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quarta-feira, dezembro 02, 2020

Labirintos





Isto de estar nas lojas o mínimo de tempo possível e de não provar nada, dá nisto. No outro dia, foi já em casa que provei uma coisa que era para oferecer e outra para mim. A minha estava justa demais e a outra notoriamente não entraria já que é um modelo destituído de elasticidade. Por isso, hoje tivemos que lá voltar. E como havia outros presentes para comprar, tratava-se de tudo ao mesmo tempo. 

Enquanto lá andávamos, sentia o telemóvel a estremecer e a piar-me no bolso. Quando consegui, espreitei: eram os membros do grupo da família e mandarem mensagens uns aos outros, dum lado uns faziam caminhadas no bosque, do outro os meninos trepavam às árvores. Numa das últimas, o mais velho estava bem lá para cima numa árvore gigante. Na outra, havia um mapa com a localização de por onde andavam. Passado um bocado, voltei a espreitar. A minha filha dizia 'Va la que nao revelaram os presentes de natal ehehe'. Não percebi, voltei a guardar o telemóvel no bolso, pensei que era coisa lá deles. Mas, quando estava na fila para pagar, pensei: 'espera lá, mas se eles andam a passear e nós é que andamos às compras, querem lá ver que aquilo é mesmo para nós?'. Voltei a ver. Aquilo era ela a comentar qualquer coisa. Ocupada, farta de andar naquilo e, sobretudo, a morrer de calor (é só a mim que a máscara faz subir a temperatura do corpo todo?), não percebi o que era. Até que reparei que, mais acima, estava uma gravação. Ouvi e ia-me caindo tudo. Era eu e o meu marido a conversarmos: ele a perguntar se íamos primeiro fazer as trocas, eu a dizer que não, que era tudo no mesmo sítio, eu a perguntar onde é que se levantava o que tínhamos que levantar. Desliguei, estarrecida. Como é que aquilo tinha acontecido? Caraças. Sem querer carreguei no microfone. Felizmente, não desvendei nenhum segredo nem pronunciei nenhuma palavra imprópria para consumo. Fiquei a pensar se uma coisa destas ou parecida não terá acontecido alguma vez antes com outras pessoas que, por pudor, não me disseram nada.

Aliás, agora que falo nisto, lembrei-me de uma que aconteceu faz anos. Tinha acabado de ser apresentada a um tal cheio de nove horas, cheio de de cerimónias, pessoa, ainda por cima, com uma maneira de ser distante, talvez, até, um pouco acanhada. Durante a reunião, ficámos de obter uma informação e de nos telefonarmos. De tarde, tendo eu conseguido saber o que era pretendido, liguei-lhe. Atendeu, eu disse olá e, acto contínuo, ouvi um sonoro 'F...-se!' e a chamada acabou ali. Fiquei perplexa, em suspenso, o telemóvel na mão. Era então assim que o senhor doutor, pessoa tão importante, atendia as chamadas? Ou, melhor, despachava as pessoas?

Ainda mal refeita, toca o telemóvel. Era ele. Pensei: e agora? Digo alguma coisa? Ou ele vai dizer alguma coisa? Mas não, simpatiquíssimo: 'Peço desculpa, estava a sair do carro, quando ia atender deixei cair o telemóvel.'. E eu, sonsa: 'Ah, não tem problema'. E a conversa prosseguiu. Até hoje nunca lhe falei nisto. Para quê? Só se fosse para nos rirmos os dois. Mas sei que, lá no fundo, haveria de ficar um pouco agastado. Nem tanto pelo que aconteceu pois já me conhece bem, sabe que não estou nem aí para deslizes mas pela mesma razão que eu: e se isto já aconteceu alguma vez e se alguém ouviu o que não devia ouvir?

Mas, enfim, nada de mais. O que foi de mais foi outra coisa. Nestas coisas ando sempre à rédea curta. Cronometrando-me os movimentos, o meu marido decidiu que já não dava tempo de ir a outro sítio senão não conseguiríamos estar em casa à uma. Mas eu, que ando há uns dias a querer arranjar um vaso alto e uma planta que cresça em altura para colocar perto do portão para encobrir os contentores do lixo e dos recicláveis, insisti, insisti, insisti. Que já não dava, que não valia a pena, que viéssemos para casa. Mas não sou de me render tão facilmente. Lá fomos. Mas já não deixaram entrar. Fiquei furiosa e ele vitorioso. Portanto, regressámos sem o vaso e sem a planta. E isso contristou-me. Já me estava a imaginar a tratar do transplante e a estava a imaginar o efeito. 

De tarde, consegui estar um pouco ao sol. Levei a espreguiçadeira para o bocado de relva ao sol, estive a ler. Tirei a blusa, fiquei apenas com o top de alcinhas, o sol suave a deslizar na minha pele, os passarinhos a cantarem e a brincarem por entre a folhagem, e o livro bom. Não é só o saber bem, é também o ser saudável. Depois andei por ali, a cirandar, a fotografar, a sentir a felicidade de ver as árvores e as flores e a, mais simples de todas, a felicidade de de existir.

Fui até à horta. Não sei o que há ali. Parece que há um qualquer microclima: talvez mais morno, mais húmido. Pelo menos é o que se sente. Isso e os cheiros, bons. Ao canto de um canteiro, descobri um jarro. Agora fui ver se o nome é mesmo jarro e descobri que pode ser mas que o nome botanicamente falando, isto é em esperanto botânico, é Zantedeschia aethiopica. Quando o vi, hesitei. Tive vontade de apanhá-lo para o pôr numa jarra a fotografá-lo. Mas, no último momento, tive pena. Uma flor pode ser sacrificada just for the fun of it? Tive dúvidas.

Ao passar pela estufa, senti pena de ainda não lhe ter prestado atenção. É rudimentar, precisa de ser arranjada. Está abandonada e as coisas, tal como a natureza, sentem o abandono. As pessoas também. Tenho que cuidar daquilo que amo, não posso deixar que se sintam abandonados. A ver se amanhã tenho disponibilidade para lá ir, para entrar, para começar a limpar. Mas receio. Sei que se for é para me entregar, para não abandonar mais. E não creio que esteja chegada a hora para isso. 

