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sábado, setembro 09, 2023

Born in the wild.
Selvagem

 

Há um perfume de homem que sempre me levará nas asas da memória até um longínquo verão em Angola. 

À medida que o tempo mais passa mais eu vou percebendo como foi de charneira na minha vida a minha viagem a Angola, um mês de total liberdade, quase vinte e quatro horas por dia junto de jovens da minha idade, grande parte deles até então meus desconhecidos.

Não havia telemóveis e, porque andávamos de um lado para outro, praticamente nem telefones dos outros. Não Tínhamos, portante, que telefonar nem esperar por telefonemas. Andávamos à solta, num outro continente. Portanto, foi quase como se tivéssemos cortado o cordão umbilical à família, ao mundo onde antes vivíamos.

A magnífica largueza de horizontes daquelas paisagens, o clima que convidava ao quase desnudamento, os dias longos, quentes, os maravilhosos pores de sol, aquelas praias em que apetecia estar até ser bem tarde, a descontração de toda a gente, a boa comida, a boa companhia, tudo, tudo eram mil maravilhas que eu avistava e desfrutava através daquela porta aberta que eu podia transpor sem ter que pedir autorização, sem ter que me justificar.

As amizades que nasceram, o afecto que se ia fortalecendo dia após dia, a alegria que uma certa pessoa que aparecia de manhã, cabelos molhados, sorridente, brincalhão, desafiador, e perfumado com Eau Sauvage, me trazia (e, creio, trazia a todos) não se esquecem. 

O tempo passa, passa muito rapidamente, mas há coisas que a erosão não leva.

A Dior escolheu, e bem, Johnny Depp para dar corpo ao espírito da Eau Sauvage. Leio que:

Sauvage Eau de Parfum smells citrusy, musky, and spicy giving the wearer a feeling of being fresh after the shower. The main notes are ambroxan, bergamot, and Sichuan Pepper with a lasting power of 8 – 10 hours with a very good projection.

Johnny Depp for Dior sauvage 2023



quarta-feira, janeiro 29, 2020

Rui Pinto, a PLMJ, a VdA, a Sonangol, a Isabel dos Santos, as Luanda Leaks, os hackers, os heróis, etc.





Às vezes não há duas sem três. E hoje é dia. Já me deleitei com a graça e com a criatividade da Billie e do Jacob e já falei do Chicão fofinho a ser praxado pelo Miguel Sousa Tavares. E agora vou para a terceira.

No fundo, se me deitasse no divã, quase aposto que o psi descobria que escrever os dois primeiros foi só para empatar a ver se já não chegava aqui. 

E é. A empatar. Porque não sei como dizer. O senso comum aconselha-me a estar sossegada. Até porque, quanto mais não seja, eu é mais bolos. E, quando não é bolos, é rêverie, conversa deitada fora. E, do que não quero falar, nada sei; e não gosto de falar do que nada sei. Intuo. Mas a intuição é daquelas: quer, porque quer, dizer das suas. Há quem diga que é um shortcut que a inteligência usa para chegar lá antes mas há também quem diga que é coisa topológica, bola aberta, coisa intangível, deitação de búzios. 

Mas, enfim, vamos lá. De resto, nada de novo. De umas coisas um recap, de outras meras conjecturas.


Começando pelas conjecturas.
E se isto de ter sido o Rui Pinto a desencadear o Luanda Leaks fosse mera estratégia da defesa para safá-lo, para o apresentar não como um mero hacker mas como um whistleblower? Qual seria o risco disso? 
Vejamos. Um hacker não deixa pistas ou, se as deixa, é para gozar, sabendo que vai chatear o hackeado e que, se tiver juízo, jamais o apanharão. Ou para sacar um resgate. Ou seja, pode ser desporto ou pode ser negócio. Em qualquer dos casos, é actividade de risco. Um hacker não se denuncia. Quando se denuncia, denuncia a sua persona de hacker, não a de cidadão. 

Por isso, não há como provar se foi ele ou se não foi. Se não foi, qual o risco de que se descubra a mentira? Nenhuma. A menos que o verdadeiro hacker (ou hackers) apareça a auto-recriminar-se. Mas isso não acontecerá. O trabalho feito foi obra de pros. E hackers pros fazem da sua actividade um negócio e esse é um negócio que assenta no absoluto anonimato, no sigilo à prova de bala.
  • Portanto, primeira hipótese: não foi o Rui Pinto a hackear (pelo menos sozinho) tudo o que está na base do Luanda leaks. Foram outros, contratados.
  • Segunda hipótese: um rapaz que se dedica a piratear redes informáticas do futebol e que anda atrás de 'podres' para se divertir, para tentar sacar umas massas e para chatear malta com que embirra, não é o tipo de rapaz que sabe exactamente em que redes entrar para denunciar a corrupção em Angola. Portanto, se foi ele, deve ter sido encaminhado. Ou seja, contratado. 
Questão de fundo: quem contratou? 


E agora o recap: quem pirateia uma rede informática de uma empresa não se dedica a uma escolha selectiva, não é pesca à linha -- faz, isso sim,  pesca de arrasto. É mais rápido, mais eficaz. Tudo o que vem à rede é peixe. Se não interessa hoje, interessa amanhã. E pode simplesmente copiar tudo o que está nos computadores das empresas ou pode tentar a sorte e encriptar o que encontra e pedir resgate. Para ganhar uns trocos. E, claro, meanwhile, para um just in case, copia tudo. 
Portanto, se dizem a um hacker: ela trabalhava com os VdA, com a PLMJ, e apanha também tudo o que ela fez na Sonangol e aqui, ali e acolá, é aí que o ou os hackers vão entrar. E não será por acaso que se diz que a Sonangol foi pirateada, que a VdA foi pirateada, que a PLMJ foi pirateada. E, com certeza, mais terão sido. Digo eu. 
E, se as empresas souberam que foram pirateadas, é porque o pirata se manifestou. Ora a forma habitual de um hacker se manifestar é pedir resgate. Se foi Rui Pinto, pediu resgate? E, se o fez, continua a poder ser visto como um whistleblower ou será, antes, um pirata que vende o fruto do seu roubo e, de caminho, ainda pede dinheiro aos assaltados?
E tudo o que estava nos servidores foi, certamente, apanhado. Dos escritórios de advogados certamente os processos de tutti quanti foram apanhados. Do que tinha a ver com Luanda e com meio mundo. Meio mundo.
Admito que terão participado à CNPD e certamente terão informado todos os seus clientes, fornecedores, empregados, etc. RGPD oblige.  E foi, certo? 
Mas não sei se toda a gente terá percebido o significado disto. Será que perceberam que todas as optimizações fiscais, algumas certamente bastante criativas, estão disponíveis e nas mãos de quem pode fazer mau uso delas? Será que já perceberam que todas as movimentações societárias, pagamentos, parqueamentos, encontros de contas e etc, estão onde não seria suposto que estivessem? E isto já para não falar de casos de outras naturezas.
Mas reparem: saber, não sei de nada, tudo isto são meras dúvidas.


E finalmente, volto ao que já abordei acima: pode um hacker ser visto como um herói como a Ana Gomes e outros parecem pretender? A questão não é linear e não é este o local ou esta a hora para dissertações inteligentes, mas a minha opinião é que nem pensar

Um hacker é alguém que viola um espaço, que rouba o que encontra. É a mesma coisa que alguém entrar em sua casa, Caro Leitor, roubar o que lhe apetecer e depois vender ou ficar com o que lhe der jeito. E isto já para não falar nos que ainda pedem dinheiro para que os donos possam voltar a usar a  sua própria casa. Claro que, no meio do que encontrar, pode encontrar extractos bancários que levantem suspeitas e que se forem afixados no átrio do prédio ou na parede da sua casa irão certamente dar muito que falar. Mas e daí? Pode admitir-se que alguém arrombe portas, roube coisas, viole a privacidade dos donos?

No dia em que formos permissivos e estúpidos a esse ponto, acaba-se o Estado de Direito.

