À sua volta tudo é de um branco leitoso, não se distingue o chão, nem as paredes, e estas parecem flutuar como espectros na estranha bruma que em breve as engolirá e apagará.
Nós não sabemos de verdade o que são os mundos nem do que depende a sua existência. Algures no universo está acaso inscrita a lei misteriosa que preside à sua génese, ao seu crescimento e ao seu fim. Mas sabemos isto: para que surja um mundo novo, é preciso que, primeiro, morra um mundo antigo. E sabemos também que o intervalo que os separa pode ser infinitamente curto, ou pelo contrário tão longo que os homens têm de aprender durante dezenas de anos a viver na desolação para descobrirem infalivelmente que não são capazes e que no fim de contas não viveram.
Talvez possamos até reconhecer os sinais quase imperceptíveis que anunciam que acaba de desaparecer um mundo, não o silvo dos obuses por sobre as planícies esventradas do Norte, mas o ruído do obturador, que mal perturba a luz vibrante do Verão, a mão esguia e estragada de uma jovem mulher que fecha tudo suavemente, no meio da noite, uma porta sobre o que não deveria ter sido a sua vida, ou a vela quadrangular de um navio que sulca as águas azuis do Mediterrâneo, ao largo de Hipona, trazendo de Roma a inconcebível notícia de que ainda existem homens, mas já não o seu mundo.
Na insignificância das suas pobres presenças humanas quando o chão lhes fugia debaixo dos pés não lhes deixando já outra opção além da de flutuarem como espectros num espaço abstracto e infinito, sem saídas e sem direcções, do qual nem sequer o amor que os ligava poderia salvá-los, visto que na ausência do mundo até o amor é impotente.
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O que se lê são excertos do belíssimo livro O sermão sobre a queda de Roma de Jérôme Ferrari da Divina Comédia Editores numa tradução de Pedro Tamen. Este livro ganhou o Prémio Goncourt 2012
A música lá em cima é de Gabriel Fauré - Sicilienne, para violoncelo e piano, Op. 78
Caso, depois disto, vos apeteça estragar tudo e ler sobre debilidades mentais, inconseguimentos fiscais em tempo de saídas apressadas, e sobre fácies que mostram bem a desgraça que lhes vai dentro, (des)aconselho o post seguinte.
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E, por agora, por aqui me fico. Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado.
Não podendo ser piscina, estando muito calor e muita gente na praia, então que seja jardim. Em casa é que custa estar. Não sou pessoa para passar os dias fechada em casa.
Receber amigos em casa, na cidade, nesta altura do ano, ainda é menos suportável. Os sofás são quentes, estar de janela fechada é claustrofóbico, abrir a janela um disparate tal a onda de ar quente que entra.
Então combinámos uma tarde no jardim. Se há coisa de que gosto é de jardins. São as flores, são as árvores, são os lagos, são os bancos, são os recantos de sombra, é quem está, é quem passa, é tudo.
Só mulheres, amigas, muita conversa para pôr em dia. Queriam combinar umas partidas de ténis mas eu, neste estado, já ando, já subo e desço escadas (mas ainda com cautela)... agora correr, saltar... é que ainda nem pensar. Por isso, duas delas lá foram para o court e eu e as outras ficámos a ver.
by Patrick Demarchelier
Elegantes, com firmeza de músculos, precisão nas batidas, foi um gosto vê-las. Para atenuar as saudades, limitei-me, com outras, mais sedentárias, a passear por ali (por onde não devíamos...), fotografando-as (contra a vontade explícita delas; mas com o seu beneplácito implícito porque, conheço-as bem, são umas marotas, umas coquettes vaidosas...!).
Escusaria de vos avisar que, com a temperatura tão elevada, tivemos que dispensar algumas peças de roupa. Mas, enfim, esse é um pormenor que agora não vem ao caso; contudo, como isso é visível nas fotografias, achei que aqui devia deixar a explicação.
Chamem-nos campónias, rústicas, o que quiserem mas vou confessar-vos: levámos farnel para o lanche. O difícil foi, depois, encontrar um recanto abrigado. Na maior risota, por ali andámos, pelo meio dos arbustos, tentando desencantar o lugar ideal.
Modelos Dior, fotógrafo não identificado
Que bem me soube andar à sombra fresca, entre arbustos floridos. As mais novas descalçaram-se, ninfas ingénuas de peles lisas, sorrisos saudáveis, cabelos brilhantes. As gargalhadas delas divertiam-nos. Nada como o ar do campo para soltarmos a nossa natureza. Ia dizer a nossa natureza selvagem mas não estaria a ser rigorosa. Ali, selvagem acho que apenas eu. As minhas amigas são por vezes algo desenfreadas, brincalhonas, mas, selvagens, não. Quase todas são, até, na verdade, bastante bem comportadas.