Também tenho saudades do meu heaven. Estas restrições à movimentação condicionam-nos. Deve estar tudo tão verdinho, o musgo tão fofo e macio. Transformei em bosque um bocado de terra pedregosa e inóspita. Quando toda a gente achava insano aquele meu sonho, eu dizia que haveria de por lá passear à sombra das árvores que estava a plantar. E isso aconteceu. E essa é outra grande felicidade. Se quero sentir felicidade, construo-a. Flor a flor, árvore a árvore, sorriso a sorriso, palavra a palavra.

Gosto de ler sobre jardins. E gosto de ver vídeos sobre pessoas que transforam terra árida em florestas verdejantes que multiplicam a flora e atraem a fauna. Parece-me um milagre e gosto de testemunhar a existência de milagres assim.

E fui ainda ver os livros de Eduardo Lourenço. Aquela estante é daquelas que tem livros que não sei bem como arrumar. Estão ali para uma segunda reflexão. Gostei de relembrar os livros de uma pessoa que sempre admirei. Creio que haverá por cá mais um ou dois livros mas não sei se estarão noutras estantes. Agora estou a ouvir uma entrevista com ele. Fala do que o faz feliz, explica que a felicidade está nas pequenas coisas que estão ao alcance de todos.

É daquelas pessoas que pensa com as mãos na terra e com o olhar acima da multidão -- e com o coração no meio dos homens.  Penso naquela vez, não há muito, em que o vi a atravessar a rua ali mais ou menos em frente à Biblioteca Nacional. Não sei precisar, talvez uns três anos. Ou seriam quatro? Não sei. Parece que esta vida em resguardo me está a esbater as coordenadas temporais. Sei que o vi já frágil. Pensei que, com a idade que tinha, era um aventureiro e um corajoso em andar ali, sozinho, sem apoio, quase parecendo um passarinho hesitante, em dificuldade. Tive vontade de lhe ir dar o braço. Mas não o fiz, claro. As pessoas têm o seu orgulho e há que saber respeitá-lo.

Quando parte uma pessoa boa e inteligente fico a pensar que talvez venha o dia em que quase não subsistam portugueses de lei. Como será, então? Quem nos ajudará com as palavras? Não correremos o risco de ficar encurralados em tristes labirintos?

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Mas, enfim, voltando a florestas, ao milagre da natureza que podemos fazer acontecer 


E um dia feliz!

quinta-feira, abril 26, 2018

Mário Soares anda pelo Jardim a partir deste 25 de Abril


Não fui a manifestações, não participei em eventos de qualquer espécie. Acordei cedo convencida que iríamos dedicar o dia a cortar mato mas, afinal, não sou só eu que tenho o corpo despreparado para grandes labutas rurais. O meu marido também anda com um ombro dorido. Ainda por cima, andar ontem à noite a passear com o bebé ao colo, deixou-o ainda pior. Portanto, mudança de planos. 

Fomos cirandar. Depois de almoço rumámos ao restaurado e recém nomeado Jardim Mário Soares que antes chamávamos de Campo Grande. Por lá tinha andado, umas duas horas antes, Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues, António Costa, Fernando Medina e membros da família Soares.




Durante os anos de estudo, era frequente andar por estas bandas. Alugávamos bicicletas e andávamos por ali e pela Cidade Universitária. Sempre gostei muito de andar de bicicleta e ali havia como. Era também normal jantarmos na Cantina de Farmácia ou da Cidade Universitária e, de caminho, passarmos pelo jardim do Campo Grande.

A minha filha, com quem estive agora a falar, também ainda se lembra de andarmos de barquinho lá no lago. Diz que se lembra do pai a rabujar. E eu lembro-me porquê. Eles não paravam sossegados, tudo aquilo balouçava, eu ria a bandeiras despregadas, e o meu marido, sozinho, tinha que aguentar o barco.


Os barquinhos ainda cá estão. O jardim agora está mais bonito, mais arranjado. Tem agora elevações que dão graça à paisagem, que protegem do vento e isolam do ambiente urbano. É um oásis no meio da cidade e nem se dá pelas ruas circundantes, cheias de carros.


Tem agora também um outro laguinho e já cá andam meninos a tomar banho e a brincar. Sobre a curiosa escultura que está pousada no topo, transcrevo:
Fonte-escultura, que representa uma caricatura, decorrente do desenho cartoonado, executada, em 1992, por Samuel Torres de Carvalho, mais conhecido por Sam, e traduz uma peça única, metálica, resultante de várias formas que ao serem insufladas se transformaram numa só, à semelhança de um balão habilmente manipulado. Localizada na margem do lago do topo Sul do Jardim do Campo Grande foi inaugurada, em 17 de Setembro de 1993, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa.
Escultor - Samul Azavey Torres de Carvalho. Data - 1993. Material - Bronze. Estilo - Figurativo.
 Mesmo na direcção da casa de Mário Soares, mais um apontamento: só é vencido quem desiste de lutar.


Fiquei agradavelmente agradada. Muitos casais jovens com crianças, a andar de bicicleta, a patinar, as zonas de parque infantil cheias, muitos jovens, muita gente. Pensei que, durante anos, quando estava num qualquer outro país, ficava sempre admirada porque, lá, as pessoas andavam na rua, desfrutavam os espaços públicos. A primeira vez que passeei em Hyde Park fiquei espantada: gente a apanhar banhos de sol, deitadas na relva, homens em tronco nu, gente a tocar. Cá ninguém ia para os jardins e esplanadas, era gente maioritariamente encafuada, ensimesmada.


Penso que muito do ambiente opressivo de antes do 25 de Abril perdurou nas mentalidades durante muitos anos depois. 

O tempo que passa, o intercâmbio estudantil do Erasmus, as viagens low costs que facilitam o conhecimento de outras culturas e a multidão de turistas que nos últimos anos têm trazido novas práticas, têm ensinado aos autóctones o gosto pelo convívio, pelo contacto com a natureza, a descontração de se fazer o que apetece desde que não se moleste ninguém.


Um pouco mais à frente, li 'Sempre' e pensei: tomara que, para todos, seja 25 de Abril sempre. E que haja a vontade inquebrantável para defender a democracia e a liberdade sempre.


