejeição, medo de não suportarem os olhares alheios, medo de não saberem o que fazer com a sua própria liberdade. 

Nas mulheres, medo de beber em público, medo de beijar um homem em público, medo de cortar ou pintar o cabelo de uma certa maneira, medo de receber certas pessoas em casa, medo de que não a achem um modelo de virtudes. Nos homens, medo de chorar em público, medo de receber um não, medo de errar, medo de terem que reconhecer que erraram, medo de precisarem de ajuda, medo que percebam que precisam de ajuda. 

Medos. Tabus. Barreiras intransponíveis ainda que invisíveis.

Para mim apenas desafios. Acho que o meu pequeno urso cabeludo também é assim. Se lhe digo que 'aqui não' ele faz de tudo para chegar ali, para pegar aquilo, para o arrastar para onde ele quer. Pode ser uma almofada, um soutien, uma meia, um sapato, o comando da televisão. Ultimamente é uma chávena que está na parte da vitrine que não tem porta. Eu zango-me, eu ameaço, eu digo: aqui não. E ele não desiste até levar a dele avante. É cá dos meus.

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Mas ninguém melhor do que as desempoeiradas e jovens Avós da Razão para dizerem o que fazer com os tabus. 

E para explicarem a relação entre os tabus e os sete pecados capitais (quiçá com os dez mandamentos).

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Desejo-vos uma boa quarta-feira -- sem tabus.

E com saúde, ânimo, boa disposição. Força aí.

quarta-feira, agosto 11, 2021

Ir ao dentista

 

Quando era pequena detestava leite. Dava-me vómitos. Na altura, o leite era fresco, do dia, tenho ideia que vendido porta a porta. A minha mãe fervia-o em casa. Depois aquilo formava uma nata que era cuidadosamente retirada, coada. Se eu sentia uma leve película na boca, ficava com vómitos. Só a perspectiva de, ao beber, sentir aquela coisa na boca, já de si me agoniava. Aliás, até o próprio sabor do leite me dava náuseas. A minha mãe servia-o morno e tentava várias aproximações: simples, com ovomaltine ou sei lá com o quê. Mas nada a fazer: eu detestava-o de todas as maneiras. 

Ou seja, pouco ou nenhum leite bebia. 

Quando andava na infantil e na primária, tínhamos um professor de educação física que nos punha a fazer desporto ao ar livre e nos levava à praia... e que nos fazia beber garrafinhas de leite ucal. Não sei porquê, não com chocolate mas simples. Odiava. O sabor daquilo dava-me ânsias. Não conseguia beber. Só da perspectiva de, no fim, ter que tentar beber aquilo, já a aula, que tinha tudo para ser boa, se tornava um bocado angustiante.

Apenas no fim da adolescência percebi que tolerava bem o leite magro, frio e sem açúcar. Mesmo o meio-gordo desde que frio. Mas não apenas não virei entusiasta como já lá cheguei tarde de mais. Por essa altura, já tinha também percebido que gostava mesmo era de iogurtes. 

A falta de leite na tenra infância e no início da adolescência teve consequências. Ainda miúda tive uma ou outra cárie. Não tinha qualquer medo de ir ao dentista. Estando os meus pais a trabalhar e tendo a minha mãe a absoluta responsabilidade de nunca faltar para não deixar a sua turma ao deus dará, coisa que eu compreendia e respeitava, lembro-me de ir ao dentista sozinha. Lembro-me também de no consultório se admirarem de eu estar sozinha. A mim não me fazia qualquer diferença. Ia na maior descontração, saía de lá com a boca ao lado da anestesia, e ia a pé, sozinha, para as aulas.

Apesar de tomar cálcio durante a gravidez e enquanto amamentava, quando teria o meu filho uns seis meses, tive ao mesmo tempo problemas em dois ou três dentes, já não me lembro ao certo. De facto, foram os 9 meses da gravidez da minha filha, depois 13 meses de amamentação, depois mais 9 meses da gravidez do meu filho e seis meses de amamentação dele. Muito consumo de cálcio para as minhas fracas reservas.

Ir ao dentista nessa altura, era para mim um sufoco, não por ter medo mas por ter falta de tempo. O dentista, por acaso da família, ficava longe do meu emprego e longe da casa dos meus sogros, onde o meu filho ficava durante o dia nesses primeiros meses. Na altura, deslocava-me usando transportes públicos. Saía a correr do emprego, apanhava autocarro ou eléctrico e metro. Depois do tratamento, mais metro e mais autocarro. Pegava no meu filho e iniciava o trajecto para casa, com o meu filho ao colo, indo, pelo caminho, buscar a minha filha ao colégio. 

