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quarta-feira, novembro 21, 2018

Ver as coisas muito de cima






O dia foi completo e supostamente cheio de coisas importantes e, supostamente também, deveria achar que fui bem sucedida em toda a linha. Tinha visto no outro dia o meu horóscopo (coisa cuja validade sou incapaz de defender mas que, incongruente como sou, quando me lembro gosto de ler) e lá dizia que a minha assertividade e segurança tornava imbatíveis os meus argumentos pelo que poderia estar certa de que faria o que quisesse. Registei mas não liguei. Mesmo que fosse alguém de verdade a dizer-mo não ligaria. Desde que me lembro que penso pela minha cabeça e sou imune, talvez quase a 100% a conversinhas da treta, a lisonjas ou a considerações sobre mim, por muito abonatórias que sejam. Sou como sou por natureza e, na parte que não é genética, tento melhorar-me, desapegando-me de superficialidades. Quanto à parte genética, é o que é. Mas acho graça a ver como isto dos horóscopos bate muitas vezes certo.

Mas isto para dizer que, se há alturas em que tentam empurrar-me para onde não quero ou tentam obrigar-me a alinhar-me relativamente a coisas em que não acredito nem pintadas, outras há em que parece que tudo flui.


Mas, sobretudo, há uma coisa: cada vez mais sinto que vejo as coisas from the balcony, como se não fossem comigo ou como se eu não fosse de cá, como se, simultaneamente, eu fosse também uma mera observadora, como se fosse isenta porque independente a relação a quase tudo. Claro que se me saísse o euromilhões ainda conseguiria distanciar-me mais.

Tive um colega, inteligente e mui nobre pessoa, mas nobre de nobreza mesmo, pessoa com verdadeiro pedigree, que ganhou o respeito dos demais porque tudo o que dizia era acertado e corajoso. E por não estar nem aí. Mas tão descarado era que se posicionou verdadeiramente acima da carne seca. Entrava e saía às horas que lhe apetecia, a meio das reuniões levantava-se e punha-se a andar à volta da mesa ou ia para a janela, de mãos nos bolsos, na maior descontra. Chegava a andar a cirandar à nossa volta a assobiar baixinho. As coisas que ele fazia... As pessoas sorriam ao de leve ou já nem ligavam. Era como se jogasse noutro campeonato.

Gostava imenso de conversar com ele. Era um espírito livre.


Casou em segundas núpcias com uma mulher da idade da filha mais nova. E, para cúmulo do inesperado, teve um filho com ela. O filho, da idade dos netos -- e tinha nem sei quantos --, era lindo e fazia o que queria, coisa que ele observava com admiração e, também aí, com distanciamento. Fiquei para morrer quando, uma vez, por exemplo, me disse: 'O tipo é maluco, só gosta de brincar com berbequins'. Não quis acreditar: 'Mas quê? De brincar? A pilhas?'. E ele, a rir, 'Não, o tipo gosta é de brincar com berbequins a sério, ligados à corrente'. E ria. A criança, na altura, tinha cinco anos.

Mas, portanto, dizia eu, não estou como ele, que isso é quase impossível, mas também a ficar quase desaforada, dizendo de frente o que me parece adequado, mesmo que deixe os outros a olharem para mim, provavelmente a pensarem que é preciso lata para dizer coisas daquelas.


Mas, agora que escrevi isto, lembrei-me de uma vez, quando tinha reuniões num dos mais bonitos palacetes da cidade, numa sala enorme
-- uma sala requintadamente mobilada, com óleos enormes e imperiais, jarrões gigantes, candeeiros lindos, em volta de uma mesa gigante.
Estaríamos umas quinze pessoas, eu e uns catorze homens. À cabeceira uma ilustre criatura, pessoa delicada, educadíssima, daquelas que bebia chá já no ventre maderno, notoriamente não nascido para murros na mesa ou para contrariar quem quer que fosse. À volta, um bando de gente opiniosa. O dito cavalheiro da cabeceira, distinto e educadíssimo, tinha contratado um consultor que tentasse perceber o que queríamos, sendo que cada um de nós queria sua coisa e que ele não percebia nada nem do dizíamos nem da matéria sobre a qual falávamos. A coisa resultava em reuniões que duravam horas. Uma canseira. Ele não conseguia ter mão em nós.O consultor estava a receber verba avultada pelo que, embora se passasse com aquela cegada de reuniões, aguentava calado porque o dinheiro lhe devia saber bem ou fazer falta. Mas as nossas divergências eram exposta com civismo, boa educação, sem elevações de voz. Horas de conversa educada, redonda, inconsequente, contraditória.


Até que um dia, para espanto de todos, de forma completamente inusitada, numa daquelas longas e suaves discussões, o dito consultor afastou a cadeira da mesa, deu uma palmada com toda a força na mesa e, num berro, disse: 'Porra! Porra para isto! Mas não há quem mande aqui?!' e zás pás trás,, levantou-se à bruta e disse: 'Demito-me. Estou farto disto.'. Pegou nos papéis que tinha dentro da sua pasta, despejou-os na mesa, afastou a cadeira e saíu de rompante, batendo (literalmente) com a porta. Ficámos todos zonzos, em especial a homem refinado e discreto que se sentava à cabeceira que, lembro-me ainda muito bem, ficou corado até à raiz dos cabelos. Nunca tal sala tinha presenciado tamanha brutidão. E nós também não.

Depois de uns instantes de pasmo, recompusemo-nos e a reunião prosseguiu como se nada se tivesse passado. Até hoje nunca mais ouvi, alguma vez, comentar tão insólito acontecimento. Mas eu lembro-me muitas vezes disso e penso que era bem metido se eu me saísse com uma daquelas.