Quanto ao Luanda Leaks volto à minha: independentemente do mérito da investigação judicial que possa vir a ser feita e das culpas no cartório que venha a provar-se que os envolvidos possam ter, aquilo de que se tem vindo a falar é apenas um cagagésimo da história, de uma história que tem muitas faces e muitos reversos e onde muita gente se esconde atrás de espelhos.

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As mulheres ao espelho foram pintadas, respectivamente, por Korobkin Anatoly, Mose Bianchi, Ferdinand von Lütgendorff-Leinburg, Jean-Étienne Liotard e Gerard ter Borch e vêm ao som de Walking in the air interpretada pela Aurora.

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E queiram continuar a descer para visitar o Chicão e, a seguir, a Billie e o Jacob -- ou, então, não.

E uma bela quarta-feira para si que está aí desse lado.

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Isabel dos Santos, Manuel Vicente, Luanda Leaks, demissões, mortes, vinganças, ameaças, etc.
-- aconselharam-me a não escrever mais nada sobre o assunto e, pensando bem, o melhor é mesmo não falar


Hoje disseram-me para não escrever mais sobre o tema. E eu fiquei a pensar nisso.

Quando ouvi que o Nuno Ribeiro da Cunha tinha aparecido morto apeteceu-me não ter escrito o que escrevi ontem à noite. E, quando, sem surpresa, vejo que estão a começar a aparecer coisas que eu antevi, também me apetece não escrever mais nada. 

Agora mesmo alguém espreitou para o que eu estava a escrever e disse: 'Não te disseram para não escreveres mais sobre isso? Pára. Não escrevas mais nada.'. Respondi que não estou a escrever. E não estou.

Hoje também avisei uma pessoa de que, com alguma probabilidade, o conteúdo do seu computador tinha ido na rede de arrasto. E essa pessoa, que já está suficientemente apreensiva com tudo isto, ficou a olhar para mim sem dizer nada. Acho que isso ainda não lhe tinha ocorrido. Não deve ser uma sensação agradável. Mentalmente, deve começar a pensar-se em tudo o que está na mailbox, tudo o que está nas diversas pastas. 

E depois há outra coisa, e nem vou falar no impacto que tudo isto pode ter (e já está a ter) nas empresas portuguesas detidas por sociedades dela, impacto esse que pode não ser coisa pouca: estou a falar nos bancos que financiaram as aquisições dela em Portugal. Na era passista, quando andavam todos a babar de roda dela, todos dispostos a passar tudo a patacos, em especial se fosse para vender a estrangeiros (e tanto que eu aqui clamei contra isso: angolanos, chineses, tudo servia) não pararam para pensar que o risco das operações não estava nela, estava era nos bancos. Não conhecendo eu a situação, prevejo que ainda deve ter grandes dívidas junto desses bancos. Nada por aí além pois alavancagem financeira é o que não falta. Mau é quando as garantias e colaterais são fracos ou, quando necessários, não materializáveis, e quando deixam de ser pago o que é devido de acordo com o plano de amortizações acordadas. E, nesta situação, com o que está a acontecer, como é que ela vai entregar alguma coisa? Mais imparidades para os bancos e tomara que não venha aí buraco do grosso, daqueles que, para evitar perturbação no sector bancário, obrigam a injecção pública de capital. Tomara.

Portanto, read my lips: esta história que é, em primeiro lugar, uma história angolana em que, a ter havido algum crime, ele diz respeito a Angola, pode ainda ter ondas de choque substanciais em Portugal.

Aquilo que eu temia, que as empresas portuguesas onde ela tem participação sofressem com o impacto desta guerra de facções angolanas -- coisa que não diz respeito aos portugueses -- pode muito bem vir a acontecer. E que algumas coisas estranhas começassem a acontecer também.

Depois da PwC e a BCG já estarem a descartar-se, como se tivessem andado a fazer os trabalhinhos de olhos fechados, e alguns dos seus quadros estarem a saltar como se tivessem sido eles a fazê-los sozinhos, à revelia dos partners, ia agora dizer que a VdA também deve estar a deitar contas à vida mas, na volta, não. Isso é polvo que está tão ramificado, defendendo uns e outros e até uns e a parte contrária, que são muito bem capazes de passar por isto sem terem que encolher depois de tão exuberantemente terem inchado -- vidé as suas fantásticas novas instalações. De qualquer maneira, com tudo o que é BCBG a trabalhar com eles, toda a documentação do escritório deve estar na mão de quem mandou piratear todas aquelas redes informáticas. Toda, incluindo documentação de outros clientes, de outras empresas. Mas, claro, isto sou eu a supor.

Mas adiante até porque, de resto, como disse, não quero continuar a levantar pedras pois, de cada vez que o faço, sai de lá um espírito que se materializa pouco depois.

quinta-feira, janeiro 23, 2020

Isabel dos Santos está sozinha no olho do furacão do Luanda Leaks?
Ou, nesta história, dá para brincarem uns com os outros ao 'quem diz é quem é'?
Pergunto.


Nuno Ribeiro da Cunha, diretor do private banking do EuroBic e o gestor da conta da Sonangol que efetuou algumas das transferências suspeitas no caso Luanda Leaks, foi encontrado com ferimentos graves, na casa de férias da sua família, no dia 7 de janeiro. A notícia está a ser avançada pela TVI, que garante que a Polícia Judiciária (PJ) está a investigar uma possível suspeita de tentativa de homicídio ligada ao caso que envolve Isabel dos Santos. O Observador confirmou a informação junto de uma fonte da PJ, que confirmou não estar excluída a suspeita de tentativa de homicídio.
De acordo com a TVI, Nuno Ribeiro da Cunha foi encontrado pela empregada na casa de Vila Nova de Milfontes com ferimentos graves nos pulsos e no abdómen. À PJ, terá dito ter-se tratado de uma tentativa de suicídio ligada a uma depressão. [...]
(in Observador)

Mas isto nem tem nada a ver com o que escrevi ontem nem com o título deste post, é apenas um fait-divers. E provavelmente não vai despertar a empatia de nenhum dos leitores da notícia, tenha Nuno Ribeiro da Cunha sido vítima de tentativa de suicídio, tenha sido vítima de uma tentativa de homicídio. Quando alguém cai em desgraça, meio mundo pisa e salta a pés juntos em cima --  não só dessa pessoa como de todos os que, de alguma forma, lhe eram próximos. É da natureza humana que, como é sabido, é muito próxima à dos ratos.

No outro dia, em conversa informal sobre estes assuntos (e ainda nem tinha rebentado a bronca que dá pelo nome de Luanda Leaks) alguém me dizia: cuidado com esses meninos, é barra pesada, qualquer dia ainda aparece alguém a boiar no Tejo. Pois. Mas, enfim, como se diz, dizer isso vale o que vale. Mera vox populi.

E, estando eu hoje numa de ideias desencontradas, digo também que seria curioso que os senhores jornalistas e senhores comentadores fossem atrás da dica da Isabel dos Santos sobre quem financiou esta so called investigação. Mas sobre isso não ouço falar. Ora, cá para mim, toda esta intriga ganharia uma dimensão mais interessante se se seguisse também essa linha de investigação. Cherchez la couleur de l'argent.

E, diria eu, também seria curioso saber como exactamente é que a coisa se passou: foram contratados hackers, certo? Seria interessante conhcer quem contratou quem. Contrataram hackers que varreram os computadores de tutti quanti (centenas de milhares de documentos obtidos sabe-se lá em quantas redes informáticas de empresas, escritórios de advogados, conservatórias, bancos e/ou computadores pessoais: escrituras, balanços, balancetes, extractos, mas também relatórios médicos, correspondência privada, fotografias de família ou íntimas, etc)? Pergunto. E nisto, que eu saiba, não é cherry picking: é mesmo pesca de arrasto. Tudo. Copiar tudo o que se apanha. Depois como foi? Foi tudo vendido, bulk, aos jornalistas? Pergunto. E eles, os do tal consórcio de jornalistas? Como 'agarraram' nisso? Com que critério e conhecimentos cruzaram informações entre setecentos e quinze mil documentos das mais variadas proveniências? Dedicaram-se a vagaroso puzzling (e atenção à ambiguidade do sentido da palavra)? Ou ficaram-se pelo que dá parangonas bombásticas? Ou pelo que é conveniente a quem financiou a pirataria? Pergunto. Só pergunto. E, ao varrerem toda a informação dos locais pirateados, o que foi feito ao que não dizia respeito à Isabel dos Santos? Destruíram...? Ou é maná, informação que está guardadinha para um just in case? Para chantagearem A ou B? Para extorquirem dinheiro a C ou D? Para ficarem com E e F na mão...? Etc. Mas, enfim, são meras perguntas. Dúvidas minhas.