Portanto, resolvi que, em vez de lá ir várias vezes para uma sessão de uma hora cada, deveria fazer umas três de seguida, por dia, e despachar o tratamento em muito menos tempo. O dentista tentou dissuadir-me, que era anestesia a mais, que o pós-anestesia seria complicado. Mas não conseguiu. Sem qualquer medo, sem me preocupar com consequências, fiz questão. E assim foi.

Na primeira e única vez em que ele foi na minha cantiga do 'condensado', quando saí de lá, vi que não estava bem. Contudo, a minha preocupação era recuperar os meus filhos e chegar a casa. Por essas alturas, o meu marido estava num trabalho novo, com muitas deslocações e frequentemente a ter reuniões com pessoas que vinham de fora e tinham o tempo contado pelo que as noitadas eram mais que muitas. 

Foram tempos muito puxados para mim. Mas os meus vinte e poucos anos e a minha vontade de que tudo se conciliasse -- vida familiar, vida profissional, vida conjugal -- tudo aceitavam e tudo ultrapassavam, sem qualquer aborrecimento ou drama.

Nesse dia, fui, pois, meio estonteada, meio nauseada. Mas, quando a gente quer chegar inteira a um lugar, a gente, quase sempre, consegue. Contudo, estando como estava, a verdade é que não sei como consegui chegar a casa. Mas cheguei. Deitei o meu filho na caminha dele e deitei-me, vestida, sobre a minha cama. Quase desmaiada, não sei como foi possível aguentar-me. A minha filha, três anos, sentada em cima da minha cama, descalçou-se sozinha e lembro-me de ver a areia que ela sempre tinha dentro dos sapatos a escorrer para a minha cama. O meu filho chorava, certamente cheio de fome, e ela brincava, metendo-se também dentro da cama, vestida, suja da escola, com bonecas, tudo na cama, uma festa. De vez em quando, conseguia, a muito custo, ir à casa de banho vomitar. E, agarrada às paredes e aos móveis, de novo para a cama. Na altura não havia telemóveis. Não me lembro se consegui telefonar ao meu marido. Tenho uma vaga ideia que sim e tenho uma vaga ideia de que, doente como estava, não consegui transmitir-lhe as dificuldades em que estava.

Não sei como me aguentei sem desmaiar nem sei como consegui aguentar os miúdos até que, finalmente, à noite, ele chegou.

Mas não ganhei aversão ao dentista. Continuei a não ter qualquer medo. 

A única coisa que me assusta é quando põem aquela massa horrível para fazer um molde para uma coroa (igual a esta aqui ao lado). Tenho medo que, quando aquilo solidifica e é preciso puxar, me venham os dentes todos atrás. Imaginar-me totalmente desdentada é assustador. E, quando me põem aquela massa e fico de boca aberta e com aquilo a encher-me a cavidade bucal, dá-me uns vómitos que não se aguentam. E só de me imaginar naquela figura, ao mesmo tempo dá-me uma vontade de rir que também não se aguenta. Ainda me lembro do dentista, porque o riso é contagioso, também rir a bandeiras despregadas, eu a rir, as lágrimas a correrem-me, pelo meio com vómitos, e a rir, rir e ele a rir, rir, também já com lágrimas nos olhos. Quem ali entrasse haveria de achar que só podíamos ser ambos malucos. Quando penso nisso, dá-me sempre vontade de rir. E também vontade de que não volte a ser necessário encherem-me a boca com aquela plasticina assustadora.

E isto só vem a propósito do vídeo que hoje, ao abrir o youtube, aqui me apareceu.

Os meninos do meu filho estiveram cá hoje de manhã e o mais pequeno insistiu para que o deixasse ver o Mr. Bleen (como ele diz). Então, enquanto tive que fazer um telefonema, pedi para o mano do meio, lhe pôr o Mr. Bleen no meu computador. Riram os dois de gosto e eu, quando me despachei do telefonema, ri-me também. Agora, por ter percebido estes meus gostos, o algoritmo tinha este para me mostrar. E eu, como sempre, apesar do sono com que estou, já me fartei de rir. Não consigo responder a comentários e mal me aguento de olhos abertos.... mas rir, isso não há quem me trave.

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Já agora, se me permitem, um momento publicitário:


E, olhem, só mais este, ok?


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Desejo-vos um dia feliz
Risota. Sorrisos. Galhofa. E saúde.

domingo, dezembro 13, 2020

Memórias e medos a caminho de um heaven transbordante de cogumelos mágicos

 


Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte. 