Mas, enfim, nada disso agora vem ao caso. O que vem é que continuo apaixonada por esta arte de fazer tapetes de arraiolos. Agora, mal aqui chego, atiro-me a ele. E, quando acabo, estendo-o no chão para ver o avanço. Ontem à noite reparei numa coisa chata: há um lado cujo fundo da barra está por preencher. Como é em amarelo seco, parecido com a cor da juta, tinha-me parecido que estava feito. Hoje antes de sair de casa, apesar de apertada no horário, fui buscar a escadinha e fui empoleirar-me para descobrir onde parava aquele amarelo. E achei. Mas agora fiquei na dúvida se era a mesma cor. Com luz artificial não dá para arriscar. Por isso, continuei com o azul escuro do fundo. 

E tanto gosto de aqui estar entretida a fazê-lo que tive que me forçar a parar para escrever estas coisas de nada. Mas não interessa. Se isto é um pro memoria, que fique registado o prazer que sinto por ter voltado a esta minha faena.

E o resto, cenas que vi aprovadas, posições que deixei claras e outras coisas altamente importantes, são coisa nenhuma quando comparadas com os avanços que vou dando ao meu tapete.


Tirando isso, lamento os acidentes, as forces majeures, os actos de deus, as loucuras dos homens, a tristeza que veste o olhar de algumas pessoas, os infortúnios irremediáveis, os amores para sempre incumpridos, as palavras que morrem antes de ser ditas, as doenças, os mal entendidos, as descrenças infelizes. E tudo o mais. Mas o meu ser é insignificante demais para poder guardar todos os males do mundo. Portanto, contento-me com as coisas simples. E, se as vir de cima, ainda mais perfeitas me parecem.

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Talvez por isso, resolvi usar, para intercalar no texto, fotografias que mostram a Terra vista de cima. São lindas, abstractas. Caso também gostem de se sentir deslumbrados vejam o Daily Overview

A música que escolhi acho que não tem nada a ver. Apenas gosto dela. Aliás, gosto bastante de ouvir o Marlon Williams.

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domingo, outubro 14, 2018

Estantes, decorações, arrumações.
Estou na cidade enquanto ouço sinais de que a Leslie está a passar ao largo mas que, ainda assim, se faz ouvir.




Sábado atípico. Contudo, bom. Mas todo na cidade: nem campo, nem rio, nem mar. Cidade da cabeça aos pés.
[E isto para não falar na sexta-feira, ainda mais atípica, com um acontecimento que prova que isto a gente não deve desistir de nada por achar que é tão improvável que jamais acontecerá. Aconteceu-me e, no momento em que estava a acontecer, só pensei: Não é possível, isto não está a acontecer, não pode ser. Mas aconteceu. E não foi bom. Mas há coisas piores e eu sacudo para trás das costas tudo o que não me agrada. Não alinho em teorias da conspiração, não alimento paranóias, não fico a achar que 'só a mim...', não desanimo nem deixo que a apreensão me tolha os movimentos. Em bom português, e pardon my french: cago para as malapatas. Bola para a frente.]

Na sexta à noite cheguei a casa ainda meio apardalada mas, em vez de ir enfiar-me na cama ou de ir acender velas a pedir protecção a quem quer que fosse, fui pôr-me a fazer medições -- a móveis, a paredes --, a tirar livros de uma estante para a mudar de sítio só para ver se ficava bem ali, para o espaço ficar livre para outra maior. O meu marido passado. Não concordava com nada daquela mudança. Não queria sequer pensar em ir para o Ikea. Não percebia como tinha eu ainda disposição para andar naquilo. Eu a precisar de ajuda para ensaiar, para perceber se aquelas trocas resultariam, e ele contrariado, mal-disposto.

Depois, não apenas porque era tarde para fazer jantar como porque nos apetecia laurear, resolvemos ir jantar à praia. Uma humidade boa, a maresia bem activa, cheirosa. Não deu para ir passear à beira de água porque me tinha esquecido de levar um agasalho e o frescor das noites de Outubro estava a fazer-se anunciar.


Hoje de manhã o meu marido comunicou-me: acordei a pensar nessa coisa das estantes e tive uma ideia. Sobressaltei-me: pensei que ia ser uma parvoíce daqueles dele em que inventa tudo o que lhe vem à cabeça para não ter que ir ao ikea.

Mas não: uma ideia disruptiva. Acabar com o escritório até porque raramente é usado. Levar a secretária grande para o espaço de estar na zona fechada do terraço, perto do cadeirão americano, da conversadeira e dos banquinhos baixinhos. E, na parede da secretária, colocar uma big estante. 

Adorei a ideia. Boa. Fiquei mesmo contente.


Almoçámos lá, no Ikea, e fomos às compras a seguir.

Escusado será dizer que mal entrou no parque de estacionamento o meu marido entrou logo em desespero. Estava cheio. Por ele, dava logo meia volta. Mas lá o convenci a ficar. Depois, mal chegámos ao restaurante e vimos aquelas longas filas, disse outra vez que não tinha nada que aturar aquilo, que não foi feito para estes números. Mas lá ficámos. E foi bem bom. Ficámo-nos pela sopa, pelo wrap de salmão, pela salada de cuscuz, salmão, queijo, passas, tomate e rúcula, depois almôndegas vegetarianas com um arroz de legumes, para mim um sumo de cenoura, maçã e gengibre e, para rematar, uma tarte de frutos vermelhos. Muito bom. E arranjámos uma mesa junto à galeria, quase isolados, agradável. Quem diria que iríamos gostar de almoçar no ikea?

A seguir lá nos dirigimos às estantes. Tanta gente. Até eu me impaciento no meio da barafunda, de caminhos labirínticos. Mas, enfim, é o que é e thanks god there is ikea. Trouxemos a estante grande mas também uma estreitinha, de quarenta centímetros de largura mas com dois metros de altura, para encostar à coluna aqui da sala da televisão. A comodazinha que agora lá estava foi para um pequeno recanto no hall dos quartos. E ainda mais uma estante-cubo, com quatro compartimentos, para pôr ao lado de um dos maples.