E pergunto isto sem pôr em causa o mérito de uma investigação séria que venha a acontecer. A quem confunde as minhas dúvidas com o branqueamento da responsabilidade do que quer que tenha sido feito e que venha a ser provado ser crime, esclareço de novo: não branqueio nem desculpabilizo coisa nenhuma. Apenas, como sempre, reservo-me para acreditar apenas no que é provado ou do que foi constatado em pleno acto. Deformação profissional. Neste como em qualquer caso, antes de ser provado, tudo é apenas uma hipótese. E volto a dizer: face ao que se conhece desse caso (a cultura, os hábitos, a envolvente, a entourage, etc) é provável que tenha havido movimentos tocados pela ilicitude. Portanto, a ser verdade, deve ser fácil de provar. E, se for provado, pois que se faça justiça.

Até lá, cuidado com os juízos apressados e primários, cuidado com o maniqueismo, cuidado com as vistas curtas. Cuidado com os jogos de espelhos. Cuidado com as manipulações.

E cuidado com os ratos que fogem e batem com a mão no peito ou com os histéricos que, quais cães a correr atrás de qualquer osso que se atire, agora rosnam contra a Isabel dos Santos e se esquecem dos outros, dos que estão atrás dos espelhos, ou dos outros de que ninguém fala mas que também têm trazido dinheiro para Portugal cuja origem se calhar também está toldada por ilicitudes ou por atentados aos direitos humanos. 

E volto a dizer: quem agora muito saltita e pipila são os pardais, histéricos com este primeiro punhado de grãos de milho que está a ser atirado. Mas há ainda o que virá a seguir... ou o que nunca se saberá. Oxalá é que a atenção da turbamulta se aguente desperta até lá. E que haja lucidez e não o habitual primarismo que é o terreno fértil de que se alimentam os populistas e os vulgares justiceiros populares.

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Luanda Leaks: hacking legal, é isso?


Nisto tudo, independentemente do mérito da investigação e do que venha a resultar daqui, ocorrem-me algumas dúvidas: 
  • Como foi mesmo que obtiveram todos aqueles milhares de documentos? Será que foi da mesma maneira que o Rui Pinto obteve os documentos do Benfica? Daquela tal maneira que faz com que esteja preso? Ou há modalidades legais mesmo que sem consentimento do proprietários da informação? Pergunto.
  • E mais: a SIC participou da investigação, não foi? Como? Quem? Se calhar já explicaram isso, eu é que, na volta, não li ou não ouvi. Mas estou curiosa. A palavra de ordem não é transparência? Então vamos todos ser transparentes...? 
  • Outra questão: ouvi bem quando alguém falou nos serviços secretos de Angola metidos nisto? Ou não ouvi?
E uma observação. Uma observaçãozinha mais. Coisa de nada: é que me parece que este assunto não é para meninos. Nem para virgens. Nem para santinhos. Este assunto, cá para mim, é dos cabeludos. Diria mesmo: dos perigosos. Cuidado com o que se está a passar. Mas, claro, isto sou eu a pensar. Coisa de intuição. Provavelmente é o tal sexto sentido, coisa de mulheres. Só isso.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Isabel dos Santos, de princesa boaz$nha a bruxa má?


Quem a conhece diz que é simpática, simples, afável. Sei de quem, numa situação em que é usual obter tratamento de privilégio para algumas pessoas, lhe sugeriu isso e ela não o quis, optando por ficar em situação de igualdade no meio de pessoas que, certamente, nem terão reparado que era a 'princesa' que ali estava. Não sei se isto diz alguma coisa sobre ela para além disto mesmo -- mas fica o apontamento.

Sei também de um ou outro caso, e um deles é público. A equipa de gestão que escolheu fez razia. E, no entanto, sabendo-se o que se sabe, não se pode dizer que a razia não estivesse mesmo a pedir para ser feita.

Sei também de quem disse, ao falar-me de um certo lugar de Luanda: um condomínio de luxo, fantástico -- da Isabel, claro.

Sabe-se também como todos queriam usufruir do dinheiro dela. Portugal em crise, endividado até à medula, a economia em seca severa depois da liquidez circulante se ter escoado. Um dia, eu própria sugeri: 'E porque não apostarmos também para Angola? Dinheiro é o que não falta, contactos com ela também não. Ela quer investir, ela quer parceiros idóneos, ela quer ganhar credibilidade. Porque não?' Obtive um liminar não!: 'É nossa política não nos metermos em esquemas'. Contrapus: 'E será que ainda é assim? Ocidentalizada e moderna como é, será que é de esquemas?'. Do outro lado um sorriso: 'Ali tudo funciona com base em esquemas'. Nunca mais toquei no assunto pois os sinais iam chegando de que assim era.

Um dia, uma outra pessoa contou-me: 'Para um casamento da família, um avião fretado só para levar flores da Holanda'. E descreveu como foi. E uma pessoa, ao ir ouvindo, vai-se torcendo. Não era ela mas alguém próximo. Mas nem era isso, em particular: era, isso sim, o modo de vida da entourage. Luxo. Dinheiro. A rodos. Um excesso mas um excesso que custa mais a encarar de frente quanto se sabe da pobreza da população, quando se sabe da perseguição a quem denuncia, a quem se opõe.

É certo que dinheiro gera dinheiro. Os melhores consultores, os melhores advogados, as oportunidades sabidas em primeira mão. Sempre assim foi, sempre assim será: dinheiro gera dinheiro.

Mas eu falo do que sei e o que sei é pouco, é nada, e embora seja fácil admitir que talvez tenha mesmo usufruido de facilidades e de facilitismos, nada sei em concreto do que se passou ou de como se passou. Não parece difícil acreditar no desvio para paraísos fiscais mas deve falar-se do que se sabe e do que se tem como provar. Ou isso ou optimização fiscal. É o que os bons fiscalistas fazem: explicar, a preço de ouro, como é. Ou parquear acções aqui ou acolá, parquear a fortuna aqui e a dívida ali, gerir a política de dividendos com inteligência, umas vezes com ousadia, outras com pinças. É este o mundo dos grandes investidores, dos grandes empresários.

Claro que há os que têm a ética e a consciência social no seu ADN e há os que almejam lá chegar, um dia. Para todos, a sustentabilidade já é palavra de ouro, uns porque sim, porque sempre lhes foi conceito caro, outros porque é moda e querem estar updated, estar naquele ponto a que se chama state of the art. Não é fácil, para quem não está por dentro, distinguir com exactidão os que são e os wanna be. 

Quando uma empresa consulta fornecedores, consultores, advogados ou quer fazer parcerias e tudo vem bem sustentado, as contas estão auditadas, não há risco de crédito, tudo está em ordem, é normal responder e estabelecer parcerias. Não se vai investigar a pureza de intenções nem se tem como investigar a origem do dinheiro. Portanto, é bom que os jornalistas -- que pouco sabem disto -- ou a malta que pulula nas redes sociais não desatem a fazer juízos primários ou numa absurda caça às bruxas como se todas as empresas que têm ou tiveram alguma interacção com a 'princesa' fossem corruptos ou, pelo menos, esquemáticos. Ou seja, haja alguma ponderação e inteligência: não falem do que não sabem nem saiam a disparar para todos os lados.