Depois foi um acidente grave que aconteceu ao irmão da namorada de um dos meus tios, aquela que veio a casar com ele e de quem eu ainda sinto muitas saudades, custando-me, por vezes, até a acreditar que já se tenha ido, tão alegre era e tão saudável parecia. Ficou paraplégico, esse irmão dela, o mais novo de cinco irmãos. E eu, que o conhecia bem, um jovem simpático e tímido, ao ver a consternação de toda a gente, dos meus pais, dos meus avós, dos meus dois tios, jovens como ele, fiquei soterrada pela dor que sentia em toda a gente. Esteve internado durante muito tempo. Eu desejava que ele não regressasse, antevendo já o terror que nasceria da proximidade. Lá por casa, sabendo-me muito sensível a esses sofrimentos, escondiam de mim, falavam por meias palavras ou em voz baixa. Eu ouvia, pressentia, adivinhava. Os pais dessa que viria a ser minha tia, face ao estado em que tinha ficado o filho, tiveram que mudar de casa. Era uma casa térrea que ficava na mesma rua que a escola infantil em que eu andava. E eu, a partir daí, passei a ter medo de ir para aquele lado do recreio com pavor de o ver ou de me aperceber que alguma coisa de grave estava a acontecer. Mas devia perceber que, se falasse neste meu terror, preocuparia os meus pais. Por isso, calava-o, escondia-o.

Depois foi o pai de uma colega de escola, uma a casa de quem eu ia muito até porque, por coincidência, também morava perto da escola. Além disso, ele era colega do meu pai. Eu percebia que se passava alguma coisa de grave e morria de medo. Nunca mais lá fui a casa, para desgosto da minha colega. Nem falava com ela na doença do pai com medo de descobrir que a morte rondava a casa. Quando ele morreu, a minha vontade era não ir à escola. Fui mas nem olhava para a rua, aturdida de pavor. E quando ela regressou à escola nunca falei na morte do pai com medo de saber pormenores e com uma pena imensa por ela já não ter pai e porque tinha ouvido dizer que ele estava muito magro, irreconhecível, e que tinha muitas dores.

Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu. 

Feridas, chagas, sofrimentos terminais, tudo isso sempre me aterrorizou. Mas só nos outros. Penso que, no fundo, sobretudo, tinha medo de deixar transparecer o meu medo e que as outras pessoas se sentissem ainda piores por verem os cuidados e medos que me inspiravam. E a verdade é que penso que isso ainda subsiste em mim, embora mais controlado.

Comigo, no entanto, não existe esse medo. Em mim, suporto relativamente bem a dor física, tenho uma certa coragem e desprendimento em relação a mim própria.

Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto. 

Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros. 

Corria muito, descia a correr por veredas, voava pelo campo em descidas acentuadas, subia muros e árvores, brincava muito, caía muito, esfolava-me toda. Para não assustar os outros, não chorava. Tenho os joelhos com marcas, tamanhos os ferimentos que fiz. Por vezes, infectavam. Os meus pais desinfectavam, muitas vezes com tintura de iodo, que me ardia e magoava muito. Lembro-me, em especial, já andava na primária, de um ferimento profundo que fiz num dos joelhos. Estava ainda a cicatrizar, voltei a cair, entrou areia. Infectou, já tinha pus. Pedi, então, ao filho de uma vizinha da minha avó, um recém adolescente, que tratasse de mim para não preocupar nem a minha avó nem os meus pais. Ainda me lembro: eu sentada num muro, ele com um pauzinho a retirar os grãos de areia da carne viva. O que me doía... Depois ele foi a casa buscar mercurocromo. Quando a minha mãe viu o estado em que aquilo estava, ficou toda zangada. Eu não me queixava. Por causa disso, não tive tétano por um triz, tendo que ser levada, a meio da noite, de urgência, para o hospital, onde, a custo, me espetaram uma seringa na barriga.

E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria. 