Quando nos dirigimos ao piso de baixo para recolhermos as caixas, o meu marido bufando em contínuo, vimos aquilo que esperávamos: volumes grandes demais para o carro. Já tínhamos dado como adquirido: tem que ser com entrega. Só que, ao tentar retirar da estante a primeira das caixas, percebemos que era um peso bruto. Ele fulo, claro, que ia dar cabo das costas, que não comprasse eu tanto livro e não tinha ele que andar sempre a acartar e a montar estantes, etc, etc. Lembrei-me: mas será que não podemos simplesmente dizer o que queremos, sem termos que andar a levar as caixas para o balcão dos despachos?

Fui informar-me: têm esse serviço, sim senhor, mas pago. E assim fizemos: pagámos. O levantamento das embalagens, o transporte e a montagem. Portanto, só tivemos que fazer a encomenda detalhada do que queríamos e levá-la à caixa para pagar. Claro que agora vou ter que esperar um pouco mais de duas semanas quando estava mortinha por me pôr já a virar a biblioteca toda do avesso para arrumar numa nova disposição os livros que por aqui andam a monte. Mas não havia outra alternativa: era um peso, um tamanho e um trabalho de que só eu e ele não daríamos conta.


Antes de regressarmos a casa ainda me apeteceu um gelado. Depois, cá, deitámos mão à obra. A secretária ainda tinha as gavetas cheias de tralha do meu filho e de mais nem sei já bem o quê. E havia para lá mais uma data de coisas. Tudo passado a pente fino e muita coisa para o lixo. Transportá-la para o outro lado da casa foi um bico de obra. Em tempos, numa era pré-ikea, havia perto da minha casa uma loja de móveis muito bons. O dono negociava em antiguidades e tinha uma loja especializada em fornecimento de mobílias e decoração de embaixadas. Grande parte dos móveis da minha casa provém de lá. A secretária também. É enorme, pesada, em nogueira, com o tampo em pele verde. Se me lembrar, um dia destes fotografo-a. Para conseguir tirá-la de lá, o meu marido teve que tirar um outro móvel e os dois andámos com ela às voltas, tombada, para conseguir passar pelas portas e dar curvas. Arrumei também as gavetas da pequena cómoda que agora está no hall. A grande cesta onde tenho a juta dos arraiolos e as lãs também foi arrumada e mudou de sítio. Idem com os desenhos dos vários tapetes que já fiz.


Claro que não fiz outra vez jantar. Mandámos vir uma bela pizza em forno de lenha que comemos quentinha e saborosa. 

Agora estou aqui, meio a dormir (como de costume...), contente com a perspectiva de ir ter estantes novas e de conseguir ter esta sala minimamente arrumada, sem livros a transbordarem por todos os cantos, sentados em cadeiras, cadeirinhas e sofás, encarrapitados em cima da mesa redonda, das estantes baixas e das mesinhas de apoio, em pilhas ao lado de tudo. 

Cheia de preguiça e mais lá do que cá, à falta de notícias estrepitosas, tenho estado aqui entretida a ler 'O caminho estreito para o longínquo norte' de Matso Bashô; e, pelo meio, quando sinto que vou adormecer, ponho-me a navegar à bolina entre imagens de decoração quer da Madame Figaro quer da Elle parisiense; e repesquei umas quantas para acompanharem o texto, ao som de Finn Andrews que interpreta ‘Nobody Gets What They Want Anymore' de Marlon Williams.

E, para já, é isto que tenho a reportar. E domingo será um novo dia. E que seja, para todos, um dia feliz.


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E não me lembro se, no outro dia, vos mostrei uma coisa belíssima. Podia ir verificar mas estou tomada pela indolência. Por isso, pelo sim, pelo não, mostro. Une merveille.

Sarah Lamb e Steven McRae do The Royal Ballet ensaiam Mayerling


sexta-feira, outubro 12, 2018

Bombeiros so hot que quase pegam fogo.
De tal ordem que a gente nem se importa que o ano tenha muito mais do que os habituais doze meses.
Aqui, os que são afeiçoados a gatinhos.
E feliz ano de 2019!




Gosto de homens bonitos e com corpinho bem feito. Parafraseando o grande Vinicius, os feios que me desculpem mas beleza é fundamental. Não vou agora falar com pormenor dos que namorei e que depois deixei mas falo daquele com quem me casei. E, com vossa licença, vou repetir-me. Quando vejo homens bonitos, gosto de me lembrar. 

Num pavilhão cheio de gente, vi entrar aquele por quem, de imediato, me apaixonei. Tudo nele me agradou. Os olhos deles vaguearam pelo vasto pavilhão e foram pousar na que, sentada no parapeito de uma janela, o fitava com encantamento. Barba cerrada, cabelos quase pelos ombros, moreno, olhos cor de mel, era um autêntico cristo mas em bom. Um físico invejável, uma forma elegante e desportista de andar. Quando a seguir estive com o meu namorado, com franqueza, confessei: 'Vi aquele que acho que é o homem da minha vida'. Escusado será dizer que o pobre coitado ficou pregado: 'O homem da tua vida não sou eu?'. Já não me lembro como me saí. Se calhar disse aquilo que era verdade: não sabia quem era, nunca tinha visto e, se calhar, não ia voltar a ver.

