terça-feira, maio 31, 2022

Havia dois caminhos e eu escolhi o outro

 


Um título chamou-me a atenção. Fui ler e afinal não era bem o que estava à espera. The big idea: could the greatest works of literature be undiscovered? Only a fraction of the world’s stories have survived. What might we be missing?

Preferia que fosse sobre obras não entregues nas editoras ou obras entregues e rejeitadas. Ou obras perdidas. Obras esquecidas. Obras mal amadas por quem as gerou. Mas não noutros tempos. Agora, ainda. Todos os dias, algures, alguém a acabar uma obra, a sua obra, e depois, pelas voltas e desvoltas da vida, ninguém vir a saber de nada. E, no meio de tantas obras abandonadas pelos tempos, estarem obras primas. Para sempre esquecidas.

Ou músicas. Ou pinturas. Ou fotografias. 

Por vezes acontecem milagres e muito tempo depois, por um acaso que apenas um qualquer deus pode ter inspirado, essas obras perdidas aparecem, ressuscitam. Aconteceu isso com as fotografias de Vivian Maier. Mas é muito raro.

A vida é uma combinação infinita de acasos. O milagre é o que acontece e tudo o que acontece é um milagre. Tudo o resto fica por acontecer.

Bastava, por vezes, um gesto de apoio, bastava um passo dado numa outra direcção, bastava a pequena coisa que não aconteceu naquele momento.

É como os amores. O que aconteceria se, num certo dia, num certo instante, coexistissem no mesmo espaço aqueles que, se isso tivesse acontecido, teriam sido amantes para o resto da vida?

Jamais o saberemos. 

O que sabemos é que a cada fracção de segundo acontecem acasos, acasos, acasos.

Uma vez, há muitos anos, o responsável de uma área da empresa em que eu trabalhava, ia reformar-se. Nos meses anteriores eu tinha trabalhado com um outro que me tinha parecido muito responsável, muito conhecedor. Propus o seu nome e, embora na altura, a decisão não fosse minha, a minha opinião foi tida em atenção. Ocupou, efectivamente, o lugar deixado vago pela reforma do outro senhor, progrediu profissionalmente e foi bastante bem sucedido. Poucos anos depois, soube da vaga de um director daquelas áreas mas numa outra empresa do grupo. Perguntaram-me se recomendava alguém. Voltei a pensar nele. Seria um salto na sua carreira. Falei nisso. O administrador da altura achou bem. Privilegiava-se a rotação entre cargos. Seria dar uma oportunidade a alguém muito responsável. Além disso, ele tinha recebido um curriculum vitae de um jovem que poderia ocupar a vaga e vir a ser uma lufada de ar fresco. Com a luz verde do administrador, falei na oportunidade de um lugar de director àquele tal. Hesitou. Não era ambicioso, preferia viver na sua zona de conforto. Insisti. Não desperdiçasse a oportunidade: a água não passa duas vezes de baixo da mesma ponte, dizia-lhe eu. Ele reticente. Aliciaram-no, incrementaram as condições. Acabou por aceitar. Agradeceu-me muito por mais uma vez me ter lembrado dele. Para o ex-lugar dele foi o tal rapaz novo, vindo de fora, de uma outra realidade, desconhecido de todos. Este rapaz, agora homem feito, por mais uma sucessão de acasos, é agora o pai de alguns dos meus netos. 

Acasos, acasos, acasos. 

Ou as casas em que tenho vivido -- outros acasos. Nunca quis casas feitas de novo. Sempre preferimos casas existentes. Mas, com as nossas exigências, nunca descobríamos o que nos agradasse. Quando andávamos à procura de uma casa no campo, vimos dezenas, ao longo de anos. Ao fim de semana íamos à procura de casas ou quintinhas. Tenho ideia que ainda não havia as remax, era, century 21 e etc. O que estava à venda tinha uma tabuleta e a gente ia a passar, via o número de telefone e ligava. Até que num fim de semana de chuva, não fomos, estava mau tempo para andarmos à procura. Então, estava em casa a ver o Expresso e, às tantas, vi um anúncio. Não era nada do que pretendíamos nem era minimamente nos lugares onde até então tínhamos andado a ver. Zero. Mas bateu-me uma daquelas intuições que me chegam com carácter de urgência. Telefonei. Perguntei se podíamos ir ver nesse dia. Fomos. E imediatamente nos apaixonámos. Todos. Os miúdos numa alegria. Os papéis da casa e do terreno não estavam em ordem, uma confusão, nem certidões nem registos, a maior barafunda. Quase queriam convencer-nos a desistir. Mas não desistimos. É o nosso querido heaven. Se não tivesse estado mau tempo e eu não me tivesse posto a ver os anúncios, provavelmente a história tivesse sido outra.

E poderia continuar. E se dei exemplos meus foi apenas por facilidade. Qualquer pessoa terá os seus infinitos acasos. Mil caminhos, infinitos caminhos. E nós vamos por um. O que teria sido a nossa vida se tivéssemos escolhido qualquer outro nunca o saberemos. 

Devemos sentir-nos agradecidos pelo que temos. Mas devemos estar atentos, disponíveis. Nunca há apenas um caminho. 

[O que não sei é se somos nós que escolhemos o caminho ou se, de certa maneira, é o caminho que nos escolhe a nós -- mas isso já seriam outros quinhentos (como agora soe dizer-se).]


The Road Not Taken, by Robert Frost 



Fotografias de Vivian Maier na companhia de Nina Simone com Mr. Bojangles
______________________________________________________________________

Desejo-vos um dia bom
Acasos felizes. Paz.

segunda-feira, maio 30, 2022

Apanhá-los quase à mão

 

O domingo foi de descanso. Dormi até vir a mulher da fava-rica. Depois foram as coisas das quais não reza a história: lavar e estender roupa, descobrir uma coisa aqui e outra ali (coisa que, qual pós vendaval, sempre acontece quando a malta miúda por aqui passa -- e, desta vez, até a televisão da sala de cima mudou de sítio), fazer uma caminhada, falar com a minha mãe, fotografar as flores do jardim, ver qual a melhor maneira de pôr as grinaldas solares. Coisas assim.

O almoço foi o resto da caldeirada, agora ainda mais saborosa e apurada que na véspera. Depois, viemos para a sala. Ele ligou a televisão e eu a Netflix para ver a nova temporada da Grace & Frankie. Mas, ao fim de algum tempo, comecei a baquear. Como tudo, quando há um interregno, o que vem a seguir sabe a déjà-vu com a agravante de aqui não se aplicar aquilo de estar melhor porque 'mais apurado'. Talvez por isso, a tarefa de me manter acordada revelou-se de difícil consecução. Tentei resistir mas não fui bem sucedida. Acordei com a fera felpuda que ladrava. Acordei eu e acordou o meu marido. Moles que só visto. Não faço ideia de quanto tempo durou a sesta mas a verdade é que acordámos meio zombies. Fomos fazer outras coisas mas o tempo cinzento e abafado não ajudou. Fomos lá para fora e sentámo-nos nos dois cadeirões de onde se vê todo o jardim e que ficam num recanto bem acolhedor. Mas continuávamos moles. Presumo que tenha dormido meia hora ou mais para estar assim.

