terça-feira, abril 30, 2013

Fiz mais um ano de casada e viemos comemorar, só os dois, no Portugal profundo. Uma escapadinha. Dias felizes. E que venham muitos mais! (Um desafio: alguém conhece estes maravilhosos locais?)


Caso queiram tentar ajudar-me a desvendar o mistério das palavras encriptadas do Cavaco, um dos membros da mal afamada dupla Passavaco & Cavapasso, é favor descerem até ao post abaixo.

Aqui, agora, a conversa é outra. Falo-vos do que andei a fazer no meu milésimo aniversário de casamento. Não... estou a brincar... qual milésimo? Nem décimo, talvez um ou dois.

A sério: foram mais do que 20
(mas não parece nada, foi há tão pouco tempo)

Música, por favor




Não posso dizer-vos ao certo quanto anos já festejei senão ainda pensam que sou do tempo da implantação da República.



Num dos sítios por onde andei, na Praça da República (1910),
existe uma placa referindo a passagem por ali, em 1990, de Mário Soares
e eu pergunto-me: depois disso mais ninguém ligado ao poder por ali passou...?
Se calhar não.


De facto, embora já seja casada (e sempre com o mesmo herói, um resistente...) há resmas de anos, a questão é que (na maior parte dos dias) ainda não estou a cair da tripeça, não ando (sempre) de óculos, ainda ouço bem, não ponho a dentadura num copo de água, não uso carrapito grisalho nem um xailinho nos ombros (excepto se a toilette o solicitar, claro) nem uma mantinha nos joelhos (excepto se o frio o justificar): e tudo isto porque casei quando ainda era menina e moça.

Adiante: desde sempre, se nenhum compromisso de um ou do outro não o impedir, reservamos estes dias para nós. Vamos para longe. Tempos houve em que saíamos do País. Agora a opção é outra: mergulhamos no País. 

Cada vez gosto mais do meu País.

No sítio onde tenho estado nos últimos dias (e esta terça feira já rumamos a sul), acordo, vou à janela e fico logo feliz: cabritas brancas sobem a verde encosta aqui em frente da janela.



Dizem que estes são os domínios da chanfana
mas eu, depois de ver a inocência alegre das cabrinhas maltesas, não me aventurei por aí


Aqui a natureza é muito limpa, muito verde, há muita água, pequenos rios que correm com força e, ao caminharmos, há sempre a música forte e genuína da água saltando sobre as pedras, pequenas quedas, tudo muito puro.



Por aqui andamos os dois, passeando, caminhando
pelas margens destes rios límpidos e vigorosos


Ao passarmos nalgumas ruas de pedra, ruas íngremes, onde apenas o som da água e dos pássaros se faz ouvir, geralmente não nos cruzamos com ninguém. As pessoas estão recolhidas em suas casas ou trabalhando longe dali.

De vez em quando, ouvindo os nossos passos, algumas cabras vêm cá fora espreitar e olham-nos com olhos espantados, inteligentes. Não nos conhecem e não sabem ao que vamos, andando por aqueles sítios onde não passa vivalma.



Diziam elas, uma para a outra:
Ó vizinha, mas quem são estes? Já os tinha visto por aqui ...?
 Mas que anda esta gente a fazer por aqui? Gaivotas em terra...?


Claro que, na vila, já se vê uma ou outra pessoa mas, ainda assim, a admiração também é grande (NB: volto a dizer que, se alguém que apareça nas minhas fotografias o não permitir, bastará que me escreva que eu logo as retirarei)




Outros resistentes como nós.
Um casal peso pluma, unidos, a mesma expressão, quase iguais:
anos de empatia, sintonia e cumplicidade é no que dá


E depois subimos aos castelos que parecem castelinhos de cinema, castelos em cima de rochedos de onde se vêem as aldeias e os montes.



Dali de cima avista-se o mundo
As pedras têm muita história e são eternas, talvez por estarem já dentro do céu


Passear por estes caminhos, nestas estreitas estradinhas, muito íngremes, tudo muito verde e sempre a água a correr, é um sonho. O ar é puríssimo, a vista é linda, e não se pode falar em silêncio ou solidão em sítios que são, sobretudo, mágicos.



Montes a perder de vista.
Esteve muito frio nestes dias e, talvez também por isso, o ar esteve muito transparente, muito azul


No meio desta natureza tão bela, quase excessivamente bela, há verdadeiras aparições. Encontrei uma árvore tão grande, um sobreiro incrível, o tronco enorme, aberto. 



A parte de baixo do tronco do sobreiro, visto de fora


Claro que não resisti a entrar dentro do tronco. Fi-lo como se entrasse numa capela. Por cima o tronco é aberto e à volta da abertura de luz nascem os ramos e as folhas. Uma obra de arte maravilhosa.

Corrijo. Não, não é uma obra de arte. As obras de arte são criação do Homem. Uma árvore assim não foi feita por ninguém. Fez-se a ela própria. É para além de bela.



Interior do tronco visto de baixo: eu dentro do tronco do sobreiro,
eu olhando a luz


Depois descemos até onde o rio se alarga, suave, sob as grandes árvores e, rodeado por rendilhados fetos, se deixa, por momentos, possuir: uma das mais belas praias fluviais que já vi.



Em primeiro plano o rio já liberto mas, no plano acima, piscina natural:
podem ser vistas as escadas para entrar na água e prancha de saltos


Mas tão depressa estávamos cá em baixo, junto às levadas, junto ao curso largo dos rios, como no alto das serras.

Como sabem, gosto de conhecer as igrejas de todas as terras onde ando e, por aqui, não tem sido excepção.

Todas as igrejas são especiais, cada uma à sua maneira: umas muito ricas, cheias de talha dourada, muito trabalhadas, outras muito simples, imagens quase ingénuas, outras quase pobres. Por aqui, são sobretudo igrejas simples as que tenho encontrado. Simples mas muito bonitas, sempre carinhosamente tratadas, sempre com flores frescas, soalho encerado, velas a Nossa Senhora acesas. Mas algumas a revelar alguma falta de manutenção - o que é compreensível pois a população vai escasseando e tendo menos rendimentos. fez-me pena sentir um soalho abaulado a precisar de obras. Penso que, por aqui, aquele é o ponto principal em que as pessoas se reúnem e como é importante que o sintam digno e arranjado. Mas, enfim, melhores dias virão.



Por aqui vim descobrir um Cristo Rei, no alto de um monte, abençoando as cercanias


Para o post não ficar excessivamente longo (ou melhor: ainda mais longo do que já está - e, confesso, porque, se não apago a luz, ainda vou dormir para o corredor), deixo para amanhã um mosteiro onde não consegui entrar e uma aldeia encantada.

Mostro-vos apenas a placa com um poema de Miguel Torga que está à entrada da fantástica aldeia.