E, de facto, passaram meses sem que o voltasse a ver. Até que um dia, estando numa sala perto da escadaria, vejo uma colega entrar em estado de apalermada estupefacção: 'Não vão acreditar. Vi o fulano mais giro da faculdade. Não imaginam. Lindo.' Pensei que só podia ele. Saí a correr mas já não o vi. Ela disse: 'Tinha o braço partido'. Tempos depois, entrei na cantina e vi um ajuntamento ao fundo. Muitas raparigas, muito sorrisinho. Pensei: 'Querem lá ver...' Espreitei. Era ele. Rodeado de mulheres por todos os lados. Estavam a escrever dedicatórias e parvoíces no gesso. Pensei cá para mim: 'Deixa-as. Guardado está o bocado para quem o há-de comer'. Afinal eu continuava a namorar, por sinal um namoro muito a preceito. Por essa altura, já ele tinha ganho o cognome de 'o borracho'.


Meses depois, encontrei uma amiga minha dos tempos de liceu que estava noutro curso. Vinha com um saco com mantimentos. Vinha nas nuvens. Contou que andava com o gajo mais giro da faculdade, que ia fazer o jantar porque ele ia a casa dela, um andar um vivia sozinha. Contou que não era apenas lindo: era culto, era meiguinho. Tudo do melhor. Pensei: 'Querem lá ver...'. Certa de que com tanto elogio só podia ser 'o borracho', perguntei-lhe o nome dele. Disse-me. E foi assim que fiquei a saber o nome daquele que, não muito tempo depois, viria a ser meu.

E isto para dizer que me apaixonei só pelo físico, pelo olhar, pelo andar. Nada sabia dele, nunca lhe tinha ouvido uma palavra. Mas nada disso me fazia falta para ter a certeza de que não descansaria enquanto não o tivesse para mim.

Continuava a namorar outro e, no entanto, dentro de mim eu sabia que aquele lá, o outro, 'o borracho', é que era o tal. Mas ainda não se tinha proporcionado.


Andávamos em cursos diferentes, tínhamos horários distintos, apenas nos cruzávamos (e era de raspão) a espaços de meses. Mas, de cada vez que isso acontecia, ele ficava com os olhos presos aos meus e eu presa aos dele. Aos olhos... e ao corpo -- e ele ao meu. Era inevitável que aquilo tivesse um desenlace.

Teve. Não propriamente um desenlace mas, sim, um enlace. Dura até hoje.

Nessa altura, as minhas amigas diziam que eu era açambarcadora. O meu namorado era bem bonito, tinha (e tem) uns olhos num azul quase violeta, umas pestanas compridas. E um enorme talento. Elas queixavam-se: 'Com o que já tens, para que queres mais outro?'. Mas era mais forte do que eu.

E o anterior ao dos olhos azuis. Irreverente, uns olhos muito bonitos, um ar sensual e todo ele provocação. Um grande amor, esse. O primeiro.

Ou seja: toda a vida fui sensível a homens bonitos. É genético.


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E isto para dizer que. Aproxima-se o fim do ano e, com ele, começam a chegar os calendários. Este de que aqui vos dou conta chega da Austrália e traz um belo naipe de bombeiral. Cada um mais jeitoso do que o outro. Corpinhos bem feitos, carinhas larocas. As australianas, volta e meia, devem pegar fogo aos rissóis na frigideira só para os chamar lá a casa. 

A graça é que vejo um montão de fotografias, bem mais que os habituais doze meses. Mas não me espanta. Perante coisa assim, a gente até lhes perde a conta, que venham mais. Vinte, trinta meses... quem é que se prende a minudências dessas perante tão belos exemplares do género humano?

Claro que, ao vê-los só fico a lamentar que se tenham rapado. Não gosto. Salvo uma honrosa excepção, não se vêem ali pêlos no peito, no baixe ventre. Espero que não tenham depilado mais do que isso mas, ainda assim, faz falta algum pelinho para a gente sentir uma coceguinha boa quando se lhes encosta. Só perdoo a estes meninos porque, estando tão longe, lá na Austrália, não vou conseguir pôr-lhe a mãozinha em cima. 

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Se conseguir manter-me acordada, ainda aqui volto para mostrar bombeiros que gostam de piu-pus, outros de cãezinhos, outros de cavalinhos upa-la-lá.

quinta-feira, agosto 16, 2018

Cromos da praia neste feriado de Agosto
[Com uma caldeiradinha à maneira, com peixinho de mar, a seguir]





Já o contei: para nós, quando vamos só os dois, estar na praia é sinónimo de caminhar na praia, à beira de água. Se ela estiver apelativa, o programa abrange mergulho e umas braçadas. Se está fria, não nos sacrificamos.

Chegamos, despimo-nos, colocamos protector e, com tudo enfiado numa little mochila, fazemo-nos ao caminho. Mas o esforço também não é excessivo: uma hora e tal. Tenho ideia que hoje foi uma hora e quarenta e cinco minutos.

E, por onde vou passando, para alguma arrelia do meu compagnon de route que gosta de andar com passada certa,  vou observando e fotografando. Claro que sou discreta e embora tenha a sensação de que, se tivesse lata e pedisse autorização para fotogafar de frente e ma dessem, saía de lá com material para toda uma exposição. Tantas e tão curiosas as figuras que descrever em palavras não daria delas a devida imagem. Não o tento sequer. E, como não fotografo de frente e, muitas vezes, nem de frente nem de lado nem de trás, venho com a sensação de que estou a frustrar a minha vontade. Mas, enfim, a vida não é tal e qual a quereríamos e, nem por isso, é menos boa.

Bem. Estavam vinte e tal graus, uma aragem fresquita que tornava muito agradável passear. A água é que estava gelada. Ainda tentei enfiar-me nela mas está quieto, não consegui.

Como andamos para além das zonas mais populadas, mal nos começamos a afastar, começam a apararecer os nudistas e aí, sim, aí é que eu faria uns belos bonecos.