Em contrapartida, mantive-me medrosa em relação aos outros. Por exemplo, com os meus filhos sempre fui de uma fragilidade total, por vezes absurda. Mal tinham alguma coisa, logo eu ficava num estado de nervos que frequentemente não era proporcional ao mal que os assolava. Penso que notoriamente vinha desses tempos primordiais em que o medo me estrangulava. Mas nem era preciso ser alguma coisa de especial: bastava uma coisinha. Lembro-me, por exemplo, do que eu sofria quando eles tinham os dentes quase a cair. Nunca fui capaz de os ajudar a tirá-los. Uma vez a minha filha tinha um dente preso por um fio. Já nem conseguia comer. Estávamos numas termas (um tempo abençoado, esse). E estávamos a almoçar no restaurante de lá. Com o dente preso por um fio de carne, fomos as duas ao quarto a ver se conseguíamos resolver aquilo. Mas qual quê... Só a perspetiva de poder magoá-la me deixava transida. Ela a querer que eu puxasse e eu aflita. Pior: já a sentir-me mal, quase a desmaiar. A miúda, pequena, a tranquilizar-me e a incentivar-me e eu está quieto. Tive que me sentar na cama e ela, corajosa, ao espelho, teve que resolver, sozinha, o assunto. Às vezes ainda fala disso. Uma vez foi o meu filho. Também caiu de um banco na cozinha, a mesma coisa que eu. Só que se magoou num dedo, cortou-se. O meu pânico ao ver como ele tinha o dedo, ao pensar como lhe devia doer, a minha aflição quase despropositada. Felizmente não sou de exteriorizar senão ainda mais ridículo ficaria. Fico transida, sem falar, simplesmente num temor enorme.

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E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.

À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa. 

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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata. 

Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.

A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.

E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me. 

Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior. 

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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven e acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita

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Desejo-vos um belo dia de domingo, sem medos.

Saúde. 

segunda-feira, dezembro 03, 2018

Paula Rego


Uma vez, numa tarde dourada, ao fim do dia, no Palácio Fronteira, uma festa, um conjunto de pessoas circulando no belo jardim, conversando, visitando os recantos, vendo os azulejos. Já em tempos falei neste dia especial: era o dia do lançamento de um livro muito bonito. Antonio Tabucchi escreveu a história e Paula Rego ilustrou. Tão, tão bonito. 'Fogo'. Um livro ímpar que para sempre associarei àquela tarde tão agradável.

Estavam lá, eles. Tão simpáticos. Autografaram o meu livro. Sorriu, ele, e o sorriso era envolvente. E Paula Rego olhou para mim a sorrir, gostou do meu nome, disse-o. Depois, passado um bocado, Paula Rego disse que estava com o rabo frio, estava sentada num banco de pedra, que nem sabia se tinha o rabo molhado, se tinha feito xixi. Mas claro que não tinha, a pedra do banco é era fria. E toda a gente se riu com a sua genuinidade.

Estive a ler a entrevista no The Guardian. Paula Rego: It isn’t nice in my mind'
Visceral and unsettling, Paula Rego’s art has challenged us for decades. Now, at 83, she talks about cruel fables and the medicinal joy of champagne.
Gosto tanto das suas pinturas, gosto tanto da sua loucura, da sua mente aberta, da sua forma, autêntica e quase infantil, de ser. E gosto dos adereços que ela arranja para compor as suas personagens e os ambientes em que elas se enquadram. Gosto de tudo. Há quem ache horrível, quem não veja ali beleza. E eu vejo beleza de mais, vejo a transcrição de pessoas reais, de pernas e troncos grossos, feições rudes, gente sofredora, revoltada, desafiadora, vejo irreverência, descaramento, gozo, puro gozo.


The only thing that helps is the work’: Paula Rego. Photograph: Phil Fisk for the Observer

Adereços do atelier de Paula Rego que têm entrado nas suas pinturas

‘I like the idea of the man having the baby and his gut bursting – serves him right’: a shot from the 1960s with Rego, her son Nick Willing (left), two daughters, and late husband, Victor (right).
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E até já.

domingo, outubro 28, 2018

Miaauuuuuuuuuuuuuuuuuu....




Não foi a primeira vez. Aliás, foi por causa do que aconteceu na primeira vez que passámos a ter o portão fechado à cheve. 

Nessa vez, estava um dia de muito calor. Estávamos na cozinha a almoçar, só os dois. Às tantas ouvimos uns ruídos, depois passos e, no instante em que olhámos um para o outro a tentar perceber o que se passava, já um homem corpulento, de espingarda na mão, afastava o reposteiro e assomava à porta. Apanhámos um susto. Levantámo-nos precipitadamente sem saber o que nos esperava. Mas o homem, percebendo que nos tinha assustado, pediu desculpa e perguntou se deixávamos que os cães bebessem água, e com ar aflito, disse que uma cadela já tinha morrido. E logo saíu.