Bucólica
A vida é feita de nadas
de grandes serras paradas
à espera de um movimento
...

Amanhã, já afastada deste mundo verde e muito belo, contar-vos-ei desta aldeia e de outros sítios muito bonitos. E contar-vos-ei de como se come muito bem por aqui. E talvez vos conte de como é ser envolvida por um maravilha comme la neige.

E espero que alguém adivinhe onde é este pedacinho de paraíso verde, um belo destino para uma escapadinha romântica. Eu estou a adorar e o meu namorado também.


*

Relembro que para descortinar os pensamentos secretos do Cavapassos é no post a seguir a este, é só descer um pouco mais.

Muito gostaria ainda de vos convidar a visitar-me no meu Ginjal e Lisboa. Continuo em formato atípico mas hoje com um post que me deu enorme prazer: por sugestão de uma Leitora, fui redescobrir Luís Cília e dei com uma faceta que não conhecia: a de cantor de poetas portugueses. Muito bom.

*

E é isto. Acabo já e nem vou rever senão o meu casamento ainda acaba hoje aqui. Tenho mesmo que apagar a luz.

Tenham, meus Caros Leitores, uma óptima terça feira: saúde, alegria, energia é o que vos desejo!


segunda-feira, abril 29, 2013

O Cavaco é muito mais inteligente que nós todos e vê mais longe ou sou só eu que não percebo nada do que ele parece que quer dizer? Ou é ele que não está bem? Pergunto. A sério: pergunto.



A versão lusa de Dupont e Dupont:

Cavapassos e Cavapassos  ou
Passavaco e Passavaco  ou, talvez,
Passavaco e Cavapasso


Aqui onde estou, vou vendo, de vez em quando, uns bocados de notícias. Ontem ou hoje, nem sei bem, vi o Cavaco a dizer que, no discurso do 25 de Abril, disse pre-ci-sa-men-te o mesmo que na passagem de ano. 

Não tenho ideia disso mas, se calhar, o mal é meu. Mas se foi precisamente o mesmo, para que o disse? 

Chegava lá, atirava os cravos abaixo e dizia: 'A treta é a mesma e, portanto, a minha conversa é igual à última. Vão ao youtube e procurem. Adeus e por aqui me desbaldo.' E evitava-se a confusão.

Só se foi ao google, traduziu e voltou a traduzir e saíu coisa diferente sem ele se dar conta.

Por exemplo, se bem me lembro, no final do ano disse: Esta porcaria não é economia, nem finanças, nem é nada: é um verdadeiro buraco, um poço sem fundo. Ou melhor: a gaita de uma espiral recessiva. Se o Passos e o Gaspar não atinam, vou ter que lhes dar um valente tau-tau.

Depois, durante estes longos meses em que esteve em retiro em Belém, sem sabermos dele, para se distrair, entreteve-se a brincar com o google; e, assim, traduziu o discurso para coreano: 이 쓰레기가되지 경제학이나 금융,도 아니다 아무것도 : 그것은 진짜 구멍 밑 구덩이이다. 또는 더 나은 : 하모니카 열성 나선형. 단계 및 가스파 atinam, 나는 그들에게 용감한 타우 타우을 제공 할 것이다하지 않을 경우.

Depois, para continuar na galhofa, ele mai-la sua Maria, traduziu de coreano para chinês e deu isto: 不浪費,經濟或金融,也不是什麼:它是一個真正的孔底坑。或者更好的口琴隱性螺旋。 A的步驟和加斯帕atinam的,如果沒有,我將提供他們勇敢的頭tawooeul的。

Agora, no 25 de Abril, quis dizer a mesma coisa e já não tinha o discurso inicial e vai daí, traduziu de chinês para português, pensando que não ia fazer diferença. E então, com aquele tom de professor agastado  disse: Não desperdice, econômica ou financeira, não é: é um pit hole real. Ou melhor gaita espiral recessiva. A Um passo e Gaspar atinam a do o, se não, vou dar o seu tawooeul cabeçalho corajoso.

A malta não percebeu nada, claro...

Mas ele, conforme o ouvi, insiste que a malta é que anda na embirração, porque ele disse pre-ci-sa-men-te a mesma coisa.

E a coisa não se ficou por ali: ouvi-o a acrescentar que os partidos se deveriam concentrar no pós-troika e que não venham depois dizer que não avisou.

E eu, que não me considero completamente burra, dou por mim às voltas a tentar perceber onde quer ele chegar.

Alguém percebe?

Nesta altura do campeonato - com o desGoverno todo desconjuntado, desbocado, com os ministros a virem chibar-se para os jornais, em que o Marcelo já reproduz em discurso directo o que se passa no Conselho de Ministros, a maior pouca vergonha, piores que alcoviteiras, com o País esfrangalhado, em que não se sabe o que vai acontecer nos próximos dias - anda ele, Cavaco, a mandar bocas encriptadas sobre o período pós-troika. A que propósito, senhores?

E, ainda por cima, fala sempre como se estivesse a falar para atrasados mensais que não perceberam a lição que nos tentou dar.

Que espécie que isto me faz.

Como acho que os meus Leitores são inteligentes, daqui lanço um apelo: há por aí algum que descodifique o que a criatura quer dizer?

O meu receio no meio disto é que se passe mesmo alguma coisa e que a agente não perceba os avisos dele. Sei lá se não vem por aí alguma praga de gafanhotos, o homem a tentar avisar-nos e a malta toda de janela aberta...


Onde Sotto Aguiar é vencido pela Drª Sá Borges - a quem ele, quando fala dela com os colegas (todos homens, claro), costuma tratar depreciativamente por Santa Sá


Poderia repetir banalidades: nem tudo o que parece, é. Ou: não julguemos os outros pelas aparências. Ou não tomemos por evidências o que não são senão aparências (ou: não tomemos por aparências o que são, de facto, evidências). Poderia também dizer que, sempre que alguma coisa acontece, é porque há razões para isso, razões que o justificam, que o desculpabilizam. Ou poderia dizer que é o destino. Ou coincidências. Ou que não há coincidências. Ou tretas dessas.

Mas não digo. Não sou dada a teorias, muito menos a teorias sem fundamento, a conversas politicamente correctas, a banalidades sem qualquer valor prático. Constato, evito julgar.

(Reservo os meus julgamentos para comportamentos que causam malefícios objectivos a muita gente por parte de quem deveria, antes, tudo fazer para lhes levar benefícios: maus políticos, maus governantes, por exemplo.)

De resto, interrogo-me muitas vezes: o que não se sabe é como se não existisse?

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Turn me on, se faz favor




E, no entanto.

Aqui há uns dias, a conversa azedou de vez. 