Como já não ia para aquelas bandas há algum tempo, não sei se alguns dos edificados ou apontamentos escultóricos já ali estão há muito ou se são recentes. O que sei é que gostei. Claro que alguns estão grafitados de forma despropositada mas, nisto como em tanta coisa, penso que há ainda um caminho de aprendizagem a percorrer. 

Penso que os poderes públicos, nomeadamente a nível autárquico, têm uma palavra a dizer. O graffiti pode ser uma arte e penso que se for dado espaço e prestado respeito a quem a pratica passará a haver compreensão de que a sua prática indevida pode ser puro vandalismo.


E, estava eu fotografando, isolada do mundo como sempre me acontece quando toda eu convirjo no que estou a observar, quando ouço o meu marido a chamar-me. 'Olha, ali a atravessar a rua, o Eduardo Lourenço'. Estava parado nos semáforos, esperando que abrisse o verde para peões na direcção talvez da Biblioteca Nacional. Enterneci-me. Comemorando o 25 de Abril, o estóico filósofo, 94 anos, ali estava junto ao jardim que relembra Mário Soares. Um país é feito de muita coisa: da sua história, da sua geografia, das suas gentes, da sua memória, dos seus desígnios mas quem consegue a fusão de todos os aspectos e sabe transformá-los na matriz genética do povo são as pessoas da cultura. Deles somos todos eternos devedores.


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Enquanto escrevia este post e escolhia as fotografias para aqui colocar, estive a ver uma entrevista de Vítor Gonçalves a Conceição Matos e Domingos Abrantes. E o que aconteceu foi que, a maior parte do tempo, parei de escrever para ouvir e ver com atenção o impressioante testemunho deste casal que suportou a tortura da PIDE e que sobreviveu, com inteireza e notável dignidade, para o poder contar. A quem não viu e possa fazê-lo, sugiro que use a box e tente ver o programa. É um testemunho absolutamente extraordinário. Toda a gente devia conhecer o que eram as práticas do regime anterior ao 25 de Abril para que não subsistam dúvidas.

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domingo, maio 28, 2017

Penso coisas tão profundas e sinto-me tão mal
que penso que sou um Intelectual.
E penso coisas tão mal e sinto-me tão profundo
que devo ser o Maior Intelectual do Mundo!





.  1  .

A leitura é uma espécie de celebração mágica. É a maneira de paradoxalmente descobrirmos que a realidade é aquilo que sonhamos e não aquilo que temos entre as mãos. É essa espécie de travessia de continentes. Que não existem. E nos quais reconhecemos aquilo que é mais profundo em nós e que não pode ser dito.


.  2  .

O problema é que os poderes do entretenimentos, sedutores e a exigirem uma entrega cega e sem reservas, são destrutivos. É uma das modalidades da irracionalidade do nosso mundo que não convivem bem com o pensamento, com uma certa distância, uma certa afirmação da autonomia individual, que são aspectos críticos para a literatura. Quando se liga a televisão, um dos emblemas maiores do entretenimento, há três coisas maravilhosas que acabam: o escuro, o silêncio e a solidão. Decisivas substâncias de que se faz a literatura, de que se faz a poesia. Onde está a música do pensamento no meio desse som e fúria sem contemplações a que se chama entretenimento?


.  3  .

A poesia e o romance não exprimem factos ou verdades, mas a possibilidade da verdade. Poesia e romance são o tempo interrogativo, o céu da possibilidade.


Senhor, permite que algo permaneça, 
alguma palavra ou alguma lembrança, 
que alguma coisa possa ter sido 
de outra maneira, 
não digo a morte, nem a vida, 
mas alguma coisa mais insubstancial. 
Se não para que me deste os substantivos e os verbos, 
o medo e a esperança, 
a urze e o salgueiro, 
os meus heróis e os meus livros? 

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Autores das palavras

1. Eduardo Lourenço

2. Luís Quintais

3. Paulo José Miranda

Título e poema no final - Manuel António Pina

[Tudo lido no livro 'Vale a pena?' - conversas com escritores de Inês Fonseca Santos]

Autor da música e das imagens do vídeo

Ketil Bjørnstad – Prelude 13
Fotógrafo – ©Hal Eastman

Fotografias

Minhas, in heaven

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terça-feira, maio 10, 2016

Escrever à mão, desnudar-se


Manuscrito de Agustina


Quando, um dia, um namorado meu quis oferecer-me um livro com os seus poemas e pensou fazer uma edição de autor, eu não quis, achei que isso seria quase como lavar as palavras, tirar-lhes o rasto das suas mãos que as tinham escrito. Pedi que mo oferecesse em folhas escritas à mão.

Ele acedeu e fez ainda melhor que isso. Em papel espesso e caneta de tinta permanente escreveu os poemas e depois encadernou-o, uma bela capa em carneira com as letras cravadas. É um livro muito bonito, uma edição muito especial. Depois disso publicou livros e recebeu prémios mas penso que nenhum será tão valioso como aquele livro tão bonito, tão especial, edição absolutamente única.

Sempre gostei de ver a letra das pessoas.

José Afonso

A minha mãe tem uma letra bonita, elegante, desenhada com precisão e leveza. Mas não admira já que é professora. O meu pai tinha uma letra firme, inclinada para a frente, escrita com pressão, muito regular e apressada. O meu marido agora tem a letra legível e até a acho bonita (dentro do género, claro) mas antes era absolutamente ilegível. A minha filha tem uma letra apressada, regular, equilibrada, espontânea. O meu filho tinha uma letra impossível, inexplicável, tão rápida que era incompreensível (agora não sei como é). Acrescia que, quando escrevia à pressa, dava erros ortográficos absurdos, indesculpáveis. Despachava uma folha em três penadas com uns gatafunhos desesperantes e, se os percebíamos, era de irmos ao tecto com o disparate dos erros. Se escrevia pausadamente não dava erros e a letra lá se conseguia perceber. Um mistério.