Sem percebermos bem o que se estava a passar, fomos atrás dele. Saíu em direcção a uma carrinha, abriu as portas para soltar os cães mas eles mal se mexiam. O meu marido levou a mangueira, abriu a água, molhou os cães, deu-lhes de beber. Passado uns instantes estavam como novos. Mas o homem estava francamente enervado, talvez até mais enervado do que desolado. Explicou que depois da caça, tinha deixado os animais na carrinha enquanto tinha ido dar uma volta para explorar melhor o local, que depois tinha ido comer uma bucha, que nunca tinha pensado que o calor fosse tanto a ponto de um dos animais morrer.

No meio daquele culpabilização e desgosto dele não íamos dizer que podia ter tocado à campainha antes de entrar por ali como se nem tivesse que pedir licença pois imaginámos a aflição dele ao chegar ao carro e ver um dos animais já morto e os outros quase inconscientes.

Mas, independentemente da situação que talvez justificasse a invasão, os caçadores, tenho ideia, são um bocado assim: tendem a achar que é tudo deles. Foi também por causa dos caçadores que resolvemos vedar esta parte do terreno onde está a casa. Era frequente darmos com eles por aqui, eles e os cães, perseguindo os coelhos. Tinha pavor que os miúdos andassem por aí em dia de caça. O meu marido passava-se com eles, exaltava-se, dizia que tinham que respeitar a distância à cada, que estavam a pedir sarilhos. Lembro-me de um, furioso, se virar para e e lhe perguntar: 'Essa é boa, e ia deixar aqui os coelhos, não?'. Um perigo, gente assim. Eu mesma me peguei várias vezes com eles, ameaçando chamar a guarda.

Vedámos, então, esta parte do terreno mas volta e meia detectamos cartuchos e percebemos que estiveram cá dentro. Lá mais para o fundo, em baixo, ainda não há muito, o meu marido andou a reparar a vedação pois, em baixo, havia uma abertura, certamente para os cães poderem entrar.


Pois bem,  De novo. Só que, desta vez, como o portão está fechado, a pessoa tocou à campainha e o sino. Tão insistentemente que me assustei.

O meu marido andava lá para baixo. Eu estava ainda na cama. Com os dias que tenho tido, o que me vale são os dias do fim de semana em que posso dormir até mais tarde. Apressadamente, enfiei umas calças, vesti a blusa e fui à rua ver o que se passava. Por precaução, levei o telemóvel.

No portão, uma criatura grande, de sexo indefinido. Não percebi se era um homem com feições e corpo vagamente femininos, se uma mulher enorme, masculinizada. Estava com um daqueles fatos de tipo camuflado, boné, e segurava uma espingarda. E tinha uns quantos coelhos pendurados à cintura. Ao colo, um cão que gania.

Com ar preocupado, perguntou se eu tinha alguma coisa com que pudesse tratar a pata do cão que, pelos vistos, estava cortada. Vi sangue e uma ferida um bocado assustadora. Perguntei se não era melhor procurar um veterinário. Perguntou se sabia de algum ali perto. Não sabia. Abri o portão e fui buscar algodão, água oxigenada, betadine. 

Continuei sem perceber se era homem ou mulher. A voz era indefinida e desagradável. Pousou a espingarda, pôs o pé em cima do banco, deitou o cãozito na perna, segurando-o para que eu pudesse limpar e desinfectar o ferimento.

No momento em que me aproximei, tive uma visão aterradora. No meio dos coelhos pendurados à ilharga, outra coisa. Dei um salto. Apontei: 'Que é isso?!' e só me apetecia empurrar a criatura para bem longe. Respondeu com naturalidade: 'Um gato'.  Horrorizada, quase gritei: 'Que é um gato já eu vi. Mas matou um gato e trá-lo aí, como se fosse uma peça de caça?'. Respondeu: 'Que mal tem? Qual a diferença? Gato ou coelho, tudo igual, sabe tão bem um como outro.'

Passei-lhe o algodão com água oxigenada para a mão e quase empurrei a criatura do portão para fora. O cão cania. Fiquei com o chão cheio de sangue. Já do lado de fora, ainda me disse, com voz sarcástica: 'Obrigada, ouviu? Já percebi que não aprecia o pitéu. Mas se quiser um casaco de pele de gato, diga, que já lá tenho que chegue para um'.

Nesse instante, agoniada e aterrorizada com tanta perversidade, ouvi nitidamente um gemido que me deixou transida e que, não duvido, era um miar de gato.


sábado, outubro 27, 2018

Em terra de cegos, quem tem um olho...





Há agora muitas trotinetas em Lisboa. À noite têm luzinhas e parecem pirilampos deslizando pelos passeios da Baixa. A paisagem urbana vai mudando e eu gosto cada vez mais dela. Não é bom trabalhar até tarde mas é bom, no regresso, andar na bela cidade ao cair da noite. Há qualquer coisa de mágico nisso.