Sotto Aguiar defendia uma posição, a Drª Sá Borges defendia exactamente o contrário: discutiram acesamente, sem tréguas, a luta reacendeu-se várias vezes, os colaboradores ouviam as vozes irritadas, andavam intrigados com tanta discussão.

Depois, ele sempre com ar agastado, sem uma palavra, ela sempre serena como se nada a molestasse. No entanto, provavelmente para não dar o braço a torcer - porque era impossível que não visse que estava a defender um disparate - foi ele quem, obstinadamente, levou a dele adiante.




Ela achou uma leviandade mas acatou. Ele ficou contente. Estas lutas eram um suplemento de motivação para ele, traziam-lhe a adrenalina que ele tanto apreciava; além disso, levar a melhor sobre aquela maçadora fazia-o sentir mais poderoso.

Contudo, na primeira oportunidade, agindo de acordo com a determinação dele, ela provocou uma situação que toda a gente reconheceu como absurda. Quando lhe perguntaram porque tinha feito tal disparate, uma coisa inconcebível, perfeitamente contrária à prática usual da empresa, ela tranquilamente respondeu que, embora contrariada, tinha actuado de acordo com a decisão dele. Fez-se silêncio na sala, Sotto Aguiar gelado, posto a ridículo, os outros constrangidos, ela como se não fosse nada com ela.

Mais tarde, e tal como ela esperava, ele apareceu no gabinete dela, fechou a porta, vinha transtornado. Acusou-a de deslealdade, de desonestidade, que ela o tinha descredibilizado, que não era a primeira vez, que era lamentável que houvesse atitudes assim entre colegas, que, apesar de já esperar tudo dela, aquela tinha sido demais, que o tinha ridicularizado, que aquilo tinha sido escusado - enfim, estava vermelho de raiva, furioso, acusava-a de tudo. Ela ouviu e, com a frieza que lhe é reconhecida nestas situações, manteve-se serena. Sorria até, como se achasse graça a tanta exaltação, como se estivesse a assistir a uma representação que não lhe dissesse respeito.

Depois levantou-se e disse, Há pessoas com fraca capacidade de abstracção, que só percebem perante evidências. Ao menos agora já percebeu?

Sotto Aguiar levantou-se também, pronto para sair desarvorado. Não vale a pena, com pessoas assim não vale a pena. Fique com o que fez, que lhe faça muito bom proveito, disse ele, e, se pudesse, despedia-a nesse mesmo instante, punha-lhe um processo, qualquer coisa. Se fosse um homem talvez lhe desse um murro na cara. Assim, levantava-se e deixava-a a curtir a sua estúpida pequena vitória.

Sorrindo, sempre sorrindo, ela ficou entre ele e a porta e, com aquela voz calma e superior que tanto o irritava, disse-lhe, Mas para quê esse nervosismo todo, doutor? Há vida para além disto, sabe? Nem as vitórias aqui são muito importantes, nem as derrotas o são. Relativize, doutor, relativize. Receba umas e outras com humildade.

Sotto Aguiar pensou, Esta gaja está a precisar de uma lição, ah está, está! Numa altura destas, ainda tem a lata de vir para aqui com filosofias baratas. É parva, a gaja, é mesmo muita parva!

Mas, inesperadamente, quando ia a sair disparado, ela puxou-o pela mão e disse, Espere. Deixe-me fazer uma coisa que já ando para fazer faz tempo.

Ele olhou-a admirado mas apenas por um instante. Encostando todo o seu corpo ao dele, ela pôs-lhe uma mão na nuca, puxou a cabeça dele para ela e beijou-o na boca.

No primeiro momento, ele ficou sem reacção mas logo a seguir correspondeu. Passou-lhe os braços em volta do corpo e beijaram-se apaixonadamente. 

Quando acabaram, ele olhou-a interrogativamente nos olhos e ela a ele. Depois riram-se. Ela, à laia de esclarecimento, repetiu, Tinha que fazer isto, era uma coisa que estava para ser feita há muito tempo.

Ele puxou-a com força, abraçou-a quase com violência, beijou-a com ardor, a língua numa sofreguidão.

Quando pararam, ela disse tranquilamente, Calma… o mundo não vai acabar hoje, doutor, temos muito tempo… Ele riu-se.

Depois ela perguntou-lhe, Mas onde é que íamos? Dizia você que…?

Ele não disse nada, preso ao olhar sedutor dela. Mas ela prosseguiu, Lealdade, desonestidade, patati-patatá...? Não era...? E toda ela era malícia, desafio, irreconhecível.




Ele riu e já a queria agarrar de novo, vingar-se, o corpo num desatino, Sá… não me provoque… E agarrou-se outra vez a ela, ofegante, aos beijos.

Depois ela disse, Mais baixo, respire baixo, olhe que ainda nos ouvem. 

Ele riu-se, Só espero que a Noémia não apareça por aí à minha procura.

Sá imitou-a, Sôtôr tem a sua mulher ao telefone…

Ele riu-se outra vez, Sá… você está mesmo a querer festa…

Sá riu-se e olhou-o abaixo da cintura. Quero, quero mesmo, e basta olhar para si para ver que está prontinho para ela.

Sotto Aguiar deu uma gargalhada. Mas quem havia de dizer…? Quem a viu e quem a vê…

Ela riu. Quem a vê? Mas acha que já viu alguma coisa…?, maliciosa de novo, provocante.

Rendido, Ai é? Há mais? Se há, eu quero ver! E já se estava a preparar para a agarrar de novo

Sá empurrou-o devagarinho, Calma, SôTôr… Primeiro vai ter que me dizer o que é que fez para o merecer…

Sotto Aguiar sorriu ao de leve, já não estava habituado a estes jogos de sedução, nem estava a reconhecer na maliciosa mulher que tinha à sua frente a Santa Sá, como, jocosamente, se referia a ela quando conversava com os colegas. Além do mais, ainda tinha um secreto receio de que isto fosse mais algum golpe dela para o apanhar em falso, para depois gozar com ele, para o atirar ao tapete.

Mas depois resolveu entrar no jogo, Não fiz mas ainda vou fazer. Quando é que podemos começar?


*

A música lá em cima é Turn me on e é interpretada por Norah Jones e Jamie Cullum.

O texto de hoje vem no seguimento de textos anteriores, sendo que o último deles pode ser visto aqui.

*

Se me permitem, gostaria de vos convidar para virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa onde, continuando num formato atípico, dedico o dia de hoje a Jorge de Sena, a vida e a obra, nas palavras dele e de outros. A música está a cargo de um grande intérprete, o pianista de jazz Brad Mehldau.