Quanto ao conteúdo, os meus filhos escrevem muito bem. Os que por aqui andam há mais tempo talvez se lembrem do que eles (e o meu marido) escreveram sobre mim quando o Um Jeito Manso atingiu o milhão de visitas. Independentemente de me terem deixado divertida e emocionada, orgulhei-me por escreverem bem (embora eu não seja a pessoa mais isenta para o dizer, claro).

Quanto à minha letra, não a sei definir. Apenas sei, porque o meu professor de grafologia o disse, que o meu F revela que sou uma sedutora (e, note-se, disse isso só vendo a letra, sem me ver a mim).  

A minha nora tem a letra quase igual à minha e, por isso, quando escreveu uma folha para eu analisar, não fui capaz, pareceu-me que seria quase a mesma coisa que analisar a minha escrita e isso não sou capaz.

Sophia

Já aqui o disse que fiz um curso de Grafologia, um curso a todos os títulos maravilhoso, com o Professor Alberto Vaz Silva. 

Depois disso, já analisei a escrita de muitas pessoas, umas que conheço e outras que não, nomeadamente Leitores que digitalizaram folhas manuscritas e mas enviaram. Acho que nunca me enganei, pelo menos redondamente.

Passo a vida a ver se descubro pedaços de escrita manual para poder avaliar a personalidade dos seus autores. É surpreendente como a escrita espelha tão bem a maneira de ser da pessoa. Ainda no outro dia vi a forma de escrever e de assinar de uma pessoa que eu devia respeitar e que, agora, não sei como vai tal ser possível.

Outras vezes, quando não percebo bem que tipo de pessoa é alguém, fico a aguardar, sorrateiramente, que algum pedaço de escrita me seja dado apreciar. Tiro logo as teimas.

Eduardo Lourenço

Para complementar os meus conhecimentos, encomendei alguns livros franceses sobre o assunto mas, para mim, como funciona melhor é seguir o guião que aprendi no curso e depois fazer uma apreensão global e discorrer segundo a minha intuição.

Mas fica-me sempre a curiosidade: que relação existe, e tão estreita, entre a maneira de ser e forma como se escreve à mão? A que se deve isso? Porque é que a forma como escrevemos nos desnuda de uma forma tão crua? Haverá como que uma ligação directa entre a nossa mente (seja lá o que isso for) e as nossas mãos que exprimem os nossos pensamentos. preocupações e vontades?

Ernest Hemingway

E é que se pode tentar disfarçar, controlar a letra, mas até isso se nota, que a escrita é forçada. 

Por vezes, ao ler alguns blogues, dou por mim a tentar imaginar a escrita caligráfica dos seus autores. Nuns imagino uma letra miudinha, nervosa, noutros uma letra atrapalhada, incerta, noutros uma letra arejada, solar.

De notar que não tem a ver com ter a letra feia ou bonita mas como a letra se difunde na página (e, por isso, tem que ser numa folha sem linhas ou quadrículas), a dimensão das margens, a orientação do texto na folha e da escrita na linha, o espaço entre palavras ou entre linhas, etc. Cada aspecto tem uma leitura, ou seja, uma interpretação.

Philip Roth

Enfim, um dos muitos assuntos que me intriga e que, portanto, me fascina.

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O que abaixo partilho convosco não tem a ver com isto mas com a caligrafia como arte: um vídeo encantador.

Calligrapher Carol DuBosch


For 50 years, Portland native Carol DuBosch has been perfecting the art of calligraphic script. We recently paid a visit to her home studio to observe the master at work. Watch the video to learn about her craft, her process and what she's working on now.


Para mim isto é um outro mundo. Um dos muitos mundos encantados que desconheço.

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Talvez ainda cá volte (mas não garanto).

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

Eduardo Lourenço lança alerta no Correntes d'Escritas: 'Parece que fomos invadidos por vampiros'. Acrescento eu: cuidado com eles... eles andem aí.





Transcrevo:

Durante a primeira mesa da 15.ª edição do Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim, Eduardo Lourenço disse: «Dá a impressão de que, de repente, fomos invadidos, não por uns castelhanos arcaicos nossos vizinhos e que são nossos irmãos e primos, mas por uma espécie de vampiros como aqueles que o cinema de Hollywood ilustra. Não é por acaso que o tema dos vampiros se tornou um tema da moda, os vampiros são emissários da morte, é como se estivéssemos a viver uma espécie de apocalipse indireto».


O autor, que disse não acreditar que o tempo desta «espécie de submissão mansa» vá perdurar, ressalvou não querer contribuir para algo como uma «depressão de segundo grau, por conta dos outros».

(...)

«Os vampiros não são tão vampiros como isso, são pessoas reais. São as pessoas que controlam o sistema que a modernidade foi inventando pouco a pouco, com os seus novos meios de produção, que aumentaram efetivamente de maneira fantástica a possibilidade que os homens têm de aceder a um certo número de coisas que são importantes», disse Eduardo Lourenço, já em resposta a questões do público.

O autor declarou que a televisão é hoje «o objeto mais importante», tendo o «espaço público desaparecido», o que deu origem a um momento em que «tudo se passa na televisão, as intervenções dos comentadores na televisão são mais importantes do que a realidade».

Eduardo Lourenço lamentou que a política já não seja uma «política real».
(...)

Assim, o ensaísta, que constatou saber o que é estar «à beira do abismo» por estar próximo do seu próprio, apelou a que se tenha paciência, antes de entrar «enfim na terra da promissão».



*

A música é Dark Vampiric Music - The Last Vampire, de Peter Gundry.

As imagens provêm do blogue We Have Kaos in the Garden.


domingo, julho 29, 2012

A lua que, aqui in heaven, aparece branca e suave quando o céu ainda está azul diurno; as minhas pedras que guardam este templo e os meus livros em férias


Para vos acompanhar na leitura do texto, música, por favor

Dead Combo e Camané - Ouvi o texto muito ao longe

*

Um sábado tranquilíssimo. Sono solto, calor, descanso, leituras, telefonemas, fotografias, culinária (dia de choquinhos cozidos com tinta para o almoço), pequenos passos em volta já que o repouso teve que voltar. É isto o lazer. O verão no campo. 