Não estou a defendê-la, longe disso. Se desviou dinheiro público para contas privadas em offshores, se usurpou benefícios indevidos ou coisa do género, isso é uma coisa e é bom que a justiça investigue a fundo e, de forma célere, isenta e eficaz, faça o seu papel. Outra coisa é andar a malta de faca afiada porque a mulher é rica ou filha do Dos Santos -- como se isso, só por si, fosse crime.

E outra coisa: sobre empresas de diamantes ou imobiliárias ou resorts de luxo no Brasil ou em Luanda ou onde seja ou outras empresas não me pronuncio. Não tenho qualquer informação para além do que se vai lendo. Agora sobre as empresas em Portugal ou outras que tenham participação em empresas relevantes em Portugal, aí já me preocupo. Não nos esqueçamos que isto que se está a passar causa danos reputacionais nas empresas em que Isabel dos Santos tem participação. E os danos reputacionais por vezes matam as empresas. Antes de pensarmos apenas no facto de ela ser, directa ou indirectamente, accionista, pensemos nas pessoas que lá trabalham e que não têm nada a ver com isso, pensemos nas suas famílias, nos fornecedores e clientes dessas empresas. Milhares de pessoas. Não matemos empresas com a mesma leviandade com que o Passos Coelho resolveu matar o Grupo Espírito Santo. 

Finalmente: uma vez mais o Banco de Portugal parece ter demonstrado que é um peso morto, uma mão cheia de nada. Em relação às operações num banco conotado com ela (e, mais do que conotado, diga-se) o Banco de Portugal, não viu, não desconfiou, não previu, não monitorizou...? Nada..? Dizem que não. E isso é assustador. Aparentemente não serve para nada. Não policia coisa alguma. Um regulador de luxo que, aparentemente, não serve para nada.

Algum dos senhores jornalistas que gosta de andar atrás de frioleiras já alguma vez olhou para o orçamento do Banco Portugal? Algum dos senhores comentadores que enxameia as televisões já fez o deve o haver do Banco de Portugal para ver se ficamos a ganhar alguma coisa com a sua existência? Tenho cá para mim que haveria de ser giro. 

Mas, claro, a incompetência e a inutilidade do Banco de Portugal não desculpam nem atenuam os crimes de Isabel dos Santos -- a ser provado que existiram, claro.

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As ilustrações que representam Isabel dos Santos foram obtidas na net sem que tenha conseguido descobrir a sua autoria

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quinta-feira, janeiro 16, 2020

O que custa uma pessoa ter que se levantar quando está no melhor dos sonos


Contaram-me que um tal que saíu de uma das empresas depois de um conturbado processo já se reformou. Como o fez antes da idade certa teve uma penalização considerável mas, como tinha um ordenado base elevado, a redução não lhe faz mossa. Para mais, recomeçou a trabalhar, agora como assessor. Contam-me isto como se fosse coisa boa, invejável, e eu só penso que cada vez percebo menos as pessoas que parece que não conseguem deixar de trabalhar. Disse: 'Eu, um dia que me reforme, nem pensar em voltar a trabalhar. Acho que nem vou querer saber de nada que se relacione com as empresas em que trabalhei nem saber de nada relacionado com as matérias que me têm ocupado em todos estes anos'. Quem me ouviu, reagiu com estranheza: 'Ah, não diga isso... Com certeza que receberá convites. Não vai dizer que não. Não a vejo a querer ficar em casa'. Pois, não quero saber se vêem ou se deixam de ver. Me dá igual.

O que sei é que começa a custar-me ter que me levantar cedíssimo nos dias em que tenho reuniões à primeira da manhã no cu de judas. Não sou de me deitar cedo e nem vale a pena tentar. Se for para a cama sem estar perdida de sono, agarro é uma espertina. Claro que poderia ir recuando nos meus horários mas o meu ritmo é outro, conduz-me incontornavelmente para a noite. E tudo bem se puder dormir, de penalti, aquelas horas que me deixam bem. Bastam-me poucas mas têm que ser de seguidinha e até à hora a que me levanto na boa.


Agora, se a alvorada é de noite, está tudo estragado. Acordar e não ver raio de luz, espreitar a rua e ver as ruas desertas e escuras é coisa que me condiciona o sistema nervoso, o límbico, tudo. Levantar-me a meio do sono, a precisar de dormir mais um bocado, deixa-me incompleta. Pode ninguém dar por isso mas dou eu. Sinto que falo mais pausadamente e os outros pensarão que estou mais ponderada, menos impulsiva. Mas eu sei que é a maneira que tenho para conseguir falar enquanto, por dentro, estou a meio gás. É que me levanto desfalcada de sono e, depois, não mais consigo repôr a energia pois meto-me no carro e aí vou eu para depois entrar num edifício, subir à sala de reuniões e, quando estou é a precisar de me reorganizar mentalmente, tenho que me sentar a uma mesa cheia de homens e desatar a falar de temas que requerem atenção.

Podia, é certo, ir hoje mais cedo para a cama. Mas está bem, está. Agora estou a ver a Isabel dos Santos numa entrevista de qualidade. Inteligente. Bonita, segura e empresária. Empresária da cabeça aos pés, no sangue que lhe corre nas veias. E quanto ao resto a justiça o dirá. Não lhe conheço os balanços nem as demais peças contabilísticas nem as movimentações societárias e/ou financeiras para poder ajuizar. Portanto, limito-me a ouvir. Com interesse.

Enquanto vejo televisão e me queixo destas minhas frivolidades, desloco-me até ao YouTube para pescar uma musiquinha boa. E pimbas, qual big brother escrutinando o que escrevo ou como me sinto, avança com uma sugestão: 

Alarm clock and getting up | Mr Bean Official


E é isto.

Já agora: a senhora a dormir não sou eu até porque não uso camisa de dormir. Quem a caçou naquela falta de compostura foi Francesc Gimeno

Até já. 

quarta-feira, abril 20, 2016

Isabel dos Santos, BPI, Santoro, CaixaBank, Ulrich, parcialidade, falsidade, bruá-á, bruá-á.
E, perante um certo nervoso miudinho que se sente nos corredores da pedinte finança portuguesa, qual a indústria que floresce?
A indústria dos comentadores, pois claro. Magotes.
Mas eu já não tenho paciência, juro.
Por isso, se me permitem, vou ao baile. Bailemos.


De repente, escasseando o capital onde antes ele circulava em abundância, há como que um impacientar, um mal disfarçado nervosismo entre todos quantos aí se movimentam.

Uma coisa é um ciclo expansionista, liquidez à espera de lugar para ser parqueada, e outra é o contra-ciclo, o petróleo a desvalorizar, os fundos sob suspeita, o país sob resgate, credores a bater o pé, um regime há muito sob suspeita, um cerco que parece querer apertar-se.

Os animais, mesmo os mansos, quando se sentem feridos ou ameaçados tornam-se perigosos, traiçoeiros.

A bela Isabel dos Santos, sorriso doce e covinhas no rosto, promete dar luta e, atrás dela, estão os amigos de seu pai. Em Portugal, por todos os lados onde ela andou a deixar o seu dinheiro, teme-se: e se ela...? e se isto dá mesmo para o torto?



Assim estamos. Depois de termos caído, cegamente, nos braços do capital angolano, agora estamos receosos, já ensaiando mesuras, prontos a baixar a nossa dúctil coluna, vergando-nos, se necessário for, aos pés dos senhores do poder. 

Um dia talvez também estejamos assim perante o capital chinês. Tantas empresas importantes nas mãos de capital chinês, angolano. Ou brasileiro. Ou de fundos. Tanto dinheiro que tem entrado, na verdade sem que dele se conheça a verdadeira proveniência, tanto dinheiro que comprou os destinos de tanta gente em Portugal.

Não foi apenas coisa dos anos de governação de Passos Coelho. Há quanto tempo Portugal se pôs a jeito? Há muito, sobretudo desde o tempo de Cavaco primeiro-ministro. A economia posta em seco, no estaleiro, a definhar, a troco de mãos cheias de moedas para fazer rotundas, pavilhões multi-usos, formação de faz de conta, parvoíces nas quais os portugueses são exímios quando os videirinhos tomam as rédeas.

