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terça-feira, outubro 20, 2020

Máscaras, nudez, nostalgias --- na companhia de uma certa Miss



E é isso. A nostalgia parece estar a tomar conta de mim. O dia esteve cinzento, chuviscoso, e isso não ajuda. A seguir ao almoço já estava a escurecer. Depois veio o vento, a chuva forte. 

Não consegui dar o meu passeio. Estive em reunião até tarde. A última era relevante e não correu como eu queria. Visões antagónicas. Do meu lado a urgência, do outro a procrastinação. Do meu lado o achar que o mundo pode acabar amanhã e que nada deve ficar por fazer. Do outro, o deixar andar. Em tempos ficaria doente de contrariedade. Agora não. Aceito. Contrariada mas não doente. No meu íntimo, ensaio retaliações, ameaças. Mas talvez, também eu, não faça nada. A ver no que dá. Não é a minha maneira de ser mas, com o tempo, vou aceitando que, por vezes, não há outra forma de viver. 

Ao fim da jornada, depois das reuniões, calcei umas meias quentinhas, fiquei logo mais confortável. O tempo vai passando, sim, e já que não o podemos deter, o melhor é que nos sintamos bem, aconchegados. 

À noite dei uma volta pelas janelas a ver se estavam bem fechadas. A Bárbara anda por aí a escoicear e a espumar e nunca se sabe o que poderá fazer se encontrar uma janela aberta.

Antes da hora de almoço, no intervalo entre reuniões, muito a correr, fiz uma sopa. Costumo usar, para base, abóbora ou cenoura e mais courgette, cebola, chuchu. Hoje usei cenoura. Como, no outro dia, não encontrei courgette, usei nabo. Usei dois. Por isso entre o doce da cenoura, da cebola e do chuchu e o intenso do nabo, ficou um agridoce agradável. De verdes usei feijão verde e umas quantas ervilhas. Ficou boa. Era para ir à horta buscar hortelã mas não quis molhar-me, não fui. A ver se amanhã consigo lá ir. A sopa fica mais airosamente perfumada com uma raminha de hortelã. 

Comi uma taça de sopa, um resto do arroz de tamboril de ontem, uma maçã 

A seguir ao almoço, fiz um estufado de cachaço de porco, cortados em pedaços, generosamente envolto em três grandes cebolas brancas, doces, dentes de alho, salsa, coentros, folhas de louro, orégãos, vinho tinto e azeite. Cerca de duas horas em lume brandíssimo. 

À noite, para o jantar, num outro tachinho, coloquei parte do molho da carne numa caneca que completei com água e uma outra só com água. Quando ferveu juntei feijão verde cortadinho, cenoura picadinha, um pouco de bacon também aos bocadinhos e deixei um pouco a cozinhar. Depois juntei uma caneca de arroz basmati e um pouco de sal. Quando ferveu, baixei. Passado um bocado juntei bocados de carne e misturei. Ficou um belo arroz de carne. 

No tacho original ficou ainda um bom bocado de carne que talvez amanhã ou depois acompanhe com uma esmagada de batata doce.

De tarde, enquanto estava a ter as reuniões, ia sentindo o cheirinho do estufado a apurar, ia vendo a chuva a cair, as folhas gotejando, o vento a soprar. É uma forma de vida algo bizarra. Poderia estar no escritório mas sou muito mais produtiva em casa. E estou próxima, tête a tête com os demais participantes. A tudo nos adaptamos.

Mas, de vez em quando, apetecia-me era pôr-me a ouvir uma música, deixar-me ficar a olhar o escuro a descer sobre o verde choroso que via da janela, deixar-me ficar entregue aos meus pensamentos. 

Enquanto estava a ter as ditas reuniões, todos distantes uns dos outros, todos de cara destapada, sem máscara, a vermos os semblantes uns dos outros, os olhares, pensei que antes não estava tão próxima, a observar tão de perto os meus interlocutores como estou agora. De tarde, numa reunião que, por sinal, correu bastante bem, eu em minha casa, mas apenas com parede e um quadro escondido atrás de mim, outro também em casa mas com um cenário surreal por detrás, o mais desadaptado possível, outro na sala, com os bibelots à vista, umas flores algo peculiares, outro também em casa com uma estante meio desarrumada atrás. E, no entanto, como a reunião foi participada, todos em articulação, todos com vontade de remar para o mesmo lado. 

Em contrapartida, com isto da covid, se a conversa é ao vivo, estamos forçosamente mascarados, apenas os olhos a descoberto -- mas os olhos a descoberto ficam desarmados, incompletos. A máscara é um estorvo para a alma. Quando nos mascaramos, há algo de nós que sabemos ser incompleto, perdemos a naturalidade. Apenas a nudez nos permite a entrega, mesmo que, no caso, seja a nudez do rosto. Por isso, parece que, agora, estamos mais próximos quando estamos mais distantes, sem necessidade de máscara. 


É como quando leio algumas coisas. Apesar de tão distante, sinto-me, por vezes, tão próxima. E, no entanto, não sei quem escreveu, desconheço. Tudo tão estranho, isto, não é? 

Se calhar é isso: sinto alguma nostalgia dos tempos em que as minhas coordenadas eram outras mas, estranhamente, não sei se esse tempo era melhor do que este agora. Estou um pouco perdida, confesso.

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Pinturas de Ian Lawrence ao som de Solitude por Nina Simone

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Chego ao fim destas palavras vagabundas e fico a pensar que quem lê deve chegar ao fim, se é que chega, e deve pensar: tempo perdido, tirando o que não é dela, nada se aproveita. Compreendo. E, por isso, para tentar compensar, permitam que partilhe o trailer de um filme que, cá para mim, vai dar que falar. Mais um filme do Rubem Alves: Miss. Mais um que gostaria de ver no escurinho do cinema.


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E uma boa terça-feira.

[Quid faciemus? Aprendemos a controlar o medo, aceitamos a nudez, a proximidade]