Finalmente, lá descobrimos a clareira ideal, chão de relva, árvores em volta. Uma levou uma grande toalha com motivos florais e, imagine-se a simpatia, uma almofada para a pós-operada (eu), e todas levámos pão, bolos, bolachas, panquecas, sumos, frutas e delicatessen. A minha amiga que é química e se dedica à culinária molecular levou um refresco de champanhe, espuma de queijo e, até, imaginem, shots de um líquido transparente e incolor, fresco, que exigiu que bebêssemos antes do resto: é que uns sabiam a gaspacho e outros a sopa de melão, deliciosos, o sabor era tal e qual, uma coisa extraordinária. Não é à toa que é consultora de grande parte dos chefs mais conhecidos da nossa praça.
Depois, prosseguimos na conversa, tudo na maior alegria. Anedotas de morrer a rir. Uma contou que o Cavaco anda a desafiar o Draghi mas, pasme-se, o faz no Facebook, outra contava que a Júlia Pinheiro, no programa da manhã, com o Cláudio Ramos, tinha estado na maior paródia a comentar fotografias do Passos Coelho, na Manta Rota, meio careca, a sair da água com a sua Laurinha, passando por entre veraneantes estendidos na areia. A falta de noção do que é a dignidade inerente aos postos que ocupam torna-se hilariante.
Mas o tempo tinha passado e as mais novas não sabem nem querem saber quem é esta gente da Praia da Coelha e da Manta Rota e, tendo mais que fazer, passado um bocado, dispersaram. E outras tinham que ir tratar do jantarinho e de pôr a mesa e alindar-se para o maridinho pelo que, no fim, ficámos apenas duas.
Resolvemos, então, partir à descoberta. Logo a seguir ao jardim há um parque que tem zonas de autêntico bosque.
Nunca para ali tínhamos ido e, digo-vos, foi uma descoberta encantadora. No meio da cidade um verdadeiro bosque.
by Steven Meisel
Claro que levava a minha máquina fotográfica e acabei por fazer uma sessão fotográfica com a minha amiga que, ali no meio do arvoredo, parecia uma bela rosa, coberta de mil macias pétalas. Tem jeito para modelo, ela, e eu, um dia que deixe de ser executiva, ainda me dedico à fotografia de moda ou de charme.
A seguir, quis ela fotografar-me. Não queria, não ia tão bem vestida como ela; aliás, nunca gosto de alinhar com a maioria e, por isso, não fui vestida segundo o dress code que tínhamos combinado. Além disso, as minhas pernas ainda me traem. Mas ela insistiu. Escolhi então um campo de flores como décor. Como estava vestida de preto (e, claro, com a minha capeline, que isto de não apanhar sol, leva-me a estes cuidados), quis que as flores compensassem a noiresse da toilette.
by Greg Kadel
Estou a ver a fotografia e não gosto extraordinariamente. Paciência. Parece que fiquei com as pernas tortas e, podem ainda não estar muito firmes, mas, credo, não estão tão tortas assim. Isto é ilusão de óptica ou falta de habilidade da fotógrafa... (desculpa a maldade, Z.).
Depois entretivémo-nos a fazer uns belos colares de flores enquanto fazíamos confidências uma à outra, conversa de mulheres, daquela que flui sem propósito ou fio condutor.
Mas, logo a seguir, foi a vez dela ter que se ir embora, não queria chegar a casa depois do marido. Tudo gente ajuizada, comme il fault.
Eu, encantada que estava com a natureza, fiz outra coisa. Liguei ao meu amor, Olha, estou a adorar isto, quero fazer aqui mais umas fotografias. Mas tu vem cá ter. Vais gostar. E, se quiseres, a seguir, podes fotografar-me, isto é calmíssimo e eu estou com aquele corpete de que gostas tanto.
Alinhou, que ainda demorava um bom bocado mas que sim, que iria. E então, enquanto ele não chegava, andei por ali, no meio daquela natureza quase encantada. Poderia aparecer uma fada, podiam aparecer duendes, que eu não me admiraria nada, aquele parecia o espaço natural para criaturas fantásticas. Silêncio, apenas se ouviam os pássaros pensando que estavam sozinhos, uma frescura muito agradável, uma sombra quase mágica. E eu, por ali, como uma gata sorrateira, olhando, fotografando.
Até que, para meu susto, me pareceu ouvir passos. Uma coisa quase inaudível, como se fossem uns passos longínquos, passos sobre um chão macio de folhas. Assustei-me. Tinha estado a pensar em fadas mas a perspectiva de me aparecer ali algum tarado assustava-me, estava sozinha, longe de tudo, o sol já se tinha posto.
Parei. O som desapareceu. Depois recomecei e, de novo, me pareceu ouvir alguém a andar, a andar ao de leve. Entretanto, já tinha parado de fotografar.
Depois pareceu-me ouvir o som de uma respiração. Olhei à volta. Nada. Mas era o som de uma respiração. A minha suspendeu-se. Medo. O medo do desconhecido, um medo animal, primordial, profundo.
Podia ter fugido, podia ter gritado, podia ter telefonado. Mas não fiz nada. Estava completamente tolhida. É este medo imobilizante que torna as vítimas indefesas.