*

E apenas me resta desejar-vos uma bela semana a começar já por esta segunda feira. 
Divirtam-se, está bem?

domingo, abril 28, 2013

A poesia salva vidas? Na Revista do Expresso desta semana, Mia Couto conta como, a ele, salvou. E uma rara entrevista dele sobre as suas influências familiares e os seus métodos de escrita. (E eu aproveito a boleia e conto como a poesia também 'salvou a vida' a um colega meu, ou melhor, a dois)




Uma vez eu tinha um colega que estava a ser muito atacado pelo que se passava na área pela qual era responsável. Eu ouvia já falar na inevitabilidade de o afastar. Dali só vinham problemas, problemas, e as soluções tardavam. E, no entanto, muito amiga desse meu colega, eu conhecia bem as dificuldades pelas quais ele passava. Com uma equipa de segunda linha muito fraca, gente sem grande perfil para as funções, ele debatia-se: por um lado não queria desculpar-se com eles, não queria correr o risco de se ver confrontado com a necessidade de os afastar, tentava tirar deles o que eles não conseguiam dar, por outro levava tareia todos os dias. 

Uma reorganização mais ampla que retirasse alguns desses elementos para outras funções, talvez até para fora da sua área, seria o ideal mas a lealdade dele para com os subordinados, levava-o a desdobrar-se até ao limite do possível e a esconder a inadaptabilidade deles para a função. De facto, estavam em causa sobretudo dois, sendo que, de cada um desses dois, dependiam muitas pessoas que, estando a ser deficientemente conduzidas, causavam sistemáticos problemas à organização.

Um dia, estando eu em conversa com o presidente da altura, em que ele me dizia que, por muito que lhe custasse, alguma coisa teria que fazer pois não era possível fingir que as coisas estavam a correr bem, quando o não estavam mesmo nada. Alertei-o, então, que seria errado afastar esse meu colega, pois o grande problema não era ele mas sim que que ele estava sozinho à frente daquele grande 'barco'. Dos dois que deveriam ser os seus braços direitos, um estava a pouco tempo de se reformar e já não estava para se ralar; o outro não tinha o mínimo de jeito para chefiar pessoas, perdia-se em raciocínios muito elaborados e teóricos, sem sentido prático.

Esse presidente ficou surpreendido pois o meu colega nunca lhe tinha dado sequer a entender que se debatia com problemas desse género, muito pelo contrário, defendia sempre intransigentemente os seus colaboradores. Estava mesmo admirado, esse presidente, e interrogou-se como, tendo sabido por mim, poderia abordar o assunto sem quebrar a confiança dos outros em mim. Sugeri que não fizesse muita fé nas minhas palavras e que arranjasse maneira de ir ele mesmo avaliar a situação, in loco, vendo com os seus próprios olhos.

Pessoa muito experiente, com uma forte costela política, e com vários cargos em governos anteriores, sabia fazer as coisas como deve ser.

Assim, foi sem surpresa que, na reunião seguinte da equipa de gestão, o vi, com o ar mais natural do mundo, a dirigir-se a esse meu colega e a outros com funções equivalentes, dizendo-lhes que queria reunir com as equipas directas deles para trocarem opiniões sobre a actividade, problemas, projectos, etc. Toda a gente achou natural. Logo ali marcou as reuniões. 

Passados uns dias entrou-me no gabinete, decidido como sempre, dizendo-me. Tem razão. Já lá estive. Fizemos uma reunião com ele e com a primeira linha toda, cada um fez uma apresentação, fiz perguntas. Fiquei a topá-los. Tem razão. Coitado. Como não haverá ele de ser ver aflito, com uma malta daquelas...? Mas já estamos a negociar a saída do mais velho, do que estava para sair. Perguntámos-lhe se queria acelerar a saída com indemnização e ele esfregou as mãos de contente, era mesmo isso que queria. Já está em marcha a admissão de alguém para o lugar dele. Quanto ao outro, que coisa... como é que é possível...? É pá...! Ri-me e perguntei-lhe o que tinha achado dele. Um poeta! respondeu-me.

Daí para a frente, quando se referia a esse, dizia-me sempre, aquele tipo, o poeta.




Claro que de poeta não tinha nada. Era um chato, um maçador que não se aguentava, para cada coisa aparecia com teorias do além e expunha-as como se estivesse a fazer o discurso da vida dele, um palavreado rebuscado completamente a despropósito. 

Foi mudado de funções. Por consideração para com ele, foi-lhe dado um lugar onde aquela maneira de ser improdutiva não fazia mossa. Na verdade, aproveitou esse pousio para escrever um livro sobre história, não me lembro se história do local onde vivia ou de onde tinha nascido. Penso que nunca foi tão feliz na sua vida profissional como naquela altura em que ninguém o maçava, nem ele maçava ninguém. Entretanto, já se reformou (e é pai de uma combativa deputada da nossa praça, da qual tem razões para se orgulhar).

E o meu colega e amigo viu reforçada a sua equipa e pôde, finalmente, mostrar resultados e viver mais tranquilamente.

Salvou-os a 'poesia'.


Mas vem isto a propósito de quê? Vem a propósito da ideia, por vezes pouco apreciativa, como as pessoas se referem aos poetas. Eu própria, quando estou na minha vertente profissional, quando ouço argumentos pouco sólidos, elaborados mas pouco pragmáticos, é vulgar sair-me qualquer coisa como 'Vamos a coisas concretas, deixemo-nos de poesias'. Por dentro fico a rir-me (ouvindo-me, quem ali diria que sou apaixonada por poesia?)




Ocorreu-me escrever isto depois de ler a entrevista de Mia Couto ao Expresso, publicada na Revista deste sábado dedicada a Moçambique.

(Já agora, deixem-me que vos diga que gosto muito dos moçambicanos. Na faculdade havia muitos estudantes de Moçambique, negros retintos, alguns com um físico espectacular, todos simpatiquíssimos. Habia um que tinha um xodó por mim e que, vá lá saber porquê, tinha sempre iogurtes para me oferecer. Nunca os aceitei embora ficasse com pena por não saber retribuir a simpatia dele. Devia achar que oferecer-me um iogurte era um gesto especial. 

Eu usava o cabelo comprido e o meu cabelo é forte, espesso, caía pesado e, ao cair, era levemente ondulado. Ele gostava muito do meu cabelo. Às vezes sentava-se ao pé de mim e ficava, calado, a olhar para mim e, em especial, para o meu cabelo. Um dia resolvi cortá-lo. Quando me viu assim, teve um sobressalto e ficou numa desolação que só vista. Nem queria acreditar que eu o tivesse feito, triste, triste.  Porquê? Porquê? Não lhe expliquei que tinha mudado de namorado e que o meu novo namorado preferia ver-me assim, talvez por ter sabido que o anterior gostava muito dos meus cabelos compridos.