Pode ser impressão minha mas há uma significativa maioria, de entre os homens que fazem nudismo, que é gorda; diria mesmo: muito gorda Posso conceber que andem por ali a desfilar a sua nudez para seu belo prazer e não para se exibirem e que, portanto, tanto se lhes dê que os achem feios ou bonitos. Agora que a mim me faz espécie tal indiferença, isso faz. Rabudos, rebolões, por ali andam no maior dos à-vontades. Acontece que há por ali muito o costume de andarem à lamejinha. Andam a rodar o calcanhar a ver se elas aparecem e depois baixam-se para as apanhar. Imagine-se pois a figura, de rabalhão gordalhufozão espetado, os penduricalhos a aparecer por entre as pernas. E depois, embora eu tente não encarar, não posso deixar de ver o que se me oferece ver. A muitos, anafadões como são, o que se vê mal parece um botanito gordo perdido por entre a farta enxúndia. Num dos casos até comentei: 'Com cada miséria...' mas o meu marido não quer que eu olhe e comente, receia que algum perceba e que eu ainda me meta em sarilhos. Mas caraças, não sou cega, não posso deixar de ver.

Depois da zona do nudismo hetero, dos casais, passamos para a secção gay. E aí é um fartote de exibicionismo, de macacada de toda a espécie. Não são as demonstrações de afecto, que isso é normal. É mesmo o desfile de físicos, alguns musculados, depilados no corpo e na cabeça mas com barba na cara, tatuagens, são as corridinhas, as acrobacias, as brincadeirinhas fofas na água. 

Pelo meio passam os e as caminhantes, os atletas que encontramos para lá e depois para cá, muitos com equipamentos de monitorização, os solitários, os que vão passear os caniches, os apanhadores profissionais de lamejinha, os namorados, os casais discretos (creio que nos encaixamos nesta categoria), os que se põem no meio do areal a torrar, os que se instalam confortavelmente em cadeira debaixo de guarda-sol a ler um livro. E coexistem os encalorados e os friorentos, os pacatos e os gabarolas, os que se protegem e os que mais não se poderiam expor. É muito curioso e, como disse, pena não poder ter aqui um exemplar de cada.


Até que chegamos, de novo, perto da zona mais frequentada, onde toda a gente anda vestida, onde há crianças e brincadeiras.


E, à despedida, ainda um olhar para o barquinho que passa, daqueles barquinhos dos pescadores, barquinhos que, certamente, mais logo, levarão as redes carregadas de peixes aos saltos até ao areal mostrando como a arte xávega ainda está bem viva por estas paragens. E aí, as gaivotas que, à altura das fotografias, estavam desaparecidas aparecerão às centenas, sobrevoando as redes, pousando na areia, tentando disputar os peixes que sempre se escapam por entre as malhas.


O meu marido disse, fazendo um ar indignado: O Marcelo terá alguma coisa contra a xávega? Ou contra a Caparica? Deveria explicar-se. Anda por todo o lado e, por algum motivo, aqui nunca veio. Alguém deveria questioná-lo. Não está bem. Em vez de ir directamente das fluviais para a Quinta do Lago e para o Gigi devia era ter vindo aqui misturar-se com o povo.

Concordei. Não está certo.

Mas pronto, a vida é assim mesmo, cheia de injustiças.

Dali ainda fomos so supermercado comprar peixe de mar que eu estava com uma vontade danada de caldeirada. E assim fiz: com tomate bem maduro, pimento encarnado, salsa, louro, uma pitada de orégãos, cebola com fartura, batata doce e o dito peixe (a raia até trazia um grande fígado -- e eu adoro fígado de peixe), tudo regado com azeite e uma pitada de sal (portanto: sem água), saíu dali uma bela e cheirosa caldeiradinha.

Sobrou um pouco, que vai servir para o jantar: o meu marido vai comê-la propriamente dita e eu escorri o caldo, que encheu uma tigela, e vou migar lá para dentro um ovo cozido e um pouco de peixe desfiado e mal posso esperar que acabe o jogo que está a dar na televisão para a ir papar.


segunda-feira, abril 02, 2018

Rente ao mar, entre grandes casas e um grande azul




Já que a reunião familiar foi de véspera, este domingo foi dia de passeio. 

Andámos pela beira do mar e, de tarde, fomos até onde, durante anos, passei férias. Era, então, quando comparado com o que é hoje, terreno quase virgem. No entanto, lembro-me que já na altura se falava de que por ali, por onde passávamos, havia antes casas de pescadores, cabanas. Tenho ideia de ainda ver uma ou outra, mais para a zona sem acessos, lá onde era a praia em que apenas se podia ir de barco.


Andámos por aí também. Onde antes era terra de gente pobre é agora zona de casas de ricos, muito ricos. Casas tão grandes, tão luxuosas. Pensei que mesmo que me saísse o euromilhões não quereria viver num casarão tão imenso, tão difícil de manter. Vi os belos jardins, alguns em socalcos, grandes sebes bem aparadas, grandes relvados -- e pensei que teria que ter jardineiro a tempo inteiro; vi as janelas imensas e as superfícies de vidro que nem janelas seriam mas talvez paredes por onde a luz entre como se os seus habitantes estejam em plena praia -- e pensei que uma empregada sozinha não dava conta de tanta limpeza. Não, casarões assim só com uma empresa a fazer a faxina e famílias enormes e ruidosas lá dentro a darem vida e alegria a tanto espaço; mas não sei como ter liberdade com um bando de empregados à volta. Não, para mim não daria.

Vimos uma casa enorme, mesmo em cima da praia, mas enorme, enorme, e com aspecto de abandonada. Portão escancarado, mato a toda a volta. Custa perceber como se deixa ao abandono uma casa assim, que valerá seguramente para cima de um milhão de euros. Mas a gente nunca sabe as vidas das pessoas e até nem é difícil imaginar que possa faltar a força anímica, a saúde, a vida ou a simples coesão familiar e que, num instante, se deixe vazia e triste uma casa daquele tamanho, toda em cima da praia. 