Calhou esta semana ter que atravessar a cidade a meio da tarde e ter tempo para ir pela beira do rio. Uma cidade luminosa, aberta ao mundo. Muita gente desfrutando o sol, deitada na relva, estendida na amurada, andando devagar, conversando, fotografando. Sempre gostei de cidades grandes, com muita gente de passagem cruzando-se com quem a habita ou nela trabalha. Gosto de me sentir também de passagem. Estou de passagem. Se calhar já vivi na época vitoriana frequentando animadas tertúlias, se calhar ajudei a contribuir para a fama das etruscas, se calhar fui monja e escapei-me por corredores labirínticos. Mas, entre todas as minhas vidas, vou passando  com o vagar possível, olhando bem a beleza dos lugares, sentindo o perfume do ar em que vivemos.

Cheguei a casa depois da uma e meia da manhã. Estava desejando despir-me, desapertar-me, descalçar-me. Mal me sentei aqui para espreitar em que param as modas, adormeci. Um bocado antes tinha acontecido o mesmo com os meus meninos. Depois de terem brincado na maior vivacidade, caíram na cama e adormeceram instantaneamente.

Foi longo e muito bom este meu dia. Estar com os meus, ver como gostam de estar juntos, ver como estão bonitos e crescidos é para mim felicidade suprema.

De tarde, tive duas reuniões, a segunda das quais com um homem relativamente jovem, muito alto e parecido com um guerreiro árabe, cabeça rapada e grande barba. Há uma primeira vez para tudo e aparecer num lugar daqueles alguém com aquele ar foi decididamente uma première. Simpatizei com ele. Parecia caído de um outro mundo. Ria muito, muito bem disposto. Acho que não percebeu como estava ali deslocado.

Quando a reunião acabou, despedi-me e acompanhei-o à porta. Nessa altura, meteu a mão no bolso para me entregar um cartão. Nessa altura, alguma coisa veio atrás e caíu para o chão, saltitando como uma pequena bola. Era de facto uma estranha pequena bola. Pareceu-me um olho raiado de sangue. Nessa altura, ele pareceu assustado ainda mais assustado que eu. Apanhou rapidamente a pequena esfera e meteu-a no bolso. Fiz de conta que não reparei e ele nada disse. Quando ia despedir-se de mim fez o gesto de me ir beijar. Estendi-lhe a minha mão, forçando-o a recuar. Sorriu, então, com um ar perverso como se quisesse que eu percebesse que ele tinha captado o meu receio. 

Quando cheguei ao meu gabinete, inquieta, espreitei pela janela. Um outro, que me pareceu exactamente igual mas vestido de outra maneira, esperava no passeio. Estava de costas. Depois aquele que tinha estado comigo chegou, bateu-lhe no ombro. Nessa altura, o outro virou-se. Tinha uma pala preta a tapar um dos olhos. 

Um arrepio percorreu o meu corpo.


quarta-feira, novembro 23, 2016

Medo




Não gosto de me vitimizar. Muito sinceramente penso que isto é coisa da minha natureza: acho que a pele de vítima não me assenta bem.

Contudo, a verdade é que, em geral, sempre achei que nem teria razões para isso; e, nas poucas vezes em que achei que seria razoável que me fosse abaixo, pareceu-me que seria absurdo puxar a mim o mau da situação ou os males do mundo e, por isso, segui em frente, se calhar, como se não fosse nada comigo. Aliás, arreliam-me imenso as pessoas que perante uma desgraça, desvalorizam o acontecimento, emoldurando antes a sua própria experiência pessoal. Por exemplo, se há uma trovoada desgraçada, queda de raios, árvores esfaceladas, casas inundadas, que sentido tem uma pessoa reduzir isso ao que se passou consigo própria: 'eu estava em casa e, quando ouvi aquele trovão maior, até dei um grito e encolhi-me e fiquei a tremer'? Todos nós as conhecemos (na família, na vizinhança, no trabalho ou, mesmo na blogosfera), as pessoas que querem sempre ser as mais infelizes, as mais desgraçadas, as maiores vítimas.

Fatigam-me um bocado, pessoas assim. Acho-as um bocado egocêntricas.

Eu sou o oposto. Não o digo com vaidade porque não apenas não é coisa voluntária, como nem sei se isso é grande coisa. Mas é o que é. Geralmente, em alturas em que seria normal eu mostrar medo ou preocupação, mostro-me surpreendentemente neutra -- quando não calma, imune aos riscos ou superior às emoções.