Resolvemos, então, ir andar para a praia. Levei um corta-vento pois o tempo estava incerto. 

Antes de chegarmos, o urso peludo começa sempre a dar sinais de impaciência. Com a nossa boxer acontecia o mesmo. Pressentem que estamos a chegar a lugar de seu agrado e, tal como as crianças que perguntam de minuto a minuto se estamos quase a chegar, assim os canitos. Cheira-lhes a praia e não vêem a hora de chegar.

Gosto do mar em dias assim. Estupidamente esqueci-me da máquina fotográfica. Estas fotografias foram feitas com o telemóvel.

Gaivotas a refrescarem-se à beira de água. Fomos até mesmo ao pé delas. A fera impassível. Olha, certamente tentando perceber que animal é aquele que anda com as patas na água e que, de vez em quando, levanta voo. Olha mas nada do que vê o tira do sério. Quem o viu feito parvo com uma menina no nosso jardim e quem o vê agora indiferente a tudo, apenas entregue à curtição do momento... Nem parece o mesmo.

Entretanto, vi uns pescadores num pontão e, ao fotografá-los, reparei num rapaz alto que, com a cana da pesca na mão, entrava na água. Calçado e tudo. Ficou com a água pela cintura.

Ao andarmos no areal vimos uns quantos robalos aos saltos. O meu marido disse: 'se calhar são peixes que aquele ali apanhou'. Pensei que seria pouco provável pois tinha-o visto entrar e sair da água mas há pouco tempo, enquanto fotografava.

No entanto, ao estarmos intrigados com aquilo, vimos que o rapaz estava, uma vez mais, a sair da água. E reparei que vinha mais um peixe a saltar na ponta da corda.

De facto, dirigiu-se ao lugar onde os outros robalos saltavam e deixou ficar mais um. 

E voltou a entrar na água. E nós continuámos. Mas intrigados com aquilo. Até sugeri que o meu marido passasse a dedicar-se à pesca. Ia um bocadinho até à praia e regressava carregado de robalos. O meu marido disse: 'Há anos que andas a querer isso.' Protestei. Não me lembro de alguma vez ter sugerido isso. Ele diz que sim. Depois condescendeu: 'Talvez nos últimos anos não tenhas dito. Mas já disseste.'. Nestas situações, não vale a pena a gente fazer braço de ferro. Observei apenas: 'Não sei. Mas tenho quase a  certeza que nos últimos cem anos não disse'. E ele também já não disse nada.

Mas eu estava deveras intrigada pois não vi o rapaz a pôr isco no anzol. Aliás, nem devia ir a pensar apanhar aquilo tudo pois, pelos vistos, nem tinha onde pôr o peixe.

Continuámos o nosso passeio. Na volta, voltámos a vê-lo. Vinha a sair da praia. Vinha uma rapariga com ele, com um saco de plástico na mão. Talvez levasse lá os peixes. O rapaz trazia um robalo grande na mão, bicho para uns dois ou três quilos. Parecia um daqueles caçadores que andam com os coelhos ou os patos à ilharga. Um casal que ia a passar abeirou-se e pareceu-me que logo ali estavam a mercadejar. 

Pensámos que também poderíamos ir transaccionar um daqueles peixes para levar para a janta. Mais fresco não poderia haver. Eu disse, quase me lambendo por antecipação: 'Grelhadinho...' Mas o meu marido disse: 'Sim, deveria ser bom. O problema é o trabalho que ia dar'. Concordei: 'Ia, não ia...?'. E seguimos viagem. A brisa fresca do mar tinha-nos feito bem, estávamos mais frescos mas não a ponto de nos irmos pôr a atear fogareiros.

E foi isto. Um dia tranquilo, portanto.

_______________________________________

E, façam-me o favor, queiram descer até ao post abaixo. 

____________________________________________

Desejo-vos uma boa semana, a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Confiança. Força. Melhores dias. Paz.

Beleza, contemplação, encantamento

 

Sei que há por aí muito boa gente que não está nem aí para a dança -- nem para dançar nem para ver dançar. O meu marido, por exemplo, pertence a esse grupo. Pé de chumbo absoluto; e sensibilidade artística para apreciar um bailado: bola. Por isso, sei que ao fazer um post com um vídeo de quase quarenta e cinco minutos de bailado e, ainda por cima, com um outro de making of, é correr o risco de que muitos que por aqui aterrem zarpem a toda a brida.

Mas corro o risco. Este vídeo é tão bonito, a música é tão bonita, há tanta delicadeza, tanta beleza que penso que vale a pena arriscar. Para um dia em que precisem de meditar, de lavar a alma, de descansar a mente, aqui fica. Nada de preconceitos.

Dior celebra o Dia Internacional da Dança com “Nuit Romaine”

To celebrate International Dance Day, “Nuit Romaine,” directed by Angelin Preljocaj and set in the Palazzo Farnese in Rome, follows the story of the goddess of the night, Nox, who comes to the Palazzo Farnese, bringing darkness and mystery into this place of power. Mesmerizing costumes by Maria Grazia Chiuri extend the movements of the dancers, with the site’s sculptures seemingly coming to life to interpret stories of love and passion.

E agora:

The Making of "Nuit Romaine"


....

domingo, maio 29, 2022

Dia de caldeirada

 

Por volta das dez da manhã já estavam a chegar mensagens com enormes cabeças de peixe. Depois via-se um grande atum. Pelo menos foi o que ela escreveu na mensagem.

Depois a minha mãe e eles junto a uma bancada cheia de peixe. 

[O mais pequeno, depois, ao enunciar os peixes que tinham trazido, referiu 'serafim'. Espanto de quem ouviu. 'Serafim?!'. A mãe corrigiu: 'Deve estar a falar do safio'.]

Foi a minha menininha, também dada às reportagens fotográficas, que deu testemunho da incursão familiar no mercado. Tinham ido buscar a bisa e tinham ido juntos comprar o peixe. 

Na bancada da minha cozinha já estava o tacho grande à espera, aquele de que já nem me lembrava bem. Estava na prateleira de cima da despensa, onde a minha vista nem alcança. O meu marido já o tinha tirado lá das alturas e já o tinha lavado.

Pus-me a descascar batatas, três quilos. Depois, antes que chegassem, lavei os morangos e os alperces. A seguir, coloquei na cuba do lava-louça cebolas, umas seis ou sete cebolas novas, tomates, talvez uns dois quilos de tomate alongado bem maduro, e salsa ao dispor.

Passado um bocado, chegaram. Traziam cinco quilos de peixe fresquinho para uma bela caldeirada que iria ser feita sob orientação da minha mãe.