Depois, quando dei aulas, tive um aluno moçambicano, alto, magro, sempre sorridente, muito bonito. Inteligentíssimo. Dei-lhe notas muito altas. Nunca mostrou vaidade, apenas um orgulho muito digno.)




Mas divergi. Estava a falar de poesia.

Volto a Mia Couto e transcrevo:




E foram tantos os momentos de aventura nos tempos de oposição.

Como aquele em que se ofereceu para ser membro da Frelimo, e foi aceite numa cerimónia secreta. 

"Fui para uma casa à noite, nem pude ver qual era o caminho para não saber onde ficava. Quando cheguei lá, os candidatos tinham que contar uma história que era a 'narração do sofrimento'. Cada um tinha de mostrar quanto sofreu para merecer a honra de estar ali. E todos tinham razões profundas, e eu, que fui o último a falar, não tinha nada. Era um privilegiado, uma pessoa feliz. estava aflito, comecei a pensar 'tenho de inventar um sofrimento instantâneo'. Mas quando me pus em frente da assembleia, o fulano reconheceu-me e perguntou 'você é aquele que publica aqueles poemas no jornal! Ah, você é poeta! Precisamos de vocês!' E não tive de contar história nenhuma. A poesia afinal tinha algum serviço. A mim salvou-me!"



Vida, amor, poesia - Pablo Neruda
*




Poema da Despedida (muito bem) dito por Elisabete Luís





Transcrito do YouTube: 
Entrevista rara com um dos escritores contemporâneos mais notáveis da actualidade.
Mia Couto partilha com o jornalista António Mateus uma viagem ao interior do imaginário e a intimidade familiar de quem redesenha o escrever do sentir em português.
(Um trabalho assinado em Joanesburgo em 2003)



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Caso queiram continuar comigo e, sobretudo, com poesia, convido-vos a virem até ao meu Ginjal e Lisboa onde hoje há poesia dita e cantada. Eugénio diz o seu Sorriso, Natália diz o Romance da Paloma e Filipa Pais canta Em todas as ruas te encontro de Mário Cesariny. Dia grande por lá.

E, no post a seguir a este, poderão, ainda, ler a minha opinião sobre os desaguisados entre Paulo Portas e Vítor Gaspar e o seu adjunto, Passos Coelho. Estará para breve o fim deste pesadelo? A seguir.

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E por hoje fico-me por aqui. Tenham, meus Caros Leitores um belo domingo.
Be happy! Enjoy! Smile!

sábado, abril 27, 2013

Crise na coligação? Paulo Portas prestes a virar a mesa? Vários ministros do PSD a colocarem-se ao lado de Paulo Portas? Passos Coelho e Gaspar com dificuldade em continuar com a devastação? Boa. Até que enfim. Já começava a recear que Paulo Portas estivesse anestesiado. Ou é apenas mais uma encenação...? Com ele, nunca se sabe. Vamos esperar para ver.


Claro que, a poucos dias de ter que apresentar medidas, faz-me muita confusão este trabalho em cima do joelho. Conselhos de Ministros que duram 8 ou 11 ou mais horas só revelam impreparação, incapacidade, improviso, falta de liderança e de tino. 



Passos Coelho a ver se agarra Paulo Portas...?


Andam nisto há uns dois anos, ainda não fizeram uma reforma estrutural que se visse, não têm feito outra coisa que não espalhar medo, insegurança, roubar rendimentos, estoirar com a economia, desgraçar o país. E agora que, aparentemente, têm que mostrar algum serviço à troika (que esta gente parece que só presta contas à troika, não à população), andam nisto, à procura de medidas para reformar o Estado e... não conseguem. Não atinam. A coisa vai passando de Conselho de Ministros para Conselho de Ministros sem conseguirem acertar numa estratégia que leve a algum lado. As conferências de imprensa em que aparecem, mal dormidos, mal organizados, a dizer frases vazias e sem apresentar um medida que seja, são patéticas, penosas.

Vem o Expresso hoje dar notícia de desentendimentos fracturantes no Conselho de Ministros. A ser verdade o que lá se diz, fico contente. 


Fixe...? Ná...
(Vire lá a mesa de vez, ponha KO os seus colegas, demarque-se  desse bando de malfeitores
e, depois, então, a gente logo fala. Até lá, se não se importa, recolha lá o dedinho que ainda não se vê nada fixe à nossa volta...)


Já é tempo de Paulo Portas mostrar que é coerente com os princípios fundadores do partido de que é o máximo dirigente, já é tempo de Paulo Portas se demarcar de uma forma de governar que é indigente, amoral (e imoral), que é estúpida, que desgraça o país e os portugueses.

Contudo, Paulo Portas é useiro e vezeiro em encenações pelo que só vendo no que isto vai dar.

Manuela Ferreira Leite, no suplemento de Economia, diz - e bem - que, se deste malfadado desGoverno voltarem a sair mais medidas recessivas, aquela coisa do desenvolvimento do Alvarito não terá passado de uma brincadeirinha que não terá durado mais que uma semana.

As vozes contra o desGoverno de Passos Coelho começam a ser tantas que já ninguém, com dois dedos de testa e um pingo de vergonha, ousa dizer em público que apoia aquela desgraça.

Já é tempo deste desGoverno cair, de desaparecer, de ser esquecido. Já é mais que tempo de parar com a destruição que tem vindo a ser levada a cabo.

Já é tempo de se voltar a construir. Já é tempo de voltarmos a sentir orgulho em sermos portugueses. Já é tempo de voltarmos a acreditar no futuro. Já é mais do que tempo de partirmos para outra. Com outro Governo.

/\

Ainda cá volto hoje. Até já!


Não sou forte e nem poderosa. Assim começa o Livro das Horas de Nélida Piñon.




Desde o berço sou escritora. Ao abrir os olhos, jurei ter fé nas palavras, com elas contar uma história.

Este ofício, acaso mundano e perverso, me compromete com a fala poética, com o discurso do mistério, com o coração da língua. Mas, na condição de aprendiz, rastreio o transcurso literário dos antecessores a fim de saber onde eles estiveram, e eu não estou. A quem eles amaram, e eu não amei.

Consulto as enciclopédias, e os rostos destes escritores divergem do meu. São contrários ao meu, de hoje. O coração, a língua e o século, a que estiveram atrelados, os distanciam de mim. Ainda assim, devo-lhes gênese e aprendizagem. E onde estejam agora, talvez no Père-Lachaise, persiste neles o epicentro irradiador de saberes e de alento literário. Cada frase que escreveram fundamenta a construção literária.

Solitária ou na multidão, eu desfruto de seus enigmas, das suas partículas narrativas, mima-me com a atualidade dos seus pensamentos. os ponteiros do relógio, que ora consulto, dizem o ano em que estou, mas nada diz da hora da nossa morte. E, apesar de tudo, sei que é mister percorrer campinas e grotões. Ir até onde a arte se aloja e eu naufrago. Apalpar a emoção, que é a âncora humana.