Tive alguma dificuldade em reconhecer onde eram os caminhos que antes percorríamos até alcançarmos a zona que preferíamos, abrigada de vento, sem fundões nem correntes. Desapareceram esses caminhos entre giestas e mimosas, agora ruas alcatroadas para onde dão os grandes portões das ricas mansardas.

Mas, belos e ricos casarios à parte, são tão bonitos todos estes lugares da beira do mar, onde céu e oceano e rio se diluem e em que até as serras ao longe se dissolvem em azul.


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quarta-feira, março 28, 2018

Cabelos, nails e facebook





Andava para ir dar um jeito no cabelo há que tempos. Como a vida tem estado por conta própria sem que eu consiga fazer o que quero ou preciso e, ultimamente, sempre, a levar-me, arrastada pelas circunstâncias, não dava. O cabelo desordenado e eu sem conseguir um tempo para cuidar dele. Sem problema. Fui fazendo o que sempre faço: da mesma forma que corto o cabelo que resta ao meu marido, corto também o meu. Volta e meia, chegava a casa e, num acto de exorcismo, ia buscar a tesoura grande da costura e, em frente do espelho, lá vai disto. Como o cabelo é basto e como gosto de me ver com ele a atirar para o despenteado, a perfeição é desnecessária.

Mas já estava a ficar um bocado fora de controlo, nem curto nem comprido, nem a direito nem escadeado. No outro dia, afoitei-me e marquei hora para um tempo depois. Mas, depois de ter marcado, o meu marido chamou-me a atenção: era a pior hora e o pior dia possível. De facto. Parece que até fico com dificuldade em organizar capazmente os meus tempos supostamente livres. Então, no sábado passado, havendo vaga já para o fim da tarde e a precisar mesmo de tirar um valente peso de cima, lá fui.


Na estação de serviço tinha comprado o Expresso para ler o artigo sobre a Agustina e, portanto, ao contrário das outras vezes, não me atirei logo às Caras, Nova Gentes ou VIP's. 

No entanto, frequentando tão raramente estes microcosmos, é sempre com grande admiração que ouço as conversas que me cercam pelo que atenção, atenção ao artigo, só o dediquei mesmo nessa noite. Ali, discretamente, fui assistindo ao que se ia passando.

A cabeleireira, a irmã que a ajuda (e que também se ocupa de estética) e mais a bela jovem que se ocupa das nails são a tripulação deste pequeno salão de bairro. Conhecem as clientes todas e, do que percebo, têm relação de amizade com grande parte delas. Terão uns trinta e tal ou quarenta e poucos anos, elas duas, e dá ideia que todas as colegas de escola ou vizinhas ali vão. Tratam-se quase todas por tu e referem maridos, filhos e amigos pelo nome e constato que a familiaridade parece ser grande. De vez em quando, a mãe delas entra e, silenciosamente, vai buscar vassoura e pá e varre o chão do pequeno espaço. Outras vezes, leva pão para a filha-cabeleireira que trabalha de pé horas a fio. Depois senta-se numa qualquer cadeira que esteja vazia e fica em silêncio ouvindo as conversas que por ali giram. Ouvi uma das clientes a conversar baixinho com as duas irmãs sobre o tempo que leva a processar o subsídio e que, mesmo não sendo muito, sempre é uma ajuda; e que ia informar-se sobre a data em que iam pagar. As irmãs agradeceram. No meio da conversa, pareceu-me ouvir falar em funeral e ocorreu-me que talvez o pai tenha morrido e que a silenciosa senhora esteja viúva. Mas pode não ser nada disso, não consegui apanhar a conversa toda.

Mas o que aqui me traz é outra coisa.


Na véspera à noite eu tinha aqui escrito sobre o facebook, sobre os riscos para a democracia e para a saúde política dos países por haver uma tão potente plataforma tecnológica completamente desregulada ao dispor de milhões e milhões de pessoas incautas, mal informadas, desprotegidas.

Pois bem. Durante todo o tempo que ali estive o facebook veio inúmeras vezes à baila. Completamente alheadas de todas as polémicas em torno dos escândalos que começam a vir a lume (a ponta do iceberg), elas falavam descontraidamente da utilização que fazem do facebook. Uma cliente mostrava imagens de outras no facebook. A cabeleireira dizia que estava a perceber qual o corte que ela queria mas que aquelas das fotografias tinham muito menos cabelo que ela. Ela então mostrava uma fotografia sua numa festa qualquer, para mostrar um penteado que tinha feito para a ocasião e que lhe tinha ficado muito bem. As outras pasmavam: 'Mas és tu?'. Ela, orgulhosa, que sim, que também tinha uma maquilhagem diferente. E mostrava outras fotografias suas. O telemóvel passava de mão em mão, todas pasmadas com a beldade que ali se mostrava. Eu, que não vi as fotografias e apenas a ela, ao vivo, não consegui imaginar qual a transformação que estava a deixar a assistência tão rendida.

Depois foi a vez da irmã esteticista: confirmou as maravilhas da maquilhagem também mostrando fotografias suas no fim do ano. E as clientes igualmente se espantavam. E ela, sentindo-se uma estrela, mostrava o vestido, o cabelo, o colar, a maquilhagem. Provavelmente selfies. E facebook para aqui, facebook para acolá. E todas sorriam, sentindo-se socialites, vampes, vip's.