Hoje de tarde, a lua num céu límpido e, à direita, a minha grande e protectora azinheira


E há a lua que se desenha num céu límpido ainda a noite vem longe. A lua em quarto crescente, boa para nascerem crianças. Quando os meus filhos estavam para nascer eu olhava a lua e, de noite, quando estava lua cheia, levantava a roupa para que o luar os iluminasse, gostava de sentir o luar na minha barriga enorme. Nasceram também no verão, estava muito calor e eu estava muito feliz, adorei estar grávida, adorava senti-los dentro de mim. Durante muito tempo senti saudades desses movimentos largos de quando eles já eram grande e se ajeitavam dentro de mim. Ainda sinto, mas são umas saudades de uma realidade já longínqua. 

Para além desta lua branca, esboçada num céu muito azul, há também as cigarras, os pássaros vagarosos, as lagartixas que se escondem, e há as sombras sobre os muros, e o cheiro de um dia quente, e um cão que ladra lá bem ao longe. 

E há as minhas pedras que eu olho como se fossem habitantes deste local, habitantes com tantos direitos como eu, seres de outros tempos.



As minhas amadas pedras que saíram do interior da terra. Estão trabalhadas pelo tempo.
Olho-as como animais ou seres do início dos tempos, guardiãs deste lugar sagrado


Hoje, de tarde, resolvi juntar os livros que reservei para estas férias, os que ainda tenho para ler ou para completar ou consultar, colocá-los sobre uma pedra para vos mostrar. (E depois vou transcrever, ao acaso, uma pequena passagem de cada um, para vos transmitir um 'cheirinho').



As minhas leituras em férias, aqui sobre uma das grandes pedras assentes no chão cheio de folhas


Reparei que me esqueci de juntar o 'A menina é filha de quem?' da Rita Ferro mas talvez seja porque já o li ou, se não é por isso, que venha o Freud e explique.

Passo então a dizer quais são:


> 'Memória breve de Ferreira de Castro' de Papiniano Carlos, editora Húmus


E assim Zéquinha foi forçado a rumar para o interior da Amazónia.

Aqui no Seringal Paraíso, na margem do rio Madeira, consumiu a adolescência em duros trabalhos, miséria, imensa fome, abjecta escravidão. E ainda um medo medonho das flechas envenenadas, mortais, dos índios Parintintins.

Aqui passou, suportou, três anos que jamais esqueceria.

E regressou a Belém do Pará, onde foi empregado de armazém, colador de cartazes, moço de bordo num barco de cabotagem.

*

> 'A praia' de Cesare Pavese, editora Ulisseia, tradução do italiano por Ana Tomás


Mirei-o pelo canto do olho, com má vontade e curiosidade. Berti é daqueles que vão à escola porque os mandam e, quando falamos observam a nossa boca com olhos intumescidos e entediados. Naquele momento, nu e bronzeado, abraçava os joelhos e sorria, inquieto. Veio-me à cabeça a possibilidade de serem, porventura, estes os rapazes mais perspicazes.

*

> 'O retorno' de Dulce Maria Cardoso, editora Tinta da China


O avião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que ele diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos.

*

> 'Caderno de memórias coloniais' de Isabela Figueiredo, editora Angelus Novus


Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais.

Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta.

*

> 'A submissa' de Fiódor Dostoievski, editora Arbor Litterae, tradução do russo António Pescada


Sim, aquele rosto meigo tornava-se cada vez mais insolente. Acreditem, eu tornava-me repugnante para ela, isso estudei-o bem. Mas que ela tinha arrebatamentos que a faziam sair de si, disso não havia dúvida. Como era possível, por exemplo, saída de tanta lama e tanta miséria, depois de ter andado a lavar o chão, começar de súbito a troçar da nossa pobreza? Compreendam: não havia pobreza, havia economia, mas naquilo que era preciso até havia luxo, nas roupas por exemplo, na limpeza. Eu sempre pensei, mesmo antes, que a limpeza do homem seduzia a mulher.

*

> 'Crucifixion' da Phaidon



Craigie Aitchison, oil on canvas, 1997-8, private colection


The small dog which appears in this and many others crucifixions by Craigie Aitchison puts one in mind of Psalm 22, the opening words of which are quoted by Christ on the cross. The Psalm continues: ' Dogs have surrounded me; a band of evil men has encircled me, they have pierced my hands and my feet... they divide my garments among them and cast lots of my clothing'

*

> 'A Europa desencantada - para uma mitologia europeia' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva


Construir a Europa por irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme ninguém. Uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade.

*

> 'Tempo da Música, Música do Tempo' de Eduardo Lourenço, editora Gradiva



Beethoven, 3ª Sinfonia, dir. Karajan


Karajan dirigindo a 3ª de Beethoven. Como se a orquestra executasse para ele, médium, foco absorvente das vagas da orquestra, e só seu invisível senhor.

Conduz de olhos fechados, como de cor, vivendo no sentido de Baudelaire a música que nasce simultaneamente dos seus dedos e dos músicos. Espectáculo prodigiosamente romântico como se Beethoven ressuscitasse. Sinfonia Heróica? Je veux bien. É de uma melancolia pavorosamente terna, viagem no labirinto da solitude de um ardente coração, o 2º movimento.

*

> 'Nova reunião, 23 livros de poesia' de Carlos Drummond de Andrade, edições BestBolso


                     O poeta
                     declina de toda responsabilidade
                     na marcha do mundo capitalista
                     e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
                     promete ajudar
                     a destruí-lo
                     como uma pedreira, uma floresta
                     um verme

*

> 'O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor' de Ruy Belo, editora Assírio & Alvim


                      És e renasces como a pura linha do amanhecer
                      e como o sol primeiro és incandescente
                      rosado de repente e logo a pouco
                      e pouco cada vez mais rubro e mais intenso
                      até à amarela gema de ovo que é o sol ao pôr-se
                      Quanto eu não dava deus por sempre te ouvir rir
                      riso tão fresco como tilintar de loiça
                      Não confies em mim mulher mas desconfio haver de amar-te
                      até ao fim do mundo

*

> 'Amor livre e outras histórias' de Ali Smith, editora Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira


Quando estivemos juntas da primeira vez passávamos a vida a ter sexo. A única coisa de que me lembro em relação a esse tempo é que tínhamos sexo, lembro-me como uma névoa de onde ocasionalmente os pormenores emergem com tal precisão que se transformam em farpas, uma névoa de nós duas na cama ou de mim a encostar-me a ti contra o irradiador ou a correr os cortinados da sala da frente ao meio-dia e a voltar para o sofá, tu recostada nele a abrires a camisa, eu a desapertar os botões dos teus jeans da Chelsea Girl. 