O amor reclama palavras porque sabe que o corpo não fala. As palavras, que verberam na casa, exacerbam os sentimentos por meio da arte. Elas conferem aos amores uma eloquência que não merecem.





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O texto é parte do Livro das Horas, memórias, de Nélida Piñon.

Desconheço a autoria da primeira fotografia. A segunda é de Jonas Andréasson.

A música é Você e é interpretada por Maria Bethânia e Omara Portuondo.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado muito bom.


sexta-feira, abril 26, 2013

Onde se percebe que o realizado e virtuoso Dr. Sotto Aguiar afinal...


No texto a seguir a este falo do discurso tomba-cravos de Cavaco e da preocupação e estranheza que tudo isto me está a causar mas interrompo para, a seguir, falar da praia, de conchas translúcidas como asas que pousam sobre as palavras fantásticas de Clarice Lispector.

Mas isso é a seguir. Agora, aqui, a conversa é outra. Volto ao virtuoso Dr. Sotto Aguiar.


Música, por favor




Achamos que somos diferentes dos outros. Nós, um poço de virtudes, os outros, um manancial de imperdoáveis defeitos. E, se reconhecemos em nós, alguma pequena imperfeição, já nos apressamos a encontrar justificações. A família que não nos apoiou, uma mãe castradora, um pai ausente, irmãos invejosos, chefes autoritários e castradores, colegas desleais. Os outros. Sempre os outros.

Esta falta de isenção e objectividade tem estado na origem de muitas injustiças e muitas irresponsáveis desculpabilizações.

É que os outros somos também nós.

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Sotto Aguiar é um executivo de sucesso, é certo. Tem rendimentos elevados, tem poupanças sólidas, sabiamente divididas por várias instituições, dinheiro a salvo no estrangeiro, uma boa casa na cidade, outra no campo, outra na praia e tem, até, um apartamento em Inglaterra, onde os filhos vivem actualmente. No campo tem cavalos, na praia tem um barco.

No trabalho é reconhecido, elogiado, recompensado. Socialmente está perfeitamente integrado, quer através do desporto que pratica, o golfe, quer através dos grupos de reflexão de que faz parte, quer, ainda, da igreja de que é fiel seguidor. Aquilo de que publicamente se queixa é apenas da brutalidade de impostos que paga e da estupidez atávica deste governo. Sendo um liberal democrata, diz que nunca viu tanta estupidez em tão pouco tempo e defende, alto e bom som, o afastamento deste primeiro ministro. Tirando isso, a vida corre-lhe bem e sente-se um homem realizado.

E, no entanto.




E, no entanto, tanta perfeição também cansa. Sente falta de alguma irreverência, de alguma transgressão. Lembra-se de como era em miúdo, ele e os irmãos, ele e os amigos, as partidas, as noitadas. Nunca nada de transcendente mas, ainda assim, a ilusão de alguma aventura. Agora nada. Sempre chamado a mostrar como se faz, como se pensa, apresentado como um modelo, irrepreensível. Uma seca.

A mulher, também ela, saturada de tanta boa vida, saturada de andar sempre de boa cara, saturados uns do outro. Mal se falam mas acha que nem é por nada, talvez apenas por falta de terem o que dizer, e mal se tocam, o carinho e o afecto já fossilizados. Os contactos quase se resumem as questões funcionais, questões cuja decisão compete a ambos, ou, então, a uma tentativa de disfarçar perante terceiros ou, mesmo, perante os filhos, a falta de chama.

Contudo, continua a gostar dela. Não a trocaria por ninguém, ela é a mulher da sua vida, conhece-a como se conhece a si próprio, sabe o que ela pensa, sabe o que ela sente. Tem ideia que isto talvez seja apenas uma fase normal num casamento (uma fase que tarda em passar). Além do mais, não quereria desestabilizar a harmonia familiar, o ambiente em que quer que os filhos se desenvolvam (e isto apesar dos filhos já não viverem com eles e de já terem mais que idade para perceber situações deste tipo).

Mas porque também não é agradável esta convivência surda e apática, Sotto Aguiar prefere chegar tarde a casa para não ter que enfrentar aqueles fins de dia de pesado silêncio. Não tem paciência para ler, não tem paciência para tanto debate político na televisão, não tem paciência para nada. Ela também anda a chegar tarde, provavelmente pelas mesmas razões, mas apanha-a a olhá-lo de lado como se desconfiada, e ele sem paciência também já para isso.




Gostava de ter com quem conversar, quem se interessasse pelos seus problemas, quem lhe fizesse um mimo, quem se aconchegasse nele. Mas, infelizmente, isso não acontece. Por isso, as noites e o fim de semana em casa são, na verdade, uma seca, uma grande seca, um grande vazio.

Mas, como é sabido, a natureza é avessa ao vazio.

Desde que a Drª Sá Borges, a quem toda a gente trata por Drª Sá ou, simplemente, Sá, entrou, vinda de outra empresa - uma contratação de luxo - e já lá vão alguns anos, Sotto Aguiar sentiu qualquer coisa. Uma rivalidade, talvez. Ou uma embirração. Ou vontade de a apanhar em falso, talvez. Ou uma certa insegurança, é capaz de ser isso. Muito senhora de si, ela, muito intransigente. Muito eficiente. Mas tudo como que envolto numa simpatia que ele acha que é forçada. Mas talvez não seja forçada, talvez ela seja mesmo assim, uma sonsa que disfarça uma certa dose de malvadez. Ou não. Não sabe bem. O que sabe é que, em suma, é uma grande chata. Mas, ao mesmo tempo, contendo um permanente desafio em si mesma. Mulheres bonitas e inteligentes não deixam ninguém indiferente, desculpa-se ele perante si próprio.

Mas ela nunca facilitou. É frequente quase desautorizá-lo em público com os seus apartes, com as suas correcções – embora, com aquele ar de boa pessoa, disfarce as alfinetadas com um sorriso angélico, transbordante de inofensivo charme (e ele sabe que isso só evidencia que é bastante inteligente, na verdade uma adversária temível).

Anos de picardias disfarçadas de sã camaradagem. De vez em quando, contudo, a coisa estalava e os desentendimentos ficavam à vista. Não raramente, quando discutiam, os colaboradores ouviam as vozes que se elevavam, a irritação. Quando se separavam, ele furioso, em silêncio jurando vingança, ela, superior, sorrindo como se nem tivesse percebido a situação desagradável e ele, com isso, ainda mais furioso, a ranger entredentes, ainda as pagas, não perdes pela demora, a vingança serve-se fria, espera pela pancada.