Não foi só com ele, mas, de facto, muito se passou nestes tristes anos de Passos Coelho. Com que pressa se despachou a Cimpor para logo de seguida ser desmantelada? Com que pressa se despachou tudo, de qualquer maneira? Chamam-lhes conquistas, os senhores de Bruxelas que temem que este Governo ponha em marcha retrocessos num caminho que acham tão louvável. 
Conquistas? Os trabalhadores com menos direitos, milhares de pessoas num desemprego de onde dificilmente sairão? Conquistas, isto? Deserções, sim, rendições, também.
As verdadeiras reformas não foram feitas e não será fácil fazê-las com os cães de fila de Bruxelas à perna. Um país permanentemente adiado, uma economia desamparada, sem energia para se levantar -- isso é que é.

No meio disto, tal como perante as infindáveis sessões das Comissões de Inquérito a que abaixo já me referi, as televisões rejubilam e refloresce a indústria dos comentadores a granel. Poderia a coisa refinar-se, pescarem apenas os muito bons. mas não, vai tudo a eito. Os comentadores em Portugal viraram commodity
Expulsam um treinador num jogo qualquer: de imediato saltam dezenas de comentadores para os balcões das televisões. 
Os deputados no Brasil votam o impeachment em nome da mãe, do filho, do clube, do gato e do piriquito: boa. Mais cinquenta comentadores repartidos pelos vários canais. 
O Banif foi parar ao Santander sem se perceber como? Jackpot. Comissão de inquérito em directo e em diferido e comentadores em permanência. 

Os Panama Papers envolvem o Júdice e o Rendeiro? Ui. Ponham no ar os dois ao lado um do outro, de sobretudo, afamados a bastados, e que mais trinta macaquinhos e quarenta papagaios venham opinar sobre o caso. 

Ai, a Isabel dos Santos roeu a corda? Melhor ainda. Até salivam. Caem das árvores mais umas dezenas deles, cri cri cri, cri cri cri.

E não tarda o Pedro Santos Guerreiro fará um vídeo, e o José Gomes Ferreira, o João Vieira Pereira e o Ricardo Costa naqueles seus números de travesti, despirão o fato de jornalistas (que já pouco ou nada são) para se apresentarem, doutorais, a parlar de alto sobre os sucedidos.

Face a este lindo panorama, dizer o quê? 

Nada. Não me apetece dizer nada. Zero. Farta desta indigência. Vou mas é dançar. Venham também.



Apetece-me, isso sim, recordar umas noites de há mil anos atrás, uns bailes à noite no recreio da escola, cordas cruzadas com papelinhos coloridos e recortados a enfeitarem, a fazerem como que um grande telheiro rendilhado, o recinto enfeitado com luzes às cores, a minha mãe muito elegante, alta, com vistosos vestidos floridos e rodados, o seu cabelo muito louro, saltos altos, o meu pai desportivo, elegante, sempre pouco exuberante, as amigas da minha mãe todas muito bonitas e alegres. Juntavam mesas, juntavam-se em volta das mesas, conversavam, riam. Por vezes havia petiscos. Bifanas. Caracóis. Camarões. O que eu adorava aquilo, aqueles cheiros, o apetite que me dava toda aquela energia. Comiam, conversavam, a música muito alto.

E os filhos todos. Eu e muitos outros meninos e meninas. Eu também com vestidinhos bonitos, sandálias, talvez tranças ou, então, cabelo apanhado em cima, um laço a condizer com o vestido.

Debaixo do verdadeiro telheiro do pátio estava o palco. Cantavam, tocavam. Tenho ideia que havia sempre concertina. Eu gostava tanto. Os meus pais iam dançar, os amigos também. 

E eu e os meus amigos também. Ou isso ou brincarmos às escondidas. Ou corrermos. Mas eu gostava de dançar. Por vezes, o meu pai pegava-me ao colo e dançava comigo e eu ficava toda contente. Ou pegava-me ao colo e eu dançava entalada entre ele e a minha mãe. Ou os meus tios solteiros e amigos da farra. Que orgulho quando se punham a dançar comigo.

Por vezes, os meus avós também iam, o meu avô contrariado, e, por isso, pouco depois de volta a casa, ele dizia que tinha que se levantar cedo. A minha avó viúva também ia. Sempre fez questão de mostrar que o seu coração continuava preso ao meu avô mas eu via nela uma mulher bonita, jovem, com vontade de viver. Mas nunca cedeu. Não dançava. Mas conversava, ria, dizia graças. Se algum homem, por brincadeira, fazia menção de a tirar para dançar, ria-se como se o gesto fosse um gracejo, e não aceitava. Ficava na conversa com outras mulheres, tenho ideia que com outras viúvas.

Eu gostava de ver os homens, geralmente os jovens e solteiros, atravessarem o pátio e, sorridentes, sentindo-se uns valentes pela ousadia, irem pedir para dançar as jovens que se juntavam em mesas, tímidas, ansiosas, sorrindo cúmplices, talvez com medo de que ninguém as quisesse e que ficassem abandonadas o resto da noite. 

Íamos muito tarde para casa, os meus pais e os amigos conversando animadamente, a minha mãe de braço dado com o meu pai, eu e os meus amigos felizes por nos irmos deitar tão tarde.

Foi há tanto tempo. Talvez na província ainda haja destes bailes no verão, talvez a alegria ainda seja a mesma. Nas cidades acho que já não há, assim, com famílias, com crianças. Mas tenho que procurar pois, se os houver, quero ir. Apetece-me dançar para espantar tanto mal.

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As imagens são das campanhas publicitárias Dolce & Gabanna.

Ali em cima, era o Duo HuuBér, Bér Donkers & Huib Hölzken, alegremente interpretando uma Musette.

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E, caso ainda não tenham visto a cena do Detector das Mentiras que muito vivamente recomendo para as sessões públicas do Big Brother das Comissões de Inquérito Parlamentares, aceitem o meu convite e continuem, por favor, a descer.

sexta-feira, dezembro 11, 2015

“Dá felicidade ao mundo, estejas onde estiveres”



Estive uma única vez em África: em Angola. E fiquei fascinada. Não sei se lá voltarei. A experiência que, então, vivi é irrepetível e não quero macular a memória desse tempo fabuloso: cerca de um mês em absoluta liberdade, com jovens da minha idade. O calor, a necessidade de andar com pouca roupa, o corpo tão próximo do ar que eu respirava, o corpo tão livre, nadar em águas tão limpas, as árvores enormes, lindas, recortadas na paisagem, o pôr-de-sol imenso, a sensação de percorrer caminhos novos, caminhos muito novos, de estar a percorrê-los num mundo que era outro, longe de tudo - isso não se compara a nada. Tinha deixado em Portugal os meus pais e o meu namorado. E ainda não havia telemóveis e, nos sítios por onde andava, muitas vezes não havia telefones. Ou se calhar havia mas, não sei porquê, não ligava todos os dias, só de vez em quando. Escrevia postais. Não sentia falta de manter a ligação com os que cá estavam.

Já o contei aqui: conheci lá um rapaz mais velho que eu, eu era uma adolescente e ele homem feito, um homem jovem, mas com uma maturidade e vivência que não se comparava à dos meus amigos. Foi uma amizade intensa, dias inteiros juntos, conversávamos de manhã à noite, passeávamos, os dias eram enormes. Gostava muito dos meus ombros, dizia que os meus ombros o deixavam maluco. Eu ria mas as palavras dele, a forma como me olhava e o seu perfume também me deixavam maluca.

Lembro as praias. Não era só Luanda ou o Mussulo. Eram as praias do Lobito, Nova Lisboa. Íamos para a praia ao fim do dia. Passeávamos à beira-mar, a rebentação muito ao de leve, quase nada.  Por vezes havia mulheres que andavam pela beira de água, cantavam, tenho ideia que, à noite, estavam embriagadas, o seu canto era baixo, acompanhava a ondulação branda.