Várias mãos de juntaram para a faena. No fundo do tacho, azeite, duas cebolas às rodelas, três dentes de alho, vários tomates, um bocado de pimento, batatas às rodelas, salsa, louro, depois o peixe mais rijo. Um pouco de sal. Depois nova camada de cebola, nova camada de tomate, nova camada de rodelas de batatas. Por cima o peixe mais frágil (cabeças de charroco, por exemplo, e, claro, o que prefiro: os fígados). A encabeçar, a última camada de batatas, cebolas, tomate e salsa. Para rematar, sal, um pouco de vinho branco e azeite.

Lume forte até ferver. Como o tacho é muito grande, foi um castigo até que o calor chegasse cá acima. Quando chegou, baixou-se o lume e com o tacho bem tapado, deixou-se que os odores se misturassem e o caldo começasse a aparecer. Quando as batatas ficaram macias, desligou-se o lume e colocou-se coentros por cima, para perfumar.

Boa, boa. 

Para sobremesa tinha morangos e alperces mas vieram também cerejas, melancia e a minha mãe trouxe o seu infalível bolo de cenoura coberto de chocolate.

A seguir ao almoço, depois de descansarmos e conversarmos um pouco, o meu filho resolveu ir com o filho do meio e com os sobrinhos para um parque perto, para irem jogar futebol. Lá foram. Quando chegaram vinham corados e transpirados. Tinham feito uma futebolada com jogadores desconhecidos que por lá encontraram.

A fera felpuda fica sempre feliz da vida com toda a família ruidosa em volta, toda a gente a fazer-lhe festas e ele a retribuir e, pelo meio a roubar um chinelo, uma meia, o que apanha. E apanhou uma flauta e apanhou um daqueles apitos das festas que estica quando se sopra. E etc.

E vai ter com cada um e vai ter com outro, sempre na boa e ciranda, entre carinhos, sempre vendo que malandrice pode fazer. Mas sempre tudo numa tranquila.

Entretanto, a menininha mais linda convidou a sua amiga que ia dormir a sua casa para vir cá ter. E, assim, para além dos cinco pimentinhas, tivemos cá mais essa menina.

E aqui é que a porca torceu o rabo. Ao ver aparecer um ser desconhecido no seu território, desatou a ladrar enfurecido e a querer investir. 

Por precaução, o meu marido tinha-lhe posto a trela. Por mais que lhe disséssemos que estava tudo bem e que a menina era amiga, a fera estava furibunda. Por via das dúvidas, o meu marido resolveu retirá-lo de circulação e ele, transtornado, ainda tentou ferrar a mão do meu marido. Ficou de castigo, claro, fechado, a chorar. Mas de cada vez que via a menina ficava desorientado. Por fim acalmou mas, para evitar chatices, mantivemo-lo sempre pela trela e longe da menina.

Sei que há por aí quem perceba de cães e se souberem o que se deve fazer nestas circunstâncias, muito agradecerei. Nós, que tivemos a nossa doce boxer durante tanto tempo e nunca lhe vimos reacções destas, ficamos desconcertados e apreensivos com estas reacções exacerbadas.

Este é cão de guarda, disso não há dúvida, e é bom que assim seja. Se sente movimento junto à vedação ou ao portão, ou se alguém cá entra, ladra freneticamente, quer atirar-se e, portanto, por segurança, mantemo-lo afastado das pessoas que cá vêm. Mas deve haver maneira de o fazer perceber que algumas pessoas, que ele não conhece, são de confiança e que pode ficar tranquilo.

No parque, na rua, na praia, é cordato, as pessoas podem aproximar-se, não faz nada, toda a gente o acha uma simpatia, um fofo. Mas se alguém que ele não conheça entra aqui em casa, o animal vira uma verdadeira fera. E, como fica tão transtornado, até reage abrutalhadamente com quem tenta refreá-lo, nomeadamente comigo ou com o meu marido. 

Custa-me pensar que, quando temos cá pessoas que ele ainda não conhece, teremos que o deixar preso; mas receio que seja isso que tem que acontecer.

Mal o meu filho se foi embora, levando a menina, o urso felpudo ficou calmo, tranquilo. Contudo, como o meu marido lhe tinha dado um pontapé quando ele se quis virar a ele e como ficou de castigo e toda a gente se zangou com ele, estava sentido, ar infeliz, muito quieto. Dá-me pena. Nitidamente o seu instinto é de guardar a casa de intrusos. E fica infeliz quando não o deixamos agir e, ainda por cima, o punimos.


Não falei do lanche. Salsichas, linguiça, alheira, queijo, tostas, pão quentinho, sumos, fruta, iogurtes. Os jovens comeram como se não comessem há uma semana. Fizeram as sandes ou prepararam as tostas à sua vontade. Quando comprei as embalagens de salsichas pensei, cá para mim, que era um exagero. Mas receio sempre que fiquem a olhar para o prato vazio, com vontade de mais. O meu marido, quando cheguei a casa e viu aquilo tudo, disse que eu não tinha noção, que compro sempre o dobro do que é preciso. 

Sim, sim... Voaram.

A minha mãe, quando ontem estava a combinar sobre o bolo, disse que trazia o de cenoura pois eles gostam sempre e é um bolo grande. Pois bem. Não sobrou nem migalha.

Estivemos na parte do jardim que arranjámos para ligar ao pátio pois o pátio era escasso para tanta gente e, às tantas, estavam uns no pário e outros na relva e tudo bem quando era para conversar mas não era muito prático quando estava uma mesa no terraço e outra mesa na relva num piso ligeiramente mais baixo. Agora há uma continuidade, fica melhor. 

E não esteve um daqueles calorões que esteve durante a semana mas também não esteve frio. Foi bom, é sempre bom quando estamos juntos. E as buganvílias estão todas floridas, as rosinhas caem em cachos e eu acho que é uma sorte e uma felicidade podermos estar juntos e de boa saúde -- e em paz. 

------------------------------------------------------

Desejo-vos um belo dia de domingo

Saúde. Boa disposição. Paz.

sábado, maio 28, 2022

As mãos, a lã, a tradição, a paz nas montanhas

 


Não sei se posso dizer que sou artesã. Gostava de poder dizer. Contudo, agora de artesanato apenas faço o blog. Mas, durante muito tempo, fiz tapetes de arraiolos. Já tinha feito tricot e quando mudei de casa reencontrei várias camisolas feitas por mim, geralmente com um design improvisado enquanto ia fazendo. Apenas para os meus filhos e marido fazia peças normais. Para mim era sempre um design fora da caixa. Também houve uma altura em que fazia crochet e até uma colcha eu fiz. E bordei e tenho vários 'quadrinhos' abstractos feitos em bordado. Mas aquilo de que mais gostei de fazer foi, sem dúvida, os tapetes de arraiolos.

Para já, gosto de tapetes. Não apenas gosto de fazê-los como de os ver e sentir na casa. Digo 'sentir' porque frequentemente ando descalça. Acho que uma casa, para ficar confortável, tem que ter tapetes. E gosto de tapetes de lã. Um dos mais bonitos, comprei-o em Londres e é um tapete afegão. É um tapete frágil, lindo, em lã que parece prensada e, depois, sobre a base da lã prensada, é bordado. É uma pequena carpete, talvez de 1,2 por 2m. Está in heaven e por isso agora não posso medi-lo. Com medo que se desfizesse, pedi à minha mãe que o forrasse. A parte que agora contacta com o chão é de algodão espesso e pespontou o tapete ao forro. Tenho também um outro tapete afegão mas mais simples, menos frágil. Tem um bordado em quadrícula, em cada quadradinho um desenho quase infantil. São peças especiais. 