Não raras vezes, quando se reunia a sós com ela e a conversa e as divergências subiam de tom, aquele perfume, aqueles olhos, aqueles lábios, aquelas pernas, aquele decote começavam a fazer o seu caminho rumo aos domínios mais escusos do seu inconsciente. Não o demonstrava, anos de tarimba, e continuava a discutir, a desmontar raciocínios, a tentar vencê-la, mas, enquanto isso, sentia a involuntária reacção do seu corpo. E pensava, que ela não me tope, caraças. Ia ser a grande vitória dela, porra. Mas ela nunca o percebia. Vive para o trabalho, não tem mundo, bonita mas uma santinha, nem lhe deve passar pela cabeça uma coisa destas, tranquilizava-se ele.

E, no entanto.


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Sotto Aguiar é, aqui, Pierce Brosnan. A música é What other guy de Adam Cohen.

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Relembro que, se continuarem a descer, abaixo deste, há o texto que escrevi há pouco sobre as comemorações do 25 de Abril, sobre a minha ida à praia e sobre o livro que estou a ler, crónicas de Clarice Lispector.

Caso queiram continuar ainda um pouco mais na minha companhia (há gostos para tudo, não é?), convido-vos a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa onde, hoje, pela mão de Manuel Alegre (who else no 25 de Abril?)  me interrogo sobre o início (e o fim) de todas as coisas. A música que se lhe segue é ainda uma grande interpretação de Chick Corea.


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Por hoje, é isto. E já é sexta feira. 
E o que vos desejo, meus Caros Leitores, é que seja, para vós, um grande dia.
E que tenham saúde, alegria e esperança.

Conchinhas de suave madrepérola ou translúcidas como asas, pousadas sobre as palavras de Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo. Por isso, o discurso de Cavaco Silva no 25 de Abril, um discurso tomba cravos, é assunto de secundaríssimo plano.


Ouvi a parte final do discurso de Assunção Esteves e gostei bastante. Um discurso elegante, culto, próximo da realidade concreta do País. 

Depois, comecei a ouvir o discurso de Cavaco mas desligaram-me a televisão e fui arrastada por um braço. Ouvi depois mais um bocado, já no carro. Nada de novo. Depois da conversa muito crítica para o desgoverno referindo a espiral recessiva, Cavaco entrou em retiro espiritual do qual começa agora a sair para dizer, de novo, coisas contraditórias. Nada do que ele diz consegue despertar-me grande interesse: é inconsequente, errático, crispado. E depois tem sempre aquele tom antipático, parece hostilizar as pessoas. Muito pode ele querer consensos mas, com aquela cara de esgar enquistado, com aquele tom de voz áspero que arranha a nossa sensibilidade, ele divide em vez de unir, afasta em vez de aproximar.

No entanto, desconfio que alguma coisa se passe para além da pobreza de espírito que nos é dado ver. Apesar de nunca se lhe ter conhecido algum rasgo ou alguma coerência, acho que alguma coisa agora não bate certo. Estranho esta mudança de atitude numa altura em que o desgoverno dá cada vez mais sinais de desagregação interna, de incapacidade para dar corpo a outra coisa que não a destruição do país. Não percebo. Acho que a situação do País é grave demais para ele estar a querer consensos em torno da destruição que está a ser levada a cabo.

O pobre Álvaro, o rei dos pastéis (lugar agora disputado por Paulo Portas), no outro dia, depois de um Conselho de Ministros de 8 horas supostamente dedicado ao desenvolvimento, apareceu a anunciar uma mão cheia de banalidades e de intenções, temas para discussões. Nada de concreto, nada para já. Outra coisa não seria de esperar. Este desgoverno não sabe fazer nada, é um bando desconexo, gente incompetente, impreparada, gente que para ali anda sem uma liderança que lhes defina o rumo. Começo a pensar que, em termos de descoordenação e bagunça, seja bem pior que o Governo de Santana Lopes. O único que vai fazendo o que quer, indiferente ao que se passa à sua volta, é o psicopata social (como lhe chama o outro) Gaspar.

Enfim: uma tristeza isto, este desnorte que acarreta um desequilíbrio cada vez mais grave nas contas públicas. Começo a recear seriamente as consequências disto. Passos e Cavaco ameaçam-nos com um segundo resgate se não amocharmos, mas receio que nos estejam já a preparar para isso (e, uma vez mais, desonestamente - tentando culpabilizar a população de uma desgraça que eles causaram e causam todos os dias). Temo mesmo que isso venha mesmo a acontecer pois, se não for posto cobro a esta destruição, não haverá volta a dar. 

Mas hoje não me apetece maçar-me mais a pensar nisto nem maçar-vos também a vocês, meus Caros Leitores.

Fui à praia. Que bem que se estava. Calor, um sol mesmo bom, um mar fresco mas agradável, crianças a correrem e a brincarem, cães a mergulharem e a nadarem como gente grande.




Claro que levei a minha máquina, não ando sem ela. Vou andando e captando momentos, cores, movimentos.

Fizemos a nossa caminhada, cerca de cinco quilómetros, à beira de água. 

Desde pequena que, quando à beira de água, vou de olhos postos nas conchinhas, limos, pedrinhas que o mar vai rolando, enrolando em espuma.




Desde que me lembro, apanho as que acho mais bonitas. Depois nunca sei o que lhes hei-de fazer. Algumas ainda guardo, outras acabam por se perder. 

Mas isso não lhes retira a capacidade de encantamento que têm sobre mim. Brilham ao sol, brilham quando molhadas e quando o sol se reflecte nelas; e algumas têm formas rendilhadas, trabalhadas pelas águas.

Agora atenuo a minha pena de não ter onde guardar tantos preciosos tesouros, fotografando-os.




Hoje havia este pequeno ser, não sei se uma alga, se quê. Misterioso. Nunca tinha visto igual. Se calhar é um extra-terrestre que estava ali sossegado, ao sol.




Sempre me atrairam especialmente as estrelas do mar. São seres elegantes, uma renda fina. Quando era uma menina que andava com um baldinho a escolher conchas, búzios, pedrinhas, ficava radiante quando descobria uma estrela do mar. Uma estrela que em vez de viver no céu, escolheu o fundo do mar. Por vezes levava-as para casa mas a minha mãe aborrecia-se. Ao fim de algum tempo deitavam maus odores e perdiam a beleza.

As coisas são mais belas no seu sítio original. Retiradas de lá ficam desenquadradas, tristes.




Mas vejo este pequeno caranguejo sem vida e, ao reparar na textura e nas cores suaves da sua carapaça, imagino peças que poderia fazer mas logo desisto. Peças para pôr onde? 