Entretanto, a menina das nails, que estava desmaquilhada, dizia que no facebook nunca se punha assim como era, 'deslavada'. E mostrava. As outras já conheciam mas riam, diziam que ninguém diria que eram a mesma pessoa. Ela confirmava: só se punha nas fotografias do facebook com grandes e espessas pestanas e lábios pintados. E facebook e mais facebook e sorrisos e mais sorrisos. A sua cliente, para escolher a decoração das unhas, também consultava fotografias no facebook e hesitava: corte quadrado, corte em bico, corte bailarina. E todas iguais e apenas a do anelar diferente ou todas em bicolor ou com desenhos ou com purpurinas? O telemóvel circulava entre algumas e cada uma opinava, rindo-se de algumas decorações como se fossem pirosas. 
Nessa altura, escondi as minhas -- curtas, básicas, apenas com um brilho transparente -- por entre as folhas do Expresso. Dir-se-ia que eu, naqueles preparos, as unhas nuas, tinha saído de um outro tempo.
Pensei: se eu agora abrisse a boca e dissesse que o facebook é uma treta, que os algoritmos manipulam as pessoas, que os seus dados podem ser usados para lhes conhecerem os gostos a ponto de as conseguir levar a votar num inimigo do país, iriam olhar-me como se eu fosse uma maluca fugida do manicómio. 

Por vezes, o banho de realidade tira as peneiras a quem se acha bem informado e se julga capaz de ver ao longe. Mas de que serve ver ao longe quando não se vê ao perto?
Qual o valor da liberdade se não se puder mostrar a selfie embonecada às amigas...? De que serve uma democracia esclarecida e transparente se não existir a montra que permite todos os deslumbramentos?
Não é?


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[Foi aqui que a civilização nos trouxe? Como foi que isto aconteceu?]

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Sobre as quatro primeiras fotografias (que vi no Bored Panda): 
One of those magical objects that caught Ylinampa‘s eye was a lovely Kotisaari island in Rovaniemi, that used to be a traditional stronghold of the Lumberjacks in Kemijoki. Floating in the scenic Kemi river, it became just the right place to fulfil photographer’s wish to capture the changing beauty of nature. He documented the island from a drone through all four seasons, which resulted in four really different but mesmerizing pictures of this wonderful piece of land

A última mostra Christina Aguilera que, para uma sessão fotográfica para a Paper Magazine, se mostrou sem maquilhagem, ficando irreconhecível.


Lá em cima Marlon Williams interpreta 'Arahura'


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segunda-feira, março 26, 2018

O caminho para o amor




Eu não sei qual o caminho para o amor. Nem sei ensinar ninguém sobre nada. Nem sei qual o maior ou o melhor amor, para falar sobre ele. Conheço muitos amores e todos são grandes, bons. 

Nunca procurei o amor, nunca inventei caminhos para lá chegar. Os caminhos vieram até mim ou nasceram de mim. Por isso, não sei ensinar a procurar ou a persistir nos caminhos do amor. Falta-me muita experiência na vida (mas de alguma passo bem sem ela). 

O que sei, e é certamente curto este meu saber, é que a vida é boa se vivida com amores ou memórias de amores ou sonhos de amores. 

Há a realização profissional, há a plenitude que vem com o sucesso político, há a satisfação intelectual, há o prazer estético. E haverá mais. Certamente, muito mais. E são importantes, sei que são.

Mas, e agora falo por mim, nada tem sentido se vivermos esses momentos de motivação ou realização com o coração seco. Nem sempre a vida abençoará toda a gente mas a ausência de emoção e sentimento é sempre temporária e, se o coração ainda bate, haverá a recordação ou o desejo dos ternos momentos de partilha e amor e isso é também boa companhia.

E depois. E depois há o que vive apenas dentro de nós. Por exemplo. Um momento na vida de uma pessoa, um único momento, pode ser uma tão luminosa e fértil semente que alimente de amor o resto da sua vida. E pode ser que essa semente seja, a um tempo, a fonte de uma inesgotável e doce memória e também a fonte de mil esperanças, de loucos e ardentes sonhos. 

Mas não sei dar lições. 

Sei pouco e o que sei é coisa cá minha. Sobre a mesma coisa podem os outros ter entendimento diferente e não discuto qual o mais certo. Posso apenas dar o meu testemunho. 

E o meu testemunho é este: agarro, com alegria e agradecimento, o que de bom a vida me dá. Conheço quem queira sempre mais e queira sempre diferente, assim passando a vida numa demanda pelo que não têm. Eu não. Eu vejo o lado bom e festejo-o. E se a vida me dá coisa que me inquiete ou desagrade, eu tento superar e tento encontrar uma explicação fácil, que me sirva de consolo, e arranjar força para seguir em frente.

Este domingo estive com o meu pai, tão, tão débil, tão ausente.

Estive com a minha mãe, forte, lutadora, frágil, alegre, jovem.

Estive com os meus queridos e tão amados filhos, sempre de coração aberto, sempre bem dispostos, um sorriso feliz na maneira de ser. Estive com aqueles que os seus corações escolheram.

Estive com os meus cinco pimentinhas, amores redobrados e totalmente incondicionais, sempre tão alegres, eles, ruidosos, irrequietos, brincalhões.


E estive com aquele que o meu coração ama. E com aqueles que recordo com amor e que sempre me acompanharão.  

Não sei tecer mais considerações ou dar lições. Sei só o que sinto e que os meus caminhos e os daqueles que amo estão entrelaçados com leveza, com inteireza, sem grandes palavras, sem grandes explicações.

E o meu coração sente-se agradecido.

Julia Prinsep Jackson, mais tarde Julia Stephen, sobrinha e modelo preferida de Cameron (e mãe de Virginia Woolf)

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As fotografias são da autoria de uma mulher fotógrafa, Julia Margaret Cameron (1815 - 1879)

Lá em cima Marlon Williams interpreta Make Way For Love

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sexta-feira, março 23, 2018

As desculpas de Zuckerberg e as promessas de que vai corrigir o que esteve na origem do brutal fuga de informação do Facebook, deixa-te mais descansada, ó Sta UJM, e vais, finalmente, abrir uma conta no Facebook....?