Às vezes penso que, um dia que tenha tempo, poderia fazer tapetes e quadrinhos bordados para vender. Mas, deformação profissional oblige, mentalmente faço um business plan e concluo que não dá. Fazer um tapete leva tempo. E as lãs são caras. Teria que vender o meu trabalho a valor abaixo do de terceiro mundo para que alguém os quisesse comprar. E estar a trabalhar para aquecer não me parece que faça qualquer sentido. 

No entanto, vejo imagens como as do vídeo abaixo e fico encantada, as mãos a fervilhar de vontade de fazer coisas assim.

Trata-se de uma família ucraniana que, numa aldeia remota, continua o seu ofício de trabalhar a lã, de fazer tapetes e outras peças. E todos colaboram, a mulher, o homem, a filha. A filha, jovem adolescente, trabalha ao lado da mãe e é geralmente ela que aparece nas fotografias a usar os casacos. 

A lã, depois de tosquiada, tem que ser desfiada, fiada, tingida (quando é o caso), lavada, penteada, tecida, lavada de novo, escovada. Muito trabalho até que fique pronta e apta a durar anos. Uma maravilha. 

Estive a ver as peças que estão à venda e fico tentada. O conforto que um tapete ou um cobertor ou um poncho assim transmitem é palpável apesar da distância e apesar de não poder fazer o que apetece: passar a mão para lhes sentir a macieza.

As sapatinhas, por exemplo, devem ser tão boas de sentir, devem ser tão confortáveis... O pior nelas é que uma pessoa, com umas sapatinhas destas calçadas, nem deve ter vontade de sair de casa.

Mas o melhor é vermos o vídeo.


Ukrainian Mountain Weavers Refuse To Surrender Their Traditions In War Or Peace | Still Standing

Ukrainian’s Hutsul ethnic minority is keeping a century-old weaving tradition alive by using the same tools and techniques that their people have for generations. In war and in peace, they’re determined to keep their craft alive, and they sell their blankets on Etsy (www.etsy.com/ie/shop/WovenWoolArt). We visited their village in Western Ukraine to see how their tradition is still standing.


-------------------------------------------------------------------------------------------

Viver poderia ser sempre uma coisa simples, boa.

sexta-feira, maio 27, 2022

Uma casa no campo, uma casa na cidade

 



Se seguirmos um blog com regularidade, acabaremos por reconhecer um padrão. Há quem fale com arrogância moral, colocando-se num plano de superioridade a partir do qual tudo o que alcançam são seres menores a cometerem actos vulgares, mesquinhos. Há quem use palavras raras para contar histórias de mulheres carentes ou ardentes que acabam por ceder aos desejos caprichosos do autor. Há quem se martirize com os próprios defeitos queixando-se das suas tendências auto-destrutivas. Há quem romantize a vida, os sonhos, a luz, e, em palavras ou em riscos, consiga traduzir sentimentos com uma precisão e contenção ímpares. 

Não sei como me vê quem por aqui me acompanha mas sei que há um padrão: o sono, a escrita sob o efeito do sono. 

Um dia vou aprender a escrever durante o dia, quando estou bem acordada. Agora não consigo pois só tenho tempo à noite. Mas, mesmo quando tenho tempo durante o dia, parece que todas as outras tarefas são prioritárias em relação a esta. Sinto que tenho que varrer, fazer o almoço, arrumar papéis, fazer pagamentos, ir às compras. E, mesmo nesses dias, só à noite, quando nada mais há para fazer e quando estou demasiado cansada para fazer qualquer outra coisa, é que me ponho aqui a escrever. E, no entanto, mesmo quando me custa manter os olhos acordados e pouco ou nada tenho para dizer, aqui estou.

Os dias têm andado madrugadores. Parece que os astros se andam a desalinhar pois para juntar o punhado de gente que deve tratar de alguns assuntos parece que as únicas horas possíveis são à hora em que as galinhas abrem os olhos. O défice de sono vai-se acumulando e eu anseio por pôr o descanso em dia. 

Hoje a meio do dia, lavei umas almofadas e coloquei os 'recheios' dentro da forra de outras que tinha lavado. Também reguei uns vasos. E lavei à mão uma blusinha sensível que não quero lavar na máquina. Com o sol e calor que estava secou num instante.

Ao fim da tarde, quase a noitar, antes de fecharmos as janelas, fui apanhar nêsperas com o pau que tem um gancho na ponta. Comi algumas ao jantar. Boas.

Com esse gancho a ver se esta sexta-feira arranjo tempo para puxar umas guias de glicínia que estão a invadir o quintal da vizinha. 

Sinto muita vontade de ter tempo para fazer coisas assim sem ser a correr.

Também tenho vontade de ir comprar uma grinalda de luzinhas solares para colocar aqui no jardim, no pátio onde costumamos juntar-nos. Mas gostava de ir com tempo para poder ver o que há e escolher com calma. E também gostava de ter tempo para poder dar bondex no banco de madeira que pusemos no jardim, à frente. 

Mas, em vez disso, uso o meu tempo a ver ebitdas, a pedir explicações sobre margens e afins. E o pior é quando aqueles a quem peço explicações, em vez de irem direito ao assunto e despacharem a resposta em três tempos, resolvem justificar tudo muito justificado, uma minúcia que quase me faz ficar com falta de ar, uma argumentação que quase me dá vontade de inventar uma desculpa e pirar-me a sete pés.

Enfim. Cada um é para o que nasce e, para além disso, todos temos uma cruz para carregar.

Portanto, com tudo isto, quando aqui me vejo, quero saber se alguém já internou o Putin (tenho ouvido dizer por aí que é assim que o seu destino se vai cumprir) ou se já acabou o julgamento que opõe Johnny Depp à Amber Heard (coisa com mais destaque do que pandemia, guerra ou degelo) ou, ainda, para ver em que param as modas, nomeadamente o que andam a vestir as socialites que embelezaram a passadeira vermelha de Cannes. Neste particular vi que o que está a dar é a transparência, tudo a ver-se por debaixo. Só ainda não percebi se se aplica a toda a gente, de qualquer idade e qualquer elegância, ou se apenas se aplica a jovens esculturais. Mas essa dúvida fica em stand by. Não estou com cabeça para temas metafísicos.

Vou escolher algumas das fotografias que fiz no outro dia in heaven para polvilhar este texto. Faz de conta que estou a polvilhar o meu kefir matinal com canela. 

Reparem nestes little figuinhos. Agora estão assim, inocentes, infantes. Não tarda estarão tentadores, doces, carnudos. E sobre estes milagres é que os intelectuais deveriam escrever  tratados. Transcendência maior não pode haver. Digo eu.