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Agora, que estou a acabar de escrever, são quase 3 da manhã e o vento entra pela chaminé da salamandra, fazendo com que a sua porta de ferro bata conforme lá fora ele sopra. Estou ainda a ouvir Beethoven e o som do vento nas árvores e o da porta da salamandra, misturam-se com os acordes da música. Gosto, fica um som agradável, são os sons da minha casa nesta noite ventosa de verão.

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Isto saíu longo (espero que não tenha muitas gralhas porque, dado o adiantado da hora, já não me apetece reler uma coisa tão comprida) e só por despudor vos posso ainda convidar a fazer uma visita ao meu Ginjal e Lisboa. Há algum tempo que o não actualizava. Hoje as minhas palavras movem-se saudosas em torno de um poema de carlos Drummond de Andrade e ao som de Jordi Savall. Se ainda estiverem para me aturar mais um pouco, gostaria de vos ter também por lá.

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E, com isto, daqui a nada é uma bela manhã de domingo.
Espero que seja um bom dia para vocês!

sábado, julho 21, 2012

A passiva mansidão dos portugueses. A maledicente verborreia portuguesa. A inconsequência portuguesa. E, para me distrair disto, convido-vos a verem a minha casa. Sejam bem vindos aqui, in heaven.


Música, por favor

Beethoven - Hélène Grimaud interpreta Sonata ao luar

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Pouco tenho visto televisão, nada de debates, afasto-me das notícias.

No entanto, de vez em quando não posso deixar de ouvir os choros e o desespero de quem vê a sua casa ameaçada pelas chamas ou outras tristezas assim; ou de sentir a perplexidade que sempre sinto quando sei que, uma vez mais, um homem irrompeu num local público, desta vez num cinema, e disparou sangrentamente contra quem ali estava descansado, em paz; ou de saber que José Hermano Saraiva morreu - e, depois, ao passear pela blogosfera, ver que uns louvam, mas outros desprezam e desprezam com um acinte que me causa até um certo enjoo.

Há pouco vi-o, num relance, numa entrevista em sua casa, já muito fraco, e gostei de o ouvir falando do país, referindo que o país estará sempre acima de tudo, como aliás sempre o referiu. A forma como divulgava as muitas pequenas terras de Portugal, elogiando as actividades culturais e económicas, a forma sempre enfática como contava as petites histoires dentro da história dos locais que visitava e das gentes que o povoaram, parece-me estar acima da mediania corrente e isso a mim basta-me. Como é que, tendo acabado de morrer uma figura tão marcante da comunicação e da cultura portuguesa (por questionáveis que fossem algumas das suas afirmações), uma pessoa que tanto amou o país e que tanto trabalhou para o enaltecer, há tanta gente que se compraz a escrever palavras desdenhosas sobre ele? Acho deplorável.


Conheço relativamente bem - de trabalhar desde há vários anos com empresas espanholas de vários tipos e de pontos diferentes de Espanha - o que diferencia a mentalidade portuguesa da mentalidade espanhola.

Os espanhóis, do ponto de vista profissional, não sabem mais, não são mais organizados, não são tecnologicamente mais evoluídos, ou mais cultos ou mais trabalhadores, nem nada disso, do que os portugueses - muito pelo contrário. De forma geral, trabalhar com grande parte das empresas espanholas é um castigo: não planificam, não cumprem, não assumem que não cumprem, dizem uma coisa e fazem o contrário, a seguir não assumem nem que não fizeram nem que disseram o contrário. É aquilo que se diz: de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento. Mas há aspectos em que, geralmente, levam vantagem em relação a nós. Têm brio, têm orgulho, vão em frente de uma forma ou de outra, não se perdem em tretas, estão-se nas tintas para a envolvência da coisa e, pragmaticamente, nem que seja às três pancadas, atiram-se ao que interessa. E conseguem-no. Os portugueses, pelo contrário, descrêem por princípio, invocam insucessos passados e sentem-se, por isso, com direito a estar desmotivados, injustiçados, e desculpam-se com as circunstâncias, ou perdem-se em perfeccionismos deslocados ou desnecessários, ou com discussões em volta da forma, menosprezando o conteúdo e, com isso, acabam por perder o ânimo, acham que não vale a pena, que o sucesso é improvável, desgastam-se nisso, deixam passar a oportunidade. Sabem muito. Lutam e acreditam é pouco.

Isso está bem patente no que se passa nas ruas de Espanha. Foram anunciadas medidas de austeridade em Espanha e, em três tempos, aí está meio mundo na rua, dando o peito às balas. 

Por cá é muita conversa, muita escrita, muita polémica. O Bispo das Forças Armadas fala alto e bom som o que toda a gente pensa e logo um coro de virgens ofendidas vem dizer que é de mais, que, sendo da Igreja não devia falar assim, que não devia ter dito que o governo é corrupto e mais não sei o quê, e, num ápice, aí está toda a gente enredada, numa conversa mole que não interessa nem acrescenta uma vírgula. Se houvesse mais gente como ele e isto não fosse essencialmente um bando de marias amélias que mais não fazem do que brandir argumentos de sacristia, outro galo cantaria. 

A propósito de qualquer coisa, aí está meio mundo armado em sacristão, a benzer-se ou a censurar quem disse, quem fez, quem protestou. O país a ser destruído, sem economia, sem cultura, sem valores, sem futuro, e meio mundo anda enredado em tretas, incapaz sequer de um murro na mesa.

Quem descreve muito bem o espírito acomodado, ancestral, do velho e timorato camponês que existe dentro de grande parte da população portuguesa, é o autor de um dos mais estimulantes lugares da blogosfera, o Kyrie Eleison. Talvez ele tenha razão, talvez parte da explicação para esta inquietante mansidão resida nisso. Mas talvez, a par dessa ruralidade atávica, haja também ainda vestígios,  pastosos, de uma nobreza decadente. É que não há só camponeses, há também quem se ache sempre superior, quem ache que dêem os outros o corpo ao manifesto, quem ache que a si próprio não se exige mais do que assistir da galeria, do que fazer soar uns dichotes indiferentes e pretensamente superiores.