É o vais...!

Explico.

Não é possível garantir que não volta a acontecer porque já aconteceu, certamente, muito mais vezes e porque, de facto, de facto, não é possível garantir que vão corrigir o que quer que seja ou que não se forjarão novos buracos por onde os dados poderão vazar sabe-se lá para onde. E não será apenas com os bandidos do Cambridge Analytica mas com muitas, muitas outras empresas.

Como diz Steve Bannon: “Facebook data is for sale all over the world”.


É da própria natureza do Facebook: é um repositório de informação alimentado por quem lá a põe indiscriminadamente (e, por informação, leia-se: o que se escreve, as fotografias ou filmes que se partilham, os likes, etc) e é um modelo de negócio que consiste em vender publicidade e espaço para as empresas lá colocarem apps, anúncios, etc. E tudo o que lá se põe pode ser visto por gente e gente e mais gente e mais gente. E as próprias apps podem, elas próprias, ser portas de passagem para os dados ou buracos disfarçados ou armadilhas. E a larga escala a que tudo se passa e a forma aberta como tudo funciona torma tudo isto literalmente impossível de agarrar. 

Admito que provavelmente as pessoas mais incautas acham que o que estão a colocar nos seus perfis ou murais de facebook está a salvo -- ou porque dizem que é só para os amigos verem ou porque acham que é qualquer coisa que está apenas nos seus computadores. Não. Na verdade, estão a pôr essa informação em computadores da empresa Facebook, computadores que estão algures, geridos por uma rapaziada aventureira e ondem correm programas (e algoritmos) engendrados também por rapaziada que gosta de experimentar cenas.


Relembro que Mark Zuckerberg é o mesmo menino que, quando estava a começar a sua aventura facebookiana, disse: "I have over 4,000 emails, pictures, addresses, SNS. People just submitted it. They "trust me". Dumb fucks." Dum fucks - ou seja, em linguagem mais de salão, os 'totós' que lhe entregam toda a informação, mesmo a privada, sem ele ter que pedir nada. Assim falava ele dos incautos que abriam conta no Facebok.


E é que é tudo em tão vasta dimensão e cresce tão exponencialmente que o seu controlo é materialmente impossível. Ao estar aberta a milhões e milhões de utilizadores mal informados ou a apps que podem conter código malicioso, o Facebook não pode garantir o que quer que seja.

Sabem os meus Leitores que as minhas reservas e os meus cuidados sobre o Facebook são de sempre. Por isso o que se está a passar não me deixa admirada. O que está a acontecer é apenas o óbvio. 

E o que me preocupa não são os malefícios individuais de quem se vê alvo de intrigas por parte de 'amigos' ou de quem se vê objecto de perfis falsos ou de saber que fotografias suas são usadas por terceiros não autorizados. Isso é aborrecido mas é a pequena história. Também não me preocupa a distorção de comportamentos que leva as pessoas a tornarem-se exibicionistas, expondo ao mundo o que vestem, o que comem, o que vêem, o que dizem a toda a hora, tirando selfies compulsivamente. Isso perturba-me um bocado mas é um mal menor. O que me preocupa é o grande mal.

O conhecimento exaustivo de dados de populações inteiras permite, a quem o queira, fazer o que quiser com essa informação. Para já é sabido que conseguiram manipular a população de um país a votar o Brexit ou, noutros, a votar nos alarves que quiseram.

O que temo são, pois, os atentados descontrolados à democracia -- e digo 'descontrolados' porque são situações obscuras a que as instituições normais (políticas, judiciais) não conseguem aceder ou monitorizar ou evitar ou, sequer, perceber.

E não me refiro (apenas) ao facto de os partidos (e logo os parlamentos) ou as magistraduras e demais instituições dos regimes democráticos estarem infestadas de gente de quinta categoria, gente cada vez mais medíocres, mais impreparada e que, por via da sua deficiente escolaridade e experiência de vida, cai em qualquer esparrela e são pouco mais do que verbos de encher.

Anunciam-se agora inquéritos, possíveis coimas, campanhas para se apagarem as contas. Não chega.

Estamos perante potentes plataformas tecnológicas que são um risco real, especialmente quando o mundo não está preparado para saber regular monstros desta dimensão e natureza.

Estamos agora debaixo de outra polémica com as tarifas decretadas por Trump contra as importações de bens oriundos da China -- e qualquer dia podem ser sanções contra as importações da UE ou pode ele decretar guerra a um país qualquer ou pode fazer mil outras coisas que façam tremer os alicerces dos frágeis equilíbrios internacionais. E, como pano de fundo a tudo isto, teremos sempre as redes sociais, prontas a difundir notícias inventadas ou a alardear factos forjados ou a manipular opiniões públicas. 

E isto não é ficção ou futurismo. Isto é a realidade. Uma realidade perigosa.

Não sei no que vão dar todos os inquéritos e investigações que estão a ser postos em marcha mas eu não tenho dúvidas de qual a medida que a democracia e o direito a uma liberdade esclarecida e responsável deveriam impor: o fim do Facebook.


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As imagens são da autoria de  Gerhard Haderer e estão aqui apenas porque lhes acho imensa piada e colocá-las aqui no meio do que escrevi parece-me tão boa opção como outra qualquer.

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Por mera curiosidade (e não para ilustrar o que acabei de escrever):

os Williams, Lucinda e Marlon, falam do Facebook.


Já agora, para quem não sabe quem é Marlon Williams, para que este post tenha uma coisa boa, aqui fica um vídeo que mostra quem ele é. E aviso desde já: gosto dele que me farto.



Já agora, um vídeo também com a Lucinda Williams.


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