Bem. Hoje não dá para mais que isto. Só se for decorações. Gosto muito de ver casas. Partilho convosco o vídeo com a simpática Alexandra Tolstoy (de quem já aqui falei, ex de um oligarca próximo de Putin) na sua casa de campo que é toda muito cottage, muito british mas que depois tem um recanto muito seu, muito russo.

Love your home x Alexandra Tolstoy

E agora em Chelsea, uma casinha à maneira. Muito agradável.

The Home of Alexandra Tolstoy Created With Colefax & Fowler Design Firm | Christie's

‘This house is a family home,’ says Alexandra Tolstoy of the beautiful six-bedroom Chelsea residence she converted from two adjacent artists’ studios. ‘I wanted it to be really comfortable — not to be stilted and too formal.
‘Everything we’ve got I feel is in its own right very unusual and special.’

---------------------------------------------------------------------------------

E tenham um dia bom

quinta-feira, maio 26, 2022

A contida emoção de dois gigantes

 

Já antes aqui os referi e hoje, de novo, vou falar deles. 

Muitos serão os heróis e heroínas que se têm revelado nesta guerra sangrenta. Uns porque largaram tudo e foram lutar para a linha da frente, outros porque tudo arriscam para andar a ajudar os soldados, os feridos, os escondidos, outros porque conseguem sobreviver durante meses em subterrâneos, sem luz, sem água, sem gás, outros porque conseguiram a coragem para pegar nos filhos e, deixando tudo para trás, partir para onde não conhecem nada, nem os lugares, nem as pessoas, nem a língua, outros porque conseguem fazer uma vida aparentemente normal enquanto as bombas caem sobre as casas e os mísseis cruzam os céus. São muitos. Milhões.

Muitos filmes, muitas séries, muitos livros se produzirão sobre o que está a passar-se e será difícil escolher alguém, uma só pessoa, que se destaque mais do que os outros. 

Ao escrever isto lembro-me dos primeiros que chamaram a atenção pela inacreditável bravura, mas esta não será certamente superior à avalancha de coragem a que se tem vindo a assistir desde então. Mas porque foram os primeiros, ficaram gravados de forma mais indelével. 

A mulher de idade que disse ao soldado russo que guardasse sementes de girassol nos bolsos para que floresçam quando o seu corpo estiver enterrado. Os soldados da Ilha da Serpente que responderam à ordem de rendição russa com um 'Vão-se f..., soldados russos'. Ou Zelinskyy a dizer que os soldados russos verão os seus rostos e não as suas costas quando invadirem o território ucraniano. Ou a dizer que quer munições e não uma boleia para abandonar o país.

Mas não tenho dúvida de que os irmãos Klitschko terão também um lugar de destaque no grupo dos heróis desta guerra. Têm sido uma presença firme e corajosa nos momentos difíceis e conseguiram inspirar a confiança necessária para que a vida (quase) voltasse ao normal em Kyiv. São dois gigantes que guardam a capital de um país debaixo de fogo. Não abandonam as populações, estão onde é preciso, falam com uma calma determinada à comunicação social de todo o mundo e deixam sempre bem claro que estão ao lado dos seus conterrâneos a lutar pelas suas vidas, pela vida dos seus familiares, pela liberdade e pela independência do seu país.

Estão cansados e percebe-se a sua emoção ao dizerem que todas as guerras são horríveis, ao testemunharem o medo dos inocentes. Mas lutarão como leões pelo seu país e pelos seus conterrâneos e isso é certamente uma inspiração e um exemplo para muita gente.

Ukraine War: Klitschko brothers warn 'this war could destabilise Europe'

Political and business leaders from across the globe have been meeting in Davos to discuss the economy this week.

Sky's Paul Kelso spoke to the Mayor of Kyiv Vitali Klitschko and his brother Wladimir, who asked for an international, unified response to Russia's actions.

They also warned that the conflict in Ukraine could destabilise all of Europe.


E foi parte do vídeo abaixo que, na entrevista acima, foi mostrada aos irmãos Klitschko. Mais um punhado de gente que deveria igualmente figurar na tribuna dos heróis desta guerra absurda e bárbara. 

Ukraine War: The desperate fight for Severodonetsk, a city under siege

Sky's Alex Crawford witnesses first hand the desperation of people living in the war-torn city of Severodonetsk in eastern Ukraine

E tão vítimas da desmesurada ambição imperialista e assassina de Putin e dos seus apaniguados são os ucranianos como os próprios soldados russos que, muitos sem preparação e sem motivação, caem mortos nos campos de batalha sem que ninguém queira resgatar os seus corpos. Fechados em sacos de plástico, muitos sem identificação, estão armazenados em contentores frigoríficos à espera que haja alguém que os receba na Rússia. Isto enquanto as famílias nada sabem deles e provavelmente acreditam nas torpes patranhas com que a opinião pública é manipulada.

Russian soldier corpses pile up in refrigerated trains as 'Putin set to lose 30k men' in Ukraine


The bodies of dead Russian soldiers have been piling up on refrigerated trains, a video shows.

The claim, made by Ukraine in a video released Friday, comes after reports Vladimir Putin has lost nearly 30,000 of his troops in battle.

The footage, shared by Ukraine's railway chief Alexander Kamyshin, describes how Ukraine preserves the bodies of the fatalities.

The captions reads: "We treat dead #russians better than they treat live #ukrainians. Just another thing that makes us different."

The clip states that Ukraine preserves the bodies "according to humanitarian law, to release them to mothers and wives."

It adds: "Russia hides real losses from families. To avoid panic and to avoid payment of compensations."

The video then explains how Ukraine preserves the bodies by storing them in refrigerated trains. It adds that the railway is ready to deliver "cargo 200" to Russia- a Soviet military code term referring to war casualties.

The video ends: "Your 'cargo of 200' is waiting on demand".
-----------------------

E queiram descer caso vos apeteça voar na companhia de Sergei

----------------------------------------------------------------------

Sergei in love

 

Já andava com saudades dele. É daqueles amores, sabem. Quando se gosta assim, mesmo que não se perceba ou não se ache bem, a gente continua a gostar. 

Já pintou a manta, já se pintou todo (incluindo estampar-se com a fotografia do Putin), já inalou e ingeriu o que não devia -- e, no entanto, se me ponho a vê-lo voar, esqueço-me de tudo e foco-me apenas na sua arte.

Na verdade, a gente não tem que conhecer ou aprovar as opções pessoais de um artista para apreciar a sua arte. Melhor: a gente não deve mesmo saber. A arte deve valer por si, independentemente das opções de vida de quem lhe deu vida.

A viver na Rússia, com a mulher grávida a viver na Rússia, mas nascido ucraniano, em Kherson, e com família ainda a viver lá, Sergei que até não há muito gostava de detonar a sua carreira, dizendo coisas inaceitáveis, gerando desconforto e repúdio no meio em que se move, não faço ideia de como está agora a gerir as emoções.