Estava sempre muito calor e eu usava vestidos ou blusas sem mangas, sem costas. Vejo-me, numa fotografia, à beira de umas quedas de água e tenho um cai-cai encarnado e nesse dia não tinha feito uma trança, usava o cabelo comprido caído. Usava uma bolsinha de vime entrançado que tinha comprado lá.

Também gostava de ir às aldeias de palhotas, gostava de andar por lá. Diziam-me que não devia mas eu gostava. Entrei em algumas, convidavam-me. Os musseques. Que eu não fosse, que era perigoso. Nunca senti qualquer perigo, pelo contrário: só simpatia.

Era um mundo tão novo para mim, tão inexplicável. Atraente de uma forma orgânica.

Trouxe de lá tecidos artesanais com grandes flores cheias de cor, colares de sementes e contas coloridas. Gostava de ir aos mercado de rua (S. Paulo em Luanda - seria?), andar por lá a ver os produtos deles, com vontade de trazer, de experimentar, de me arranjar como se fosse negra.

Na altura a pele escura era, para mim, um factor de diferenciação. Não de beleza mas de estranheza. Com o tempo fui mudando. Quando andava na faculdade havia vários estudantes negríssimos. Alguns tinham uns corpos esculturais. Eram muito unidos, andavam sempre juntos. Alguns simpatizavam muito comigo. Quando cortei o cabelo, um deles não se conformava, não percebia como tinha eu sido capaz de cortar o meu cabelo. Eu achava graça à maneira de ser deles, tão extrovertidos, tão genuínos. Aos poucos fui vendo a pele negra de outra forma. Acho agora a pele negra especialmente bela. Por vezes vou almoçar a um restaurante onde há um empregado negro, negro, negro. Lindo, parece-me um ser superior.

É como Lupita Nyong'o: é muito bela, luminosa. Uma pele assim, umas feições assim: toda ela me parece uma obra de arte.

Não sei como alguém pode achar que os negros são seres inferiores. Não sei como pode ser ainda um 'caso' ter-se uma ministra negra. A mim parece-me natural: apenas quero saber se é competente. No caso concreto, a nível pessoal, apenas fiquei satisfeita por saber que Francisca Van Dunem é casada com o Prof. Paz Ferreira (gosto dele, gosto de o ouvir na televisão, sempre sorridente, assertivo mas com uma invejável bonomia).

No outro dia, por razões que não vêm ao caso, tive que andar de autocarro.
Para quem ande habitualmente em transportes públicos, isto pode parecer pedante da minha parte; mas não é. Há anos, já nem sei há quantos, que, nas cidades, apenas me desloco de carro. Não é que ache que é sempre a melhor opção mas, também por razões que não vêm ao caso, tem que ser.
Para além de mim, no autocarro, só iam negros. Várias mulheres, em especial. Falavam alto, riam, depois tiraram pão das malas, comeram, cheirava-me a chouriço. Iam felizes, soltas na sua alegria descomplexada. Gostava de me ter metido na conversa. Outras falavam numa língua desconhecida, uma língua também luminosa, cantante. A verdade é que nem dei pela viagem pois fui todo o caminho fascinada com elas. Lembrei-me da saudade que me ficou daqueles distantes dias de Angola. Há qualquer coisa de imenso, daqueles imensos espaços, dentro da alma dos negros.
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É tarde e esta sexta-feira vou levantar-me quase de madrugada, esperam-me quilómetros para cá e para lá, e, pelo meio, um dia de reunião. Por isso, fico-me por aqui. Veio esta conversa a propósito de uma notícia que li e que me encheu de alegria.

Transcrevo:

São cerca de 70 homens e mulheres que enfrentam, em muitos casos, condenações perpétuas por homicídios e roubos, mas também por acusações de bruxaria e homossexualidade. Em fevereiro, podem passar a ser os vencedores de um Grammy, na categoria Música do Mundo

Este ano, entre os nomeados para os prémios Grammy encontra-se um grupo do Malawi responsável pelo álbum “I Have No Everything Here”, na categoria World Music (Música do Mundo). Até aqui, nada de anormal, mas há uma particularidade a destacar nesta história: é que este grupo chama-se Zomba Prison Project e é composto exclusivamente por presos de um estabelecimento de segurança máxima daquele país.

O grupo, composto por cerca de 70 homens e mulheres que enfrentam, em muitos casos, sentenças de prisão perpétua, contou com os instrumentos mais básicos - aqueles disponibilizados pelo estabelecimento prisional - para gravar as 20 canções lançadas em janeiro, 18 das quais compostas pelos próprios prisioneiros. (...)

O álbum combina sons suaves de guitarra com letras que chamam a atenção, cantadas em Chichewa, uma das línguas oficiais do país: “Partilha com a terra a tua felicidade/ Dá felicidade ao mundo, estejas onde estiveres/ Tenta mostrar felicidade todos os dias a quem te rodeia”, ouve-se no tema “Don't Hate Me” (Não me Odeies).

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As três primeiras fotografias são da autoria de Chief S.O. Alonge e sobre elas e sobre o seu fantástico autor pode ler-se aqui (agradecendo eu ao Leitor que me enviou este link):


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira.

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terça-feira, outubro 27, 2015

José Sócrates, Luaty Beirão [A propósito da náusea demonstrada por Daniel Oliveira no Eixo do Mal e da censura do Embaixador Seixas da Costa no seu blog Duas ou Três Coisas]






Hoje, enquanto ia no carro à hora de almoço, ouvi Isabel do Carmo a falar da sua experiência de greve de fome. Em tempos, cumpriu 30 dias. Luaty Beirão já cumpriu 36 e, ao que hoje ouvi, começa a aproximar-se do ponto de não retorno. Explicou Isabel do Carmo que o corpo começa a formar açúcar a partir das gorduras dos próprios músculos mas que o cérebro, sendo um órgão bem preservado nestas situações limites, se mantém bem, lúcido. O soro mantém alguma hidratação mas, mesmo transportando alguns sais, não é suficiente, há um ponto em que os órgãos entram em falência. Contou que, a cada momento, a pessoa em greve se interroga sobre se 'eles' vão ceder, sobre se 'eles' a irão deixar morrer. Dizia ela que nenhum poder quer ficar com um morto na consciência pelo que é normal que acabem por ceder. 

Mas com Angola não se sabe e, além disso, há o drama da longa duração com que já vai o jejum de Luaty.

É admirável a coragem deste jovem que, tendo uma mulher que tanto o ama e uma filha pequena de que tanto lhe custa estar longe, coloca a sua vida em risco em luta contra um regime ditatorial que atenta tão grosseiramente contra os mais elementares direitos humanos, que atenta tão despudoradamente contra a liberdade de opinião dos seus concidadãos.

Faço votos que aquela gente de Angola perceba que se diminui aos olhos do mundo com actos prepotentes como o da prisão de Luaty e de todos os outros que, por motivos idênticos, se vêem privados da sua liberdade. Por vários motivos, Angola está a atravessar um mau momento e a última coisa que deveria querer era ser vista como um país atrasado, perecendo às mãos de um regime de tiranos.


O caso de Luaty Beirão não é igual ao de José Sócrates, claro que não. Luaty foi preso porque foi apanhado a ler um livro suspeito e porque era sabido que lutava (com a força das suas palavras) contra os métodos ditatoriais do governo angolano.


José Sócrates foi privado da sua liberdade por outros motivos - mas eu não os conheço pelo que não posso pronunciar-me sobre eles. Até há meia dúzia de dias José Sócrates também não os conhecia. 

O Correio da Manhã, a revista Sábado, o Jornal i e o Expresso, entre outros, enquanto o processo estava em segredo de justiça, iam, contudo, divulgando os motivos: que os investigadores achavam que o dinheiro do amigo era de Sócrates, que as casas do amigo eram de Sócrates, que a casa da ex-mulher de Sócrates era de Sócrates, que Sócrates tinha favorecido negócios em Angola, que não, que a coisa se tinha passado na Venezuela, que não, que afinal era em Vale de Lobo, que não, que era coisa da farmacêutica, que não, era coisa do Grupo Lena, que não, que era coisa com os direitos de transmissão de desafios de futebol - etc, etc, etc.