Talvez que essa mescla de provincianismo atrofiante e de presunção improdutiva explique esta inércia doentia dos portugueses.

Não dançam nem saem da pista: um espectáculo deprimente de um país espoliado que não sabe protestar consequentemente.

Por delicadeza vamos deixar-nos morrer. (Mas é que, se fosse por delicadeza, ainda teria alguma graça; mas nem isso é).

*

Portanto, saturada de tanta passividade e desta mansidão que leva a que não se saia das tábuas,  desligo a televisão e, em parte, desligo-me da blogosfera e, estando de férias, longe da cidade,  entrego-me a actividades mais compensadoras.

Estive a ler um livro que me agradou muito, 'Tempo da Música, Música do Tempo' por Eduardo Lourenço, organizado por Barbara Aniello. 

A música que hoje escolhi para nos acompanhar foi-me sugerida durante a leitura. Sobre ela escreveu Eduardo Lourenço em 1955:

"Sonata ao luar. Beethoven escreve aqui a mais chopin[iana] das suas obras e dizemos isto sem fazer de Chopin o 'metron' de Beethoven. Mas por isso mesmo poucas obras servem melhor para descobrir (manifestar) a diferença entre um e outro.

Beethoven quer sempre dizer alguma coisa mesmo quando o que quer dizer diz respeito ao indizível, a esta conversa entre o real e o sonho e o sonho com a noite. Chopin conversa consigo sobre a tristeza, a melancolia da noite mas sem saber onde se dirige. Quem sabe é o seu coração que seus dedos seguem. Em Beethoven o sentimento nunca está só, mesmo aqui onde parece nada mais haver que um rendez-vous do sentimento consigo mesmo."

A música que escolhi para o Ginjal, Música para cordas, percussão e celesta de Béla Bartók, também me foi sugerida após ler as palavras de Eduardo Lourenço: "(...) A sugestão é mediata, de um espaço musical de uma homogeneidade pura e solitária, universo de um tom que se cria avançando toda a sua lei como um triângulo forma um cone. Assimilação com o universo dos grandes espaços da pintura de Giorgio de Chirico. Uma pureza estelar, um vermelho gelado dos confins da tristeza, universo galáctico. Nada existe aí senão uma correspondência extática de formas depuradas, pensamentos de Deus na aurora de um mundo onde o sentimento espera a sua hora de nascimento. (...)"

*

Tirando isso, cozinhei, limpei a casa de teias de aranha e de bichos de conta, varri dentro e um pouco fora; e, porque ainda não estou extraordinariamente ágil, ainda há muito trabalhinho por fazer. Amanhã será.

Para amenizar o esforço, fui-me distraindo, fui fotografando algumas partes da minha casa. É a minha forma de vos acolher aqui, mostrando-vos um pouco do meu espaço.




Galo à janela sobre um banco que era de uma das minhas avós


Gosto muito de galos. Já os pintei de muitas maneiras. Acho que as suas penas coloridas e o seu porte garboso lhes conferem um glamour especial. Por isso, também os tenho aqui, como objectos, em profusão. Uns adquiri-os eu, outros têm-me oferecido.




A chaminé da minha cozinha - Galos, galinhas, mel, um moinho para alfazema trazido de França pela minha filha


Aqui in heaven o meu fogão está sob esta chaminé e isso confere logo um prazer suplementar à actividade culinária. Não é a mesma coisa cozinhar um perfumado estufado debaixo de uma chaminé ou debaixo de um exaustor. Há galos em vários objectos da cozinha mas, para não vos maçar, passo para a sala. Mas, a caminho da sala, no pequeno corredor que a liga à cozinha, mostro-vos mais alguns apontamentos de cor.




Há pratos de barro. É pena porque o que não se vê bem é o mais bonito,
das louças Fortuna Ofícios de Azeitão perto de Palmela e foi a minha mãe que mo ofereceu.
De frente, uma flor em vidro, artesanato urbano, oferta do meu filho
Ao fundo, encostadas à parede, as minhas canadianas felizmente já praticamente inúteis

Entramos, então, na sala que já se antevia pela porta que a ligava à cozinha e sigamos a bicharada.




Aqui, na sala, no chão, temos uma família inteira.
Junto ao galo, à galinha e aos galitos, tenho um tronco de árvore que me parece um torso feminino e,
portanto, foi elevado à categoria de escultura natural


Quem aqui chegue pela primeira vez pode ficar surpreendido com 'cenas' como esta mas logo se habitua pois vai encontrar de tudo em toda a parte e, às tantas, já nada espanta.




Aqui não há galos mas apenas alguns dos meus chapéus.
Devia ter posto o de meio por cima para vos mostrar porque é o que prefiro, um belo chapéu basco.
No chão uma malinha antiga e umas socas todas em madeira
 (creio que vieram dos Picos da Europa mas não juro).


Já agora, antes de sairmos da sala, para ir varrer noutro lado, mostro-vos a parte de cima da lareira. A lareira, que fuma lindamente, foi adquirida, em peças, numa oficina da Serra de Sto António, no Parque Natural de Aires e Candeeiros, terra de gente dos mil ofícios e onde tudo se encontra com grande qualidade. A barra de madeira foi adquirida também pelas mesmas bandas. Acho-a linda, é uma madeira rija, macia, com uns belos veios e, por mestria do senhor que a montou, encaixa na perfeição na lareira e na parede.




Tenho aqui peças de artesanato tradicional e artesanato urbano. Por cima, na parede, uma peça especial,
de muita estimação, que me foi oferecida com muito carinho: um bordado muito antigo
das colchas de Castelo Branco, feito pela falecida mãe da pessoa que me ofereceu,
 ela própria pessoa já de avançada idade.
A moldura é artesanal, em madeira.


Saímos da sala para, com vossa licença, entrarmos numa das casas de banho e, se o faço, é para mostrar uma cadeira de que, num determinado contexto, hoje falei num mail que troquei com uma das leitoras do Um Jeito Manso.