Espero que a sua família, na martirizada Kherson, ainda esteja viva e que a sua casa não tenha sido arrasada, espero que tenha mandado apagar a tatuagem do Putin, espero que se sinta agoniado com a chacina que o assassino está a levar a cabo na Ucrânia, espero que apoie os seus colegas que saíram da Rússia. E espero que continue talentoso, brilhante, exímio voador.

Sergei Polunin & Elena Ilinykh: Life, Love, and Family

Ballet dancer Sergei Polunin (Сергей Полунин) and ice dancer Elena Ilinykh (Елена Ильиных) in a montage with their art, life, relationship, and their family including their sons, Mir and Dar Polunin. 

Song: Nuvole Bianche by Ludovico Einaudi. Cover by Luka Sulic (cello) with Evgeny Genchev (piano)

Footage: Crocus Fitness Awards 2019, Elena Ilinykh and Nikia Katsalapov "Don Quixote" 2010 -2011 Euros; Sergei Polunin and Erika Mikirticheva in Don Quixote with the Stanislavsky Ballet 2012 and 2013. Russian Morning Show Interview, April 2019. Vlad Topalov and Elena in "Ice Age", aired October, 2020, with Sergei as one of the judges. Evening Urgant show 2019, 2020. Polunin Ink Tour video (Romeo and Juliet, 2019). Art Kitchen Project 2019. Who Wants to Be a Millionaire 2020. Avto Radio and Russian Television Show Interviews in 2021. "Rasputin" rehearsals, promotional appearances, and performances 2019 and 2021. Sia "Music" music video rehearsals, behind the scenes, and official video. Bililbili short for Sergei's channel "How I Met Elena". Inglot modeling shoots and promotional videos. Hello Russia modeling shoot 2020. Photos and videos from Elena, Sergei, and their mothers' Instagram accounts 2020-2022. 

quarta-feira, maio 25, 2022

Um mistério que esconde outro mistério que esconde outro mistério.
Uma matriosca de mistérios.

 

Já aqui o referi: fico passada comigo mesma por verdadeiramente nunca me ter ocorrido que Putin era um perigo não apenas para os russos como para o resto do mundo. Eu sabia das prisões e dos envenenamentos e achava que isso era lamentável, desastroso. Por isso, obviamente não simpatizava com Putin. Também sabia da invasão da Crimeia, das suas incursões em território alheio, mas ou porque estava mal informada ou mal informada, relativizava. Tinha ideia de que, às tantas, o desenho das fronteiras tinha sido impreciso e que se tratava de pôr o risco um bocado mais para leste, coisa sem grande relevância internacional e que merecia (mais ou menos) o apoio das partes envolvidas. Lembro-me de participar em conversas sobre isso mas a ideia que tenho é que ninguém sabia bem o que dizia. E havia aquilo dos hackers russos e da espionagem económica e de outro tipo. Falava-se que não eram hackers por conta própria mas que era o próprio estado russo que o fomentava. Sabia, achava grave, mas também há os chineses, os coreanos. Ou seja, relativizava. E havia também a ingerência russa nas eleições ocidentais. A ser verdade, seria muito grave. Mas não sabia se seria mesmo verdade. Podia ser chicana política. 

Ou seja, desvalorizei. Não liguei as pontas. A minha perspicácia falhou em absoluto. Se cada um destes factos já seria grave de per se, quando juntos não deixam margem para dúvidas de que o perigo é real e não poderia ser desvalorizado.

O meu marido tenta apaziguar a minha auto-condenação: diz que não era a mim nem aos civis em geral que competiria mapear os riscos e alertar a comunidade internacional para os riscos não negligenciáveis que estavam a desenhar-se para os países vizinhos e não alinhados com a Rússia e, por essa via, para o mundo em geral -- era aos serviços secretos de todos os países.

Então como é possível que tenham falhado todos? Ou não falharam... e os políticos é que não os levaram a sério? Mas, então, porquê?

O que falhou? Alguma coisa foi. Aliás, muitas coisas foram.

Já se sabia (e agora sabe-se mais e melhor) como a Rússia tinha (e tem -- e agora bem à vista de todos), espalhados pelos mais diferentes centros de decisão (na política, na comunicação social, nas forças armadas, no meio académico, etc), agentes de influência que canalizavam informação nos dois sentidos. Mas isso não acontece apenas com a Rússia e, portanto, até aí, nada de mais. Mas os agentes dos serviços secretos dos países ocidentais não perceberam qual o rumo que a estratégia russa estava a seguir? Ou os políticos estavam todos cegos? Todos...? Ainda se fosse apenas um ou outro... Agora todos...?

Não percebo -- e, se alguém aí desse lado o percebe, muito agradeceria que me explicasse. É que tudo isto me deixa deveras intrigada.

Penso que os investigadores têm aqui um manancial de informação por explorar. Muito há por perceber em toda esta história de horror.

Twenty Years of Putin Playing the West in 3 Minutes | NYT Opinion

Vladimir Putin, especially these days, is widely reviled. To some he’s a war criminal, to others he’s a dictator, and to many he’s simply a very bad man.

But it wasn’t always this way.

We trawled through video footage from 20 years of international summits, speeches and news conferences and discovered a man who once basked in high regard: the one who went fishing and dancing with George W. Bush, who fell into warm embraces with Tony Blair and whose jokes had NATO’s leaders rolling on the floor with laughter.

As the Opinion Video above starkly reveals, Western leaders once considered Vladimir Putin not just an ally, but also, apparently, a friend.

Even if they were simply giving him the benefit of the doubt for political purposes, they were taking a naïve gamble of historic proportions: Be nice to Putin, and maybe he would be nice back.

It’s true that this brand of personal diplomacy scored some significant security victories. Arms control treaties were signed, and Putin allowed U.S. jets to strike the Taliban from bases in Russia’s satellite states.

But as Russian tanks rolled into Georgia in August 2008, Bush learned that his eight-year friendship with the Russian leader had earned him zero leverage over Putin’s territorial ambitions.

While it’s debatable whether Western governments could have foreseen the bloody horizon of Putin’s vision, let’s now be clear about one thing: Personal diplomacy doesn’t work when you need it most.


-------------------------------------------------------------
Pela parte que me toca, já se sabe.


terça-feira, maio 24, 2022

Jaime Vilaseca diz que foi ela que mudou a sua vida.
[Por acaso, ela nasceu na Ucrânia e, por acaso, diz-se que a mãe foi violada por soldados russos. Mas isso agora não vem ao caso]

 

Não poderei dizer que ela também mudou a minha vida pois, para falar a verdade (se é que sei qual a verdade, não é, K.?) acho que nunca nada mudou a minha vida. Olho para mim e vejo-me, agora e desde sempre, no mesmo trilho. Não mudei por nada nem por ninguém. E não por obstinação, orgulho ou sina, apenas porque todos os caminhos que percorri foram sempre o mesmo e é o caminho que me traz e não eu que o escolho.

Mas que ela me impressionou fortemente lá isso é um facto. Quando a conheci, quase parava de respirar para tentar perceber que sentimentos eram aqueles, os dela que assim se me dava a conhecer, os meus que assim me conhecia e que assim a conhecia. 