E, pasme-se, tudo isto se teria passado enquanto Sócrates era primeiro-ministro, trabalhando, como era sabido, de sol a sol, sempre com reuniões de trabalho, e enquanto a sua vida era passada a pente fino nomeadamente a propósito do outlet de Alcochete.


Como já o disse mil vezes, não faço a mínima ideia do que se passa ou passou na vida privada de Sócrates e pode ser que daqui por algum tempo passe a andar de queixo caído, de espanto, por se descobrir que afinal Sócrates tem uma gruta cheia de arcas transbordantes de jóias e pedras preciosas, que é dono de cem prédios nas avenidas mais caras de Lisboa, duzentos apartamentos em Paris, quinhentos flats em Nova Iorque, que tem, acostados na Riviera Francesa, seis veleiros e vinte iates, que aí num aeródromo qualquer tem uma dúzia de jactinhos e duas dúzias de helicópteros, que tem um armazém cheio de Ferraris, Bentleys, Porsches, Carochas de colecção e Bicos de Pato amarelos, e que, não contente com isso, para cúmulo, ainda tem 50 espanholas, 60 moldavas e 80 brasileiras por conta. Pode acontecer. Pode também acontecer que afinal haja outro, um gémeo que, com o seu acordo, se faz passar por ele para praticar toda a espécie de ilícitos. Tudo é possível. 
Nessa altura - e estando tudo isso provado e comprovado e que não restem aos tribunais dúvidas de que, apesar de tanta indecorosa riqueza, pagava IRS apenas sobre o salário mínimo e que todo o dinheiro que possuía tinha sido obtido por esticão, rebentamento de caixas multibanco, assalto a velhinhas ou suborno de construtores civis ou de agentes de futebolistas - então, aqui estarei para dizer que o filho da mãe me enganou bem enganada e, nem que fosse só por isso, devia ia pagar as favas bem pagas em Évora ou no Cu de Judas. 
Mas, volto a dizer, acharei bem que sofra as consequências se for julgado e condenado. 
Até lá, ele e todos os que não forem julgados e condenados, são inocentes. 
Claro que, não sendo eu uma santinha, até poderia franzir o nariz e pôr-me a querer fazer eu justiça pelas minhas próprias mãos (isto é, por exemplo, condenando-o aqui) se conhecesse a acusação e os indícios fossem tantos, tantos, tantos, e tão aparentemente irrefutáveis que, à luz da minha omnisciência, me parecesse que nem valia a pena julgá-lo, que se poderia fazer um short cut e passar já para a fase da guilhotina. Mas nem isso.

De resto e até prova em contrário, Luaty Beirão em Angola ou, cá em Portugal, José Sócrates, o Daniel Oliveira, o Luís Pedro Nunes, o Embaixador Seixas da Costa, a minha mãe ou você, meu Caro Leitor, são, aos meus olhos e perante a justiça, inocentes, digam lá o que disserem deles e de si. Bem podem o Correio da Manhã, a Felícia Cabrita, o João Miguel Tavares, amantes despeitadas, vizinhas invejosas, primas rancorosas, jornalistas ressabiados, meia dúzia de bloggers e uma dúzia de comentadores ou quem quer que seja dizer coisas ou insinuar 'cenas' que eu continuarei a achar que são inocentes. E, sendo inocentes, como inocentes devem ser tratados.



E vou criticar qualquer sistema judicial por prender durante quase um ano uma pessoa sem que se sinta na obrigação de lhe dizer porque o prendeu tal como vou criticar um outro sistema que prenda uma outra pessoa porque suspeita que essa pessoa quer derrubar um regime apresentando como índícios as palavras que profere ou o que lê. São faces distintas da mesma iniquidade, da mesma prepotência, da mesma injustiça. Condenáveis, de qualquer maneira.
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Lá em cima Zeca Afonso canta Alípio de Freitas. 
As imagens mostram trabalhos em gesso de Rachel Dein.

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Muito gostaria que visitassem o meu outro blog, o Ginjal e Lisboa, onde hoje vou pela mão de Mia Couto ao som de Dvořák

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Mais logo conto-vos quem vai ser quem no governo de Passos Coelho: tenho sabido de uns nomes que são de deixar qualquer um de boca aberta. Mal tenha tempo, já aqui vos digo.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.

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sábado, agosto 22, 2015

Angola: miséria, corrupção e luxo


Porque as imagens falam por si (e algumas são difíceis de ver), sem mais palavras deixo-vos com duas reportagens sobre Angola.

Não nos esqueçamos que de Angola provém capital que tem servido para comprar muitas empresas de Portugal (nomeadamente grande parte das empresas de comunicação social e pelo menos num grande clube de futebol) 


Angola: The World's Deadliest Place for Kids | Nicholas Kristof | The New York Times


Nicholas Kristof reports on the rampant corruption in oil-rich Angola, which is depriving children of education and contributing to the highest rate of child mortality in the world.





Exploring one of the world's most expensive cities-LUANDA




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domingo, julho 12, 2015

Na despedida de Omar Sharif, recordo Dr. Jivago, a man in love with life


Fez ontem 5 anos que comecei esta aventura do Um Jeito Manso. Era para ser uma experiência e acabou por se tornar um hábito, um prazer, uma ocupação nocturna e clandestina.

Mas a verdade é que, ao escrever todos os dias, uma pessoa acaba por, volta e meia, repetir-se. Neste caso, tenho ideia de que já uma vez falei no que agora vou falar. Se assim foi, que me desculpem os que já o leram.

Éramos um grupo de estudantes de todo o país que tinha ido conhecer Angola. Um dos estudantes era mais velho que eu cerca de três anos. Usava cabelo pelos ombros e era um provocador. Antes de o conhecer pessoalmente já eu tinha ouvido falar nele, um gabiru que tinha alguns anos de chumbos por vadiagem e maus costumes mas que, estranhamente, era invulgarmente culto e, sobretudo, muito inteligente. Estava avisada. Claro que, instantaneamente, foi esse que despertou a minha curiosidade. Logo na primeira noite no hotel, estava eu no elevador com umas que tinha acabado de conhecer e o elevador, em vez de arrancar, abriu a porta. Era ele que o tinha chamado. Ao ver o elevador cheio de mulheres, abriu os braços como se se quisesse oferecer ou abraçar a todas e, convencidão, sorridente, olhou-nos com ar ostensivamente apreciador e, num sotaque brasileiro, disse: 'Mulheres... cheguei...!'. E, dizendo isto, eu a pensar 'Grande parvo' e já com vontade de o punir e ele, especado, de olhos postos em mim. 

Nessa noite, quando saímos para jantar, veio ter comigo e, durante o mês que durou a viagem, tornámo-nos inseparáveis. Era um homem feito perto de mim, que era ainda cheia de inexperiências. No continente tinha deixado um namorado que se despedira de mim no aeroporto, comovido. E eu, vendo-o assim, cheio de medos, antevendo riscos e insuportáveis saudades, quase lamentei a minha maneira de ser. O cheiro a aventura era, para mim, um apelo fortíssimo que se sobrepunha a qualquer expectativa de saudades. Soube depois que, no continente, tinha ficado também a namorada do J., o irreverente galã que, nos primeiros dias, se portava como se estivesse ali para seduzir todas as raparigas.

O clima de Luanda era para mim estranho: muito calor, muita humidade. Ao princípio sentia necessidade de tomar banho várias vezes por dia. Encalorada como sou, mal suportava o longo e espesso cabelo nas costas ou vestuário fechado ou, sequer, com mangas. Usava, pois, blusas ou vestidos de tipo cai-cai ou atados atrás do pescoço. E geralmente fazia um entrançado no cabelo, que prendia para que nem a trança me caísse nas costas.