Trata-se de uma cadeira muito antiga que foi restaurada, pintando-a casca de ovo
e dourado, pelos meus pais que, quando se reformaram, descobriram que tinham imenso jeito para
trabalhos deste tipo.
Foi também estofada com um tecido que escolhi para se adequar à barra de azulejo pintada à mão
 em azul (que aqui não se vê) e cujos motivos estão na louça dos toalheiros,
na louça da bancada e noutros apontamentos.
A toalha das mãos é também antiga, era de uma avó do meu marido.
Por cima, não dá bem para perceber, mas é um espelho com moldura em talha dourada


Quando há muitos anos adquirimos a casa, odiei a tijoleira que reveste o chão, odiei mesmo. Pensei que seria a primeira coisa a saltar. Mas, aos poucos, habituei-me. Não é tão amarela como parece nesta última fotografia, é mais como se vê nas da sala, um tom ocre. Agora já gosto, dá um tom luminoso e alegre à casa. Eu que gosto tanto de casas arejadas, cheias de luz, com este chão parece que o sol lhe está sempre a bater. Não apenas não me imagino a ter a trabalheira e a despesa de o substituir, como já não me imagino a ter um chão que escurecesse ou entristecesse a casa.

E é isto. É assim a minha casa aqui in heaven.

*

Hoje, lá no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras voam em volta de um veleiro chamado Ariane, um poema de Miguel Torga. Na música tenho ainda Béla Bartók, tal como acima vos referi. Se tiverem ainda paciência para me continuar a aturar, terei muito gosto em ter-vos por lá.

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E é sábado, um dia que tem tudo para ser um dia feliz. Enjoy it!


domingo, dezembro 18, 2011

Eduardo Lourenço - o eixo Franco-Alemão, o Reino Unido e a Europa; Miguel Esteves Cardoso sobre Portugal, à conversa com Rui Ramos; Jiri Kylian coreografa Black and White; e Cesária Évora e Marisa Monte, cantam que É Doce morrer no Mar


Há pessoas que dá gosto ouvir. Umas porque são lúcidas, uma visão cirúrgica, uma argúcia luminosa, uma leitura a um tempo transversal e profunda do mundo, um verbo claro e directo; outras porque reparam nos pequenos pormenores, porque são deliciosamente caseiras, o amigo divertido que anima o serão com o seu humor de proximidade, um humor inteligente e carinhoso.

Assim são Eduardo Lourenço, o nosso Pessoa 2011, e Miguel Esteves Cardoso, o nosso MEC. Trago-vos hoje as suas palavras.

A seguir trago-vos uma presença assídua aqui no Um Jeito Manso, Jiri Kylian, um coreógrafo que ousa sair da normalidade, coisa que especialmente aprecio. Os seus bailados são sempre inusitados e, pelo menos a mim, levam-me para uma outra dimensão.

Finalmente, despeço-me de Cesária Évora. Uma fotografia cheia de cor e alegria a ilustrar uma vida que sempre perdurará, e a sua bela e quente voz entoa, a par de Marisa Monte, que é doce morrer no mar.













E tenham, meus queridos Amigos e Amigas, um belo domingo!

 

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Eduardo Lourenço, Prémio Pessoa 2011 - o esplendor no caos


Quando fiz o meu curso de Grafologia no Centro Nacional de Cultura, uma das escrita mostrada pelo professor, o Dr. Alberto Vaz da Silva, foi a de Eduardo Lourenço. Uma caligrafia forte, musculada, 'engajada', apaixonada mesmo. Corresponde ao que se conhece da peronalidade do mestre (como não pode deixar de ser - a grafologia não engana, tenho-o comprovado).

Num aparte, confidenciou o Dr. Alberto: "Ele (Eduardo Lourenço) é um homem vigoroso, e apaixonado, nomeadamente com as mulheres. A mulher dele é que o traz de rédea curta..."



Tem graça e acho que deve ser bem verdade.

Mas interessa agora dar aqui um cheirinho da sua inteligente, lúcida, lúcida escrita. Pego num livro seu e transcrevo:

'Se o que está acontecendo no mundo é da ordem da fatalidade natural - do género das cheias do rio Amarelo ou das pestes da Idade Média - ainda nos resta a saída pelo telhado: tentar "pensar" o que, com aparências de irresistível, nos ameaça. Pensemos, pois, a crise, a famigerada crise diagnosticada como inevitável e iminente (...)

As grandes companhias de aviação, que se identificavam com nações e culturas, sucumbem nos braços de companhias rivais e abdicam da sua identidade como meros clubes de segunda divisão. (...) Pode pensar-se que esta vulnerabilidade das empresas e das indústrias mais sofisticadas não difere senão pelo grau de obsolescência dos seus produtos da que já afectava os negócios familiares do ilustre Gaudissart balzaquinao. E que os nossos empresários estão para os invisíveis actores dos mecanismos supranacionais que condicionam a economia mundial como o mísero herói de Balzac estava para os Nucingen do seu tempo.

Na verdade, mudámos de dimensão e de mundo. Os Gaudissart, pequenos ou médios empresários, só têm uma realidade onírica. Não são 'ilustres', nem têm identidade. Mesmo os grandes capitalistas, aqueles que supomos serem ainda 'os donos' das empresas multinacionais, são simples figurantes de um sistema de estrutura estritamente financeiro-comunicacional que, pela primeira vez, funciona como um war game, mas sem precisar de ter, e ainda menos de 'ser', um conglomerado de patrões de direito divino, como na mitologia do antigo discurso anticapitalista. Por isso, é tão difícil mobilizar-se, a nível simbólico e efectivo, contra este 'monstro', que não tem outra regra além da autojustificação em termos de conquista (partes do mercado) que permita ao sistema funcionar. Mesmo que para isso seja necessário retirar do mercado de trabalho a humanidade inteira."


Poderia continuar a transcrever de tão actual que é. Eduardo Lourenço descreveu toda a presente situação avant la lettre - este texto foi escrito em 1996. Ou seja, teve a perspicácia de antever tudo o que a realidade tem vindo a revelar à saciedade