Não sei qual o primeiro livro que li dela. Nunca tinha lido coisa assim. A gente sente e pensa mas, por vezes são coisas tão cá dentro, tão viscerais, que nem faz sentido tentar encontrar palavras para as traduzir. São coisas que se formam dentro da respiração, que circulam dentro do nosso sangue. Mas ela fazia-o, encontrava as palavras para isso e era tudo tão íntimo e, ao mesmo tempo, tão transcendental que, de repente, as coisas mais etéreas e as mais terrenas se encontravam cerzidas com a perfeição das coisas raras e belas demais.

Não se percebem pessoas assim. 

Não sei se foi a história da sua família que ficou inscrita nos seus genes, se foram as dores que a mãe sofreu, se é coisa que sempre teria existido mesmo que o percurso de vida fosse outro, mesmo que tivesse ficado na Ucrânia, mesmo que a mãe não tivesse sofrido às mãos dos russos. 

Não se sabe. Eu, pelo menos, não sei. 

[E ainda bem que não sei pois a vida seria insuportável se soubéssemos tudo o que há para saber]

Uma moldura para Clarice

Um encontro com Clarice Lispector mudou sua vida, na década de 1960. O espanhol Jaime Vilaseca era marceneiro no Rio de Janeiro. 

A escritora encomendara a ele uma estante de livros, que foi feita e montada em seu apartamento, no bairro do Leme. Durante aqueles dias, silenciosamente, observara-o trabalhando e, terminado o móvel, olhou para ele e disse: “Você vai ser moldureiro. Não vai escapar ao seu destino!”.


........................................................................................................

Estender a roupa como deve ser
-- Um post para quem gosta de animais... e de sorrir... --

 

Dantes tinha máquina de secar roupa. Uma vez meti lá dentro uma coisa pesada (cobertor?) que ficou ainda mais pesada estando molhada e, com o peso, partiu-se a fita (ou a correia?) que sustinha o tambor. Pelo menos é o que me lembro de quando o técnico lá foi. Deu a explicação, disse que ia ver se arranjava uma peça, depois nunca mais dizia, depois disse que não tinha arranjado mas que ia falar com um colega a ver se arranjava, depois nunca mais disse... e fui-me habituando a prescindir dela.

Quando mudámos de casa, desfizemo-nos da dita cuja. Problema resolvido.

Mil vezes melhor secar ao ar livre. Há o trabalho de estender e apanhar mas é uma espécie de exercício e eo exercício faz bem. No campo, então, quando está vento e sol é uma maravilha, a roupa é como se levasse uma lavagem suplementar.

E gosto de a dispor certinha, direitinha. De vez em quando o meu marido, acelerado como é, começa a tirar a roupa da máquina e a estendê-la antes de eu chegar. Frequentemente tenho que retirar as molas e voltar a estender como deve ser. É que poucas coisas são passadas a ferro para além das camisas dele pelo que, se estender a roupa com 'preceito' (como diz a minha mãe), ela acorda seca e aprumada.

Mas uma coisa é estender a roupa de modo a não deixar marcas e outra é estendê-la artisticamente.

A artista russa Helga Stentzel, agora a viver em Londres, tem essa pontinha de graça que faz com que, com duas ou três peças de roupa, dê à luz toda a espécie de animais. Depois fotografa-os. E a gente fica a sorrir.








Desejo-vos um bom dia

domingo, maio 22, 2022

Imagens de satélite mostram o que não vai ser possível esconder

 

Para os mais distraídos poder-se-ia arranjar um exercício simples: descobrirem as diferenças entre o 'antes' e o 'agora'. Poderíamos ainda pedir que se entretivessem a identificar o que aconteceu. E, num esforço ainda atento, que identificassem as consequências do que aconteceu.

Imensas valas cavadas em torno das zonas massacradas por sucessivos bombardeamentos. Para que servirão? Para enterrar corpos? Quantos? Quantos milhares? Quantas pessoas restaram para chorar os seus familiares que agora são apenas 'corpos' à espera de ser enterrados para que não se decomponham à vista dos vivos?

E os campos antes plantados com cereais que, uma vez colhidos, eram armazenados em grandes silos quando voltarão a produzir? E onde serão armazenados os grãos se toda a infraestrutura foi arrasada? Porque foram destruídos os silos de cereais e as instalações de carga e distribuição? Para empobrecer os agricultores? O país? Para matar outros tantos milhares à fome, sabendo-se como são críticos os cereais para as populações mais pobres de todo o mundo?

E as fábricas agora destruídas? Quanto tempo demorará a reconstruir um complexo como este?

Digo-vos sem sombra de dúvida: anos. Primeiro há que remover os escombros, voltar a preparar os terrenos. E há que fazer os projectos para todas as novas estruturas. Depois encomendar os novos materiais para construir e equipar as novas fábricas. Com a escassez de matérias primas, será outra dor de cabeça. Montar, testar, pôr em produção. Anos. E até lá? Toda a produção de aço que ali havia será colmatada como? Não será. Não há sobrecapacidade noutros locais que possa colmatar estas falhas. Haverá carência. Uma carência que se somará às outras carências. E não afecta apenas a Ucrânia: afecta todo o mundo.

Os crimes que estão a ser cometidos pela Rússia não podem ser esquecidos nem perdoados. Não são apenas desumanos. São vastos, complexos, profundos. 

E não nos esqueçamos. É a Rússia que está em território alheio, a destrui-lo. Não há outro culpado. 

E que não venham dizer que foi a Ucrânia que o pediu ao não aceitar ceder território à Rússia desde que esta começou a invadi-la. Crimeia? Acordos de Minsk? Que conversa é essa? Os ucranianos não querem ser russos. Demonstram-nos por palavras, por actos, pelos votos, dando o seu sangue por isso. E têm todo o direito a defender a sua vontade. A vontade dos povos é soberana. Essa á a base do direito internacional.

Se um ladrão vier aqui roubar a minha casa, querendo passar a ser o seu dono e que eu seja sua serva, tenho todo o direito a defender-me. A casa é minha, as coisas que aqui estão são minhas e eu sou dona e senhora de mim. Se o ladrão a seguir desatar a torturar-me, a destruir a minha casa até que eu ceda, haverá gente de bem que defenda o ladrão, dizendo que eu é que me deveria ter rendido?

Sei que sim, que há quem o defenda. Sempre haverá gente que defenda os agressores, gente que acha que os agressoras têm direito imperial sobre aqueles que querem subjugar. Não nos esqueçamos que houve quem defendesse, em tempos, a invasão da Checoslováquia, tal como houve quem se manifestasse a favor da 'paz' defendendo que se deixasse Hitler tomar os países que quisesse e matar quem quisesse.

O vídeo abaixo mostra imagens por satélite. E são estas imagens, tal como as imagens colhidas por drones, tal como as comunicações móveis omnipresentes que desmontam qualquer argumento negacionista. 