Contudo, depois, não resisto e trago uma bela concha, parece madrepérola, pequenina, macia, gosto de as sentir nas minhas mãos, e depois uma outra, grande, translúcida, muito bonita, parecem asas, se calhar de uma pequena fada que vivia também no fundo do mar, rodeada de estrelas. E trago também um pedaço de concha partida, com um raiar de tons suaves que se conjugam com elegante sobriedade. Trago-as, não resisto.

Estão aqui ao pé de mim. De tarde, coloquei-as sobre o livro que estive a ler, A Descoberta do Mundo, crónicas de Clarice Lispector.




Não me perguntem porque faço coisas assim, fotografar conchas translúcidas e ainda a cheirar a mar junto às palavras de Clarice. 

Mas, talvez, se vos mostrar algumas das palavras delas vocês consigam perceber-me.


Homem se ajoelhar

É bom. Sobretudo porque a mulher sabe que está sendo bom para ele: é depois de grandes jornadas e de grandes lutas que ele enfim compreende que precisa se ajoelhar diante da mulher. E, depois, é bom porque a cabeça do homem fica perto dos joelhos da mulher e perto das suas mãos, no seu colo, que é sua parte mais quente. E ela pode fazer o seu melhor gesto: nas mãos, que ficam a um tempo frementes e firmes, pegar aquela cabeça cansada que é fruto entre seu e dela.


Menino

- Mamãe, vi um filhote de furacão, mas tão filhotinho ainda, tão pequeno ainda, que só fazia mesmo era rodar bem de leve umas três folhinhas na esquina.


Palavras assim não pedem mesmo um par de asas do fundo do mar e conchinhas de madrepérola? 

*

Ainda cá volto. Até já.

quinta-feira, abril 25, 2013

Neste 25 de Abril, pergunto: Valeu a pena? - E respondo: Valeu. (Mas quem disse que deveríamos deitar-nos e permitir que os velhos tempos avançassem de novo sobre nós? Ninguém disse, pois não? Então, porque o permitimos? Está em nós levantarmo-nos e lutar pelo nosso futuro). Nossos são todos os caminhos.


Virei-me para eles, então, e não sei qual foi a expressão estampada no meu rosto - raiva, dor, medo - mas levantaram ambos os olhos para mim, alarmados, e um deles começou a avançar na minha direcção como que para me impedir de dizer o que eu queria dizer a seguir. Recuei para longe deles, devagar, e pus-me a um canto. No início, sussurrei e depois falei mais alto e, quando ele se afastou de mim e quase se acobardou a um canto, sussurrei novamente, devagar, com cuidado, usando todo o meu fôlego, toda a minha vida, o pouco que me resta dela.

- Eu estive lá - disse. - Fugi antes do fim, mas se querem testemunhas, eu sou uma delas e posso dizer-vos que, enquanto vocês afirmam que ele redimiu o mundo, eu direi que não valeu a pena. Não valeu a pena.



Fogo de artifício sobre mim, há pouco


Direi eu também, acerca do 25 de Abril, que não valeu a pena? Não, não direi.

Valeu a pena. O obscurantismo, a censura, a falta de liberdade, a consciência vigiada - isso acabou. O analfabetismo, a mortalidade infantil - indicadores humilhantes que ultrapassámos.

Mas os tempos hoje são de retrocesso. Aliás cedo se começou a retroceder. A ilusão inocente dos primeiros tempos não resistiu à mediania que cedo se começou a instalar. Nada avança mais rapidamente que uma mancha de fraqueza, que uma nódoa de ignorância, que um lodo malsão de mesquinhez e ganância. 

Contudo, apesar dos passos há muito vacilantes, nunca se retrocedeu tanto como nos últimos tempos. A democracia vai definhando às mãos de gente que não sabe o seu significado, a liberdade é um bem ameaçado às mãos de quem retira a autonomia económica a tanta gente.

Deixámos com ingénua benevolência que a mediocridade alastrasse na sociedade e agora somos vítimas dos actos vis e ignorantes daqueles que deixámos que medrassem.



Pontos de luz rasgando os céus neste 25 de Abril de 2013


Mas que não nos resignemos, que não nos acobardemos. Somos muitos. Temos força. Temos a força da razão. Saibamos unir-nos e valorizar o que temos de melhor: uma história, uma cultura, uma valentia, uma geografia variada e bela, um humanismo afável. 

Quando nos disserem que não há alternativa e quiserem passar sobre os nossos corpos vergados, saibamos levantar-nos e responder que sobre nós não passarão. E que há sempre alternativas porque nossos serão sempre todos os caminhos.

O 25 de Abril bate no meu peito e, por isso, enquanto eu viver, nunca o deixarei morrer. As minhas armas não são muitas e têm todas cravos no local por onde deveriam sair as balas mas usá-las-ei todos os dias para que o futuro esteja de novo ao alcance das nossas mãos.



25 de Abril de 2013


Até lá, quando acordo à noite, quero mais. Quero que o que aconteceu não tivesse acontecido, tivesse tomado outro rumo. Quão facilmente poderia não ter acontecido! Quão facilmente poderíamos ter sido poupados! Não teria sido preciso muito. 

A ideia da existência dessa possibilidade invade o meu corpo agora como uma nova liberdade. Dispersa a escuridão e afasta o sofrimento. 

É como se um viajante, cansado de dias e dias a caminhar num deserto seco, um lugar destituído de sombra, chegasse ao cume de um monte e visse lá em baixo uma cidade, uma opala incrustada em esmeralda, cheia de abundância, uma cidade cheia de poços e árvores, com um mercado pejado de peixe e caça, os frutos da terra, laranjas, figos, limas, azeitonas, um lugar repleto de cheiros a cozinhados e especiarias.

Começo a descer em direcção a ela ao longo de um carreiro suave. (...) A toda a volta, silêncio e uma luz balsâmica e esmorecente. É como se o mundo se tivesse soltado, como uma mulher que, preparando-se para se deitar, desprende os cabelos. E eu sussurro as palavras, sabendo que as palavras são importantes, e sorrio enquanto as digo às sombras dos deuses deste lugar, que se atardam no ar para me ver e escutar.



Luzes e cores como cravos de Abril subindo nos céus

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Os textos a itálico são pequenos excertos do livro O Testamento de Maria de Colm Tóibín (de que já tinha falado no post que escrevi a propósito do Dia do Livro)

As fotografias foram feitas por mim pouco depois da meia noite, quando o fogo de artifício iluminou o céu sob o qual eu estava.

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Se quiserem mais um cheirinho a Abril, convido-vos a virem até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair onde falo da pobreza em Portugal e na Grécia e da força que deveremos deixar crescer dentro de nós, marchando ao lado de Hélia Correia. Na música, Sérgio Godinho lembra-nos que hoje é o primeiro dia do resto da nossa vida.

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E, por agora, nada mais. Desejo-vos, meus Caros leitores, um belo 25 de Abril. Sempre.