Entre mim e o J., juntos todos os dias, de manhã até de madrugada, ao longo de viagens pelo país, idas à praia, a restaurantes, em esplanadas ou longas conversas junto ao mar, foi-se desenvolvido uma forte estima. Digo estima porque não sei que outra palavra usar. Mas ou porque sabíamos que não tardava nos separaríamos ou porque as nossas hormonas andavam à solta, a atracção era também bastante razoável -- e o tempo, que ia sendo cada vez mais escasso, parecia querer aproximar-nos cada vez mais um do outro.

Eu gostava de o ouvir conversar, do tanto que ele sabia, da sua forma rebelde de pensar, gostava dos seus belos olhos verdes e da forma líquida como me olhava, gostava da forma como ele andava, gostava do seu perfume. E ele dizia que gostava também de algumas coisas em mim mas, em especial, eram os meus ombros que, dizia ele, o deixavam maluco.

Uma noite fomos a um cinema ao ar livre. Não me lembro do nome do cinema mas sei que era num sítio alto da cidade, creio que num bairro chamado Alvalade. A baía de Luanda estava ao fundo, escura, certamente carregada de uma atraente maresia. O cinema era inclinado e lembro-me que, creio que num dos lados, tinha umas grandes bananeiras.





Lá em baixo, no grande ecrã, paisagens geladas, neve, um frio que se colava aos rostos apaixonados dos intervenientes, um frio que atravessava o coração terno do belo Dr. Jivago.

A música do filme atravessava o calor da noite e envolvia-nos.

A história era marcante mas, naquela noite, mais do que a história, o que eu sentia era que o amor do filme parecia impelir-nos um para o outro. Ele aproximava-se perigosamente de mim, queria beijar-me o ombro que quase tocava, eu sentia o seu perfume, a sua respiração, o calor do seu corpo, ele dizia-me ao ouvido que eu era parecida com a Lara e eu dizia-lhe que estivesse calado, que não dissesse parvoíces, e ele dizia que eu era mais bonita que ela e eu mandava-o parar com palermices, que se calasse, que queria ver o filme. E ele que queria beijar-me no ombro, 'deixa... deixa...'.

Não deixei, embora tanto me apetecesse. Acho que sabia que, se deixasse, dificilmente conseguiria travar a situação que estava ali, carregada de electricidade. Por esses dias, o meu namorado era uma realidade distante -- e era sobretudo na namorada dele que eu pensava.

Quando, no fim do filme, descíamos a rua do bairro em direcção ao hotel, íamos os dois muito tristes. Queríamos cair nos braços um do outro e eu não o deixava e bem me custava essa minha absurda recusa. Para ele, abraçar-me e beijar-me era uma necessidade imperiosa e não compreendia o meu impedimento. E eu também não.

Depois dessa noite voltei a ver o Dr. Jivago.
Ao meu lado não estava o J. nem tão pouco o meu namorado da altura. Ambos vivem na minha memória mas, estranhamente, apesar de ter namorado um durante cerca de três anos e de ter estado com o outro apenas durante um mês (embora quase 24 horas por dia), guardo recordações mais marcantes do J. do que daquele meu namorado. 

Mas, o tempo todo, enquanto revia o filme, eu recordava essa noite tão quente, tão languidamente africana. Para mim, o Dr. Jivago não vive, pois, nas paisagens geladas da Rússia, num passado longínquo, numa história partilhada mas, sim, nessa noite ardente de Luanda, ainda tão próxima e tão pessoal, em que, talvez pela primeira vez, me senti mulher feita, desejada, e com o poder de decidir o que conceder ou não conceder ao meu corpo.


Omar Sharif, o egipcío que, para mim, será o eterno Dr. Jivago, foi-se embora este dia 10 de julho. Tinha 83 anos. Amou uma mulher com quem se casou e de quem teve um filho. Depois de se divorciar não voltou a apaixonar-se. Sofria agora de Alzheimer e já não sabia bem em que filmes tinha participado.




Doctor Zhivago com Omar Sharif, Julie Christie. Realizado por David Lean

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E sigam, por favor, para o post abaixo onde tenho um papagaio elitista e permitam que vos recomende a leitura do comentário da Leitora Rosa Pinto onde continua a falar sobre as aventuras do dito papagaio.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um feliz dia de domingo.

O tempo passa e nós com ele -- e que o caminho se faça sempre em harmonia e felicidade.

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terça-feira, abril 28, 2015

Diz-se que um homem não chora


No post abaixo relatei o meu dia, um dia simples. E porque calhou, enquanto escrevia, ver na televisão o médico que me acompanhou enquanto estive grávida e que fez os dois partos, recordei esses dias tão importantes na minha vida. Foram dias tão iguais que recordar um é quase como recordar o outro, com a excepção de que, no segundo, tive junto a mim, mal saí da sala de partos, a minha filha ainda pequenina que nem três anos tinha, a ver o irmão e a dizer com ar desconsolado, 'o bebé é tão encarnado...'

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.

Em comentário ao meu post sobre onde estava eu no 25 de Abril de 74, o Leitor Fernando Ribeiro - dono e senhor de A Matéria do Tempo, um dos blogues que considero dos mais interessantes neste vasto mundo da blogosfera, um blogue onde sempre aprendo e onde a selecção dos temas revela um ecléctico e refinado bom gosto - recordou o seu 25 de Abril e os tempos que se sucederam. Comovi-me ao ler as suas palavras.

E porque penso que são poucos os testemunhos daqueles que passaram pela experiência da guerra colonial, permito-me puxar as suas palavras para primeiro plano (esperando que ele não me leve a mal). Junto-lhe ainda o comentário subsequente do Leitor Vítor Manuel.


  
Canção com lágrimas




No 25 de abril eu tinha metido férias da minha comissão militar em Angola, onde estava colocado na fronteira norte. Eu estava cá em Portugal (na Metrópole, como então se dizia), para rever a família, e regressei a Angola em 4 de maio.

Como alferes miliciano que era, eu comandava um pelotão. Metade dos meus soldados eram angolanos, todos negros menos um que era mestiço claríssimo. A partir do 25 de abril, os meus subordinados angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado pelo colonialismo.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados por serem negros, e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que a que tinham tido até então. Esperaram vir a ter, enfim, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Porém, quando no fim nos separámos, as nossas vidas — a minha por um lado e as deles por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto eu pude recomeçar a minha vida e acabar o meu curso de Engenharia num Portugal em paz, os meus antigos subordinados angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e eu tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos meus antigos subordinados angolanos eram oriundos do Huambo (antiga Nova Lisboa), do Kuito (antiga Silva Porto), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes meus antigos companheiros apanharam em cheio um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou então a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas e sabe-se lá o que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que, a seguir ao 25 de Abril, estes meus antigos camaradas de armas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De todos eles, só sei o destino de dois. O mestiço claro veio para Portugal em 1984, para junto da família paterna, e vive agora em Évora. Um outro antigo soldado meu, que era negro e por quem quase dei a minha vida num incidente que não importa aqui relatar, alistou-se nas FAPLA (o braço armado do MPLA) e acabou por morrer perto do Huambo em 1982. Ele era um herói.

Diz-se que um homem não chora, mas neste momento estou com os olhos cheios de lágrimas, de saudades imensas de todos eles.


Fernando Ribeiro
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Como me emocionou o comentário do Leitor Fernando Ribeiro!

Palavras sentidas, reveladoras de um Nobre Espírito e Carácter. Sei do que fala!

Sempre defendi aquela Boa Gente e foram angolanos, negros, alguns dos melhores Homens que comandei.

Para o Fernando Ribeiro, meu ex-Camarada, mais novo, a minha Continência e Forte Abraço com a enorme saudade daquela tão bela Angola.

Vitor
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A música lá em cima é "Canção com Lágrimas" de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. 


Transcrevo o texto que acompanha o vídeo: Esta primeira versão, cantada por Adriano, está magistralmente interpretada, tanto pelo cantor como pelo acompanhante, o Rui Pato, que concebeu um acompanhamento perfeitamente enquadrado nas características da peça. A gravação é dos finais de 1969, tendo sido editada em 1970. 

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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte, um post muito pessoal.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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