Satellite image leads to horrifying conclusion


🎵 (Ras)Putin Remix - Boris Johnson ft. Biden, Trump, and Farage 🔥

 

E agora, enquanto me inspiro para o próximo post, um pequeno interlúdio musical. A minha menininha Plim-Plim hoje pediu para ver o blog e perguntou se tenho escrito sobre eles. Respondi que não, que tenho andado mais por outros territórios. Mas fiquei a pensar que deveria fazê-lo. Mas, para escrever qualquer coisa para eles tenho que estar bem acordada e, lamentavelmente, não é ainda o caso. Por isso estou a ver se desperto.

Fico-me, por ora, por um sugestivo vídeo. Não são os belos cantares de Timor que agora têm passado nas televisões e que sempre me farão recordar um longínquo dia (e, contudo, aparentemente tão próximo) em que começámos a falar depois de ambos termos assistido a um encontro de resistentes timorenses que cantaram o Monte Ramelau e outras cantigas mas que, para nós, eram sobretudo a insólita música de fundo para a atracção que fazia com que ele tivesse passado o tempo todo a tentar perceber se eu ainda estava atrás dele e eu o tempo todo a sentir que estava a inquietá-lo. E depois foi aquela coisa que sempre me leva a fazer o que sinto que deve ser feito: arranjei maneira de dar o passo que estava há algum tempo à espera de ser dado.

Mas isso foi num Setembro quente. E não é sobre Timor Leste, aka Loro Sae, que a cantiga abaixo trata.

A única coincidência entre a música que vou partilhar e os cantares de Timor encontrá-la-á o nosso inefável Marcelo que padece do mal de não conseguir controlar o que diz, em especial quando tem um microfone apontado à boca, e que estabeleceu relação idêntica ao conectar a sua ida a Timor com a ida de António Costa à Ucrânia no que parece ter sido uma incomprénsível gaffe de segurança.


A ver se até já

sábado, maio 21, 2022

No fim de mais um dia daqueles, apesar da noite não estar estrelada foi-me oferecido de bandeja um grande discurso

 


Por razões que não vêm ao caso tenho dormido muito pouco. Por umas razões ou por outras, tenho sido forçada a acordar cedo demais, não conseguindo dormir os mínimos dos mínimos. E se antes encaixava bem noites seguidas com poucas horas de sono agora já me custa.

Acresce que os dias têm sido longos demais. Longos, cansativos, stressantes. Esta sexta, por exemplo, começou cedo com um telefonema complicado. Acabou o telefonema e fiquei incomodada. Tentei digerir mas não descia. Liguei de volta para dizer de minha justiça. Não consigo processar incómodos sem soltar os cachorros. Está-me na massa do sangue. E foi uma hora de discussão acesa. Há momentos em que há que encontrar o devido equilíbrio entre ser-se contemporizadora e ter a mão pesada. Eu tendo para a mão pesada pois não creio que faça sentido ser de outra maneira para quem não é leal nem se esforça por ser competente. Ele acha que é preferível tê-los por perto do que afugentá-los e deixá-los à solta a fazer não se sabe o quê. Mas estou cansada e sem paciência para paninhos quentes, para jogos de espelhos.

Mas, enfim, é o que é. 

Por vezes penso na dificuldade que tenho quando os miúdos me perguntam: 'Mas fazes exactamente o quê?'

O que faço é isto. Tomar decisões que nem sempre agradam a todos, questionar quem preferia não ser questionado, não satisfazer as vontades de todos, puxar por quem preferia estar quieto, mandar estar quieto a quem faz o que não deve, tentar que se entendam alguns que não podem nem ver-se. Coisas assim.

Por isso, chego a esta hora e estou off ou quase. 

Hoje, depois de almoço, não tendo nenhuma reunião agendada para a próxima hora, reclinei-me. E adormeci instantaneamente. Infelizmente logo tocou o telefone. Há bocado, aqui no sofá, estava a ver as notícias quando senti que não aguentava. Encostei a cabeça para trás e pimba. Não estaria completamente anestesiada pois estava a ouvir vozes familiares. Mas não conseguia processar a quem pertenciam nem abrir os olhos para tentar esclarecer. Só passado um bocado consegui sentar-me melhor e ver o que se passava. O Masterchef Australia. Não sabia que estava a dar nem faço ideia em que episódio vai. Pena não ter acompanhado de início.

Agora, mais ou menos acordada, estou a ver o Pantanal. Não vi da primeira vez, não sei porquê. Fui ver quando foi e vi que foi em 1990. Eram os meus filhos pequenos. Desses tempos lembro-me é da minha labuta para acompanhá-los o melhor possível apesar do tanto trabalho que tinha, apesar das filas de trânsito, apesar da labuta que me trazia numa correria. Provavelmente à noite, depois de os pôr a dormir, depois de arrumar a casa e preparar as coisas para o dia seguinte, já não me sobrava tempo para telenovelas. Se calhar só para ler um bocado. Não sei.

Antes de jantar, fui dar uma volta no jardim. Agora nem isso tenho podido. Reparei que uns vasos estavam quase secos. Não sei como fui esquecer-me de os regar. Deu-me uma inquietação de verdade. Uns arbustos que escolhi e plantei e tratei com tanto cuidado e fui esquecer-me de os regar. Parece que estava fiada nas pingas de chuva que de vez em quando haveriam de cair. Mas tem estado tanto calor e chuva nenhuma. Fui logo a correr encher o regador, uma e outra vez. Mas não sei. Nem quero pensar. Olhava para os pequenos arbustos, antes tão viçosos e agora ressequidos, uns se calhar já sem recuperação. Como foi isto de me esquecer...?

O tempo não me chega para todas as obrigações. Mas regar os vasos é daquelas que não podia ter-me esquecido -- e esqueci.

----------------------------------------------------------------------------------------------

Estive há pouco a ver o que o YouTube tinha para me sugerir e só posso tirar o chapéu às mentes brilhantes que concebem o algoritmo que o movimenta. Já é inteligência artificial (IA) e eu, que tanto me preocupo com os riscos da IA neste mundo ainda tão desregulado no que a isto diz respeito, afinal sou consumidora de produtos que me são dados a comer por um algoritmo. Ele mostra-me o que 'acha' que eu gosto e não me mostra o que 'acha' que eu não gosto. E acerta bastante no que eu gosto. Mas não sei se, mesmo que na melhor das boas intenções, a de me agradar, não me oculta muito do que se calhar eu gostaria de conhecer. Mas, enfim, é um produto que uso gratuitamente e, por isso, não posso esquecer-me de que quando consumo um produto que não pago é porque o produto sou eu. Portanto, adiante.

Estava eu dizendo que estava a ver o youtube e apareceu-me um excerto do fantástico O Grande Ditador. Como o que é bom é para ser partilhado, aqui o deixo convosco.

Charles Chaplin - O Grande Ditador - Discurso final

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ilustrações de Alireza Karimi Moghaddam (que vive em Lisboa) sobre a vida e obra de Vincent van Gogh 

na companhia de Don McLean com Vincent (Starry Starry Night)

------------------------------------------------------------------------------------------------

Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Alegria. Serenidade. Paz.