Posso ver à minha volta pessoas a chorarem, desoladas, a gritarem umas com as outras, num stress, ou numa aflição, a acharem que vai acontecer uma qualquer desgraça, e eu vejo-me como se fosse desumanamente fria ou -- como a minha mãe às vezes diz -- excessivamente racional.


Por vezes é quando tudo passou que, por um qualquer insignificante motivo -- e em privado -- me vou abaixo. Então, posso chorar como se fosse o fim do mundo. Mas, uma vez o choro acabado (e isto pode durar uns cinco minutos), fico fresca como se nada se tivesse passado e, geralmente, já nem me consigo lembrar do que provocou aquela breve fractura emocional.

No trabalho, tenho uma característica que, se eu conseguisse ver-me de fora, me faria assustar. Abomino aquele tipo de cautelas que levam a que, para não assumirem responsabilidades, por tudo e por nada, os gestores recorram a consultores externos. Cautelas ou cobardias. Os consultores começam por fazer levantamentos, depois fazem muitos power-points, produzem muitos entregáveis, falam em quick wins e tretazecas -- e recebem muito dinheiro. Tudo espremido geralmente não vale um caracol e qualquer gestor com um mínimo de testículos (metafóricos) teria feito dez vezes aquilo, em dez vezes menos tempo e a custo marginal nulo.


Portanto, quando tenho carta branca, faço o oposto. Mas completamente o oposto: é com a prata da casa e é para a frente, à bruta e sem medo. Acontece, no entanto, uma coisa: quando estou no rebentar da onda, naquele momento em que não há volta atrás, em que já envolvi todo o mundo de uma forma irreversível, dou por mim a pensar: 'caraças, outra vez; que risco estúpido; e se isto não corre bem?' e aí, sem que ninguém o suspeite, sinto um medozinho agudo no estômago. Mas bola para a frente porque para a frente é que é caminho. E, se correr mal, remedeia-se.

Isto a nível profissional ou social.

Mas já senti medos agudos, daqueles que nos apertam o peito, o pescoço, o estômago e, em boa verdade, todo o corpo por razões um bocado à toa.


Quando os meus filhos eram adolescentes, era uma luta interna que eu travava. Iam sair à noite, cada um com os seus amigos ou amores. Normal. E eu pensava que era bom que saíssem e crescessem.  E tudo bem. O pior era  resto. Se se atrasavam, eu ficava num pânico crescente. Ao meu lado, na cama, o meu marido dormia a sono solto. E eu ficava a ver as horas a passarem, acordadíssima, incapaz de dormir, a ouvir o elevador, a tentar perceber se ia parar aqui à porta, se eram eles, e via e revia as horas... e esperava até achar que não aguentava mais e que tinha que acordar o meu marido. Por vezes virava-se para o outro lado e continuava a dormir, outras vezes também se assustava.

A minha filha padeceu mais do que o irmão com estes meus medos. Tinha medo que ela andasse na rua, tinha medo que algum meliante estivesse na escada, tinha medo que alguma coisa lhe acontecesse. Medo, medo. Quando ela chegava mais tarde, dava-me umas fúrias pelos riscos que eu achava que ela tinha corrido e pelo que ela me tinha feito sofrer; e, não raras vezes, a coisa dava para o torto, mal a ouvia a abrir a porta. Sublimava o medo em fúria, porque ela não percebia os riscos que corria, porque ela não queria saber dos meus conselhos para nada. 

Quando chegou a vez do meu filho, quase três anos mais novo, já eu tinha aprendido a controlar-me um bocado melhor. Além disso, sendo muito alto e tendo aprendido artes marciais, achava que ele tinha mais possibilidades de se defender. Tinha medos, só que eram outros: que bebesse, que fizesse disparates, que houvesse algum acidente. Ao fim de semana chegava, por vezes, madrugada alta ou de manhã. As minhas noites eram passadas em branco, numa inquietação.


Pior ainda foi quando deixaram de ir connosco para o campo e ficavam de me ligar mal entrassem em casa. E ele, volta e meia, esquecia-se ou ficava sem bateria ou qualquer coisa e não ouvia nem atendia o telemóvel. Chegou uma altura em que a minha filha já não morava connosco e, portanto, nestas aflições eu não tinha a quem ligar para ir ao quarto dele ver se já tinha chegado. Muitas vezes, cheia, cheia de medo, depois de já lhe ter ligado umas 20 vezes para o telemóvel, já queria que nos metessemos no carro para vir à procura dele. Até me custava a respirar, tanto o medo que sentia. Por acaso, felizmente nunca tal foi necessário porque aconteceu sempre que, por fim, lá atendia, todo aborrecido por ver mil chamadas minhas no telemóvel.