Quando, finalmente, consegui recuperar o controlo sobre o ar que respirava, pensei o que sempre penso quando receio estar em apuros: o que é o pior que me pode acontecer? Mas a resposta a esta pergunta não me encorajou. Ainda por cima, com o meu fraquíssimo sentido de orientação, comecei a pensar que, se calhar, estava perdida.
Sentei-me e, quase simulando uma coragem que estava longe de sentir, pensei Quem por aí anda, que se aproxime que já se vê o que quer. Mas nada. Ninguém se aproximou. Nem passos, nem respiração. Eu em silêncio, rodeada de silêncio.
E então, passado um bocado, enervada com a espera, enchi-me de coragem e, irreflectidamente, fui ao encontro do que quer que fosse, bicho, homem, lobo mau, lobisomem. Dirigi-me, silenciosa, quase felina, para o local de onde tinha vindo o som dos passos e da respiração. Pé ante pé, sustendo a respiração, quase suspensa para ver se me tornava invisível, fui-me aproximando. O meu coração batia descompassado.
E, então, o inesperado aconteceu.
by Dinah Hayt
Sobre uma rocha, como se me esperasse, um inusitado ser. Um corpo fantástico, um corpo elástico, jovem, ágil. Um belo minotauro. Quando me viu, em vez de parecer querer atacar-me, percebi-lhe uma atitude defensiva. Um bichinho assustado. Não um lobisomem mas um duende, um duende viril mas um duende. Ou um fauno. Senti que, por dentro da máscara, me espiava e o seu peito arfava. As mãos era finas e longas, adivinhavam-se macias. O peito liso, o ventre musculado, as pernas fortes, esguias. A cada momento parecia que podia fugir. Eu tinha-o descoberto nesta sua ousada incursão pelo bosque.
Senti curiosidade, pena, o meu lado de boa samaritana manifestou-se. Claro que não havia razão para estar tão assustado. Que mal lhe poderia eu fazer? Que mal poderia eu fazer a um fauno tão querido, tão bonitinho? Que mal...? Que mal...?
Então, tive uma ideia. Não me perguntem porquê nem me questionem acerca do que quer que seja. Sou assim, apenas isso. Faço coisas inesperadas, injustificadas. Felizmente, logo a seguir esqueço-me. Não tenho problemas de consciência porque não volto a pensar no assunto. Aliás, disse que tive uma ideia mas não é bem isso porque ter uma ideia pressupõe pensar no assunto e eu nem pensei, comecei logo a fazer, sem pensar.
Enquanto o belo minotauro me olhava, expectante, eu, sem tirar os meus olhos dele, ia despindo a roupa, peça a peça, devagar, muito devagar. Apenas deixei os sapatos porque acho que uns sapatos bem altos, sejam quais forem as circunstâncias, servem para mostrar a elegância natural da mulher.
Acho que, se calhar, queria que ele percebesse que nada havia a temer da minha parte. Mas não sei se foi por isso ou porque, simplesmente, me apeteceu estabelecer alguma forma de empatia com aquele ser meio despido que o acaso me tinha posto à frente.
Depois, toda nua, cobri-me com os colares de flores que, momentos antes tinha feito, e coloquei flores nos sapatos, devagar, tudo muito devagar e, também devagar, baixei-me, baixei-me como ele - bem na sua frente, dois animais do bosque, olhando-se, cheirando-se. As flores acariciavam a minha pele, macia a minha pele, macias as flores. E ele espiando-me, atento.
by Patrick Demarchelier
Pela respiração que via no seu peito nu, percebi que o medo dele ia desaparecendo. Mantive-me assim a olhar, tranquila, até que ele, já tranquilo também, se aproximou, se aproximou muito e eu, intranquila, deixei que ele se aproximasse.
Algum tempo depois, já a noite quase caía, pedi-lhe que me indicasse o caminho de saída pois, como acima referi, tinha um encontro marcado e já estava atrasada.
pintura de Fabian Perez
Quando cheguei e contei ao meu amor o que se tinha passado ele não acreditou, diz que são coisas que me passam pela cabeça, que ninguém de bom senso acredita que andem faunos pelos bosque.
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[Penso que era escusado mas, de qualquer forma, aqui fica o esclarecimento: a expressão andam faunos pelos bosques é o título de um livro de Aquilino Ribeiro]
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Saíu outra vez extensíssimo este texto. Por isso, quase tenho vergonha de ainda vos convidar a continuar comigo. Mas, enfim, também não sou especialmente envergonhada, não é? Portanto, aqui fica o convite. Hoje no meu Ginjal e Lisboa a poesia é de João Paulo Cotrim e, em volta das palavras dele, andam as minhas palavras. O som que, aí, vos poderá acompanhar é a música do compositor espanhol, Joaquin Rodrigo.
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E, por hoje, nada mais.
Excepto que, muito sinceramente, vos desejo, meus Caros Leitores, muita saúde e muita alegria e, claro, uma boa sexta feira.
E que, a alguns, saia o Euromilhões - mas não a todos para ver se ainda fica uma verba razoável para mim, está bem?