E medos também senti quando os meus pais estiveram doentes e tocava o telefone fora de horas: ficava gelada, transida, à espera que fosse alguma notícia terrível. 

Tirando isso, não me lembro de muito mais medos. Não me lembro de ter medos quando era miúda.

Por vezes, quando o meu pai ia à pesca de noite, ficava preocupada porque ele nunca mais chegava. A minha mãe era para o lado em que dormia melhor. Eu não, ficava a vigiar os sons de carros na estrada. Mas não sei se isso era medo. Acho que era preocupação.


Quando tinha para aí uns doze ou treze anos, tinha aulas de manhã e a minha mãe dava aulas de tarde; nessa altura, ainda não saía para ir ter com o meu boyfriend, passava as tardes em casa, sozinha, a ler. Lembro-me de ter lido o Allan Poe e de ter ficado com um bocado de medo de sair da sala ou do quarto para ir lá dentro, tendo que atravessar o que, na altura, me parecia um longo e perigoso corredor. Imaginava que saíssem braços da parede, que ouvisse gemidos, que visse sangue a sair de debaixo de algum móvel.

Tirando isso, medos de jeito, acho que não tive. E sinto-me afortunada e agradecida.

Uma vez uma Leitora contou-me que andava sempre com medo, que sentia uma angústia um pouco inexplicável, como se qualquer perigo estivesse sempre iminente, que mal acordava já se sentia cheia de medo. Li também, uma vez, uma entrevista com Manuela de Freitas na qual ela dizia que tinha vivido parte da sua vida com essa insidiosa sensação de medo dentro de si. Deve ser uma coisa horrível. Imagino que uma pessoa nem consiga ver o lado bom da vida, nem estar descontraída a sentir a simples felicidade de viver. Na ausência de motivos concretos, não sei se isso é sintoma de depressão ou se é coisa que se cure mas imagino que, quando doentio, o medo possa ser tratado.

E a ausência de medo festejada.

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Vem isto a propósito de um vídeo que vi. Depois de uma mal sucedida aventura doméstica -- que pôs o meu marido fora dele e a mim a rir -- vim aqui para a sala.

Mas, antes do vídeo, conto a aventura.

Ontem, quando depois de jantar lavei a louça, ele foi buscar a esfregona e disse, com ar censório, que eu, a lavar a louça, tinha sido uma festa. Não percebi. Disse-me, então, que o chão ao pé do lava-louça estava molhado. Não tinha dado por nada. Nem liguei. Aliás, acho que lhe perguntei se achava que, por causa de uma mísera gota de água, valia a pena pôr a nossa relação em risco. E saí da cozinha. Quando chegou à sala, ironizou: afinal, a tal simples gota de água que quase fizera perigar o nosso casamento, era um cano roto debaixo do lava-louça.

Hoje apareceu com um tubo (uma bicha?) e resolveu provar que é sempre bom a gente ter um homem em casa. Enfiou-se lá por baixo, praguejou, pediu-me ajuda e... no fim, em vez de gotejar, aquilo começou a escorrer água franca. O alguidar que se pôs por baixo, rapidamente ficou a transbordar. Passado um bocado, fui ao lava-louça e a torneira também já estava meia desmanchada. Perguntei se teria também que tirar a pedra da bancada. Não achou graça.

Agora não se pode, pura e simplesmente, usar o lava-louça. Mas não faz mal, amanhã lavo a fruta do pequeno almoço no lavatório da casa de banho. A louça posso lavar no bidé. Claro que, chegado a esta fase, já não aceita que eu goze com ele, está furioso. Diz que se calhar o problema está na bicha, que tem que trazer outra. Colecção de bichas cá em casa, portanto. E mais não digo porque ele lê isto e vai ficar fulo por eu estar a desvalorizar os seus fantásticos dotes de canalizador. Não estou nada. Acho até que fez um lindo trabalhinho. 😂

Mas, dizia eu, cheguei aqui e pus-me a ver vídeos e dei com este aqui abaixo, no qual Paula Rego fala do medo que sente.

(E, então, deu-me para escrever o que acabaram de ler.)

Paula Rego on Fear


Pintar para dar um rosto ao medo


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As pinturas que mostram o rosto do medo são de Graça Morais - mas o Corvo é de Karen Margulis e o Grito que é de Edvard Munch.


A música lá em cima é de Ry Cooder e faz parte da banda sonora de Paris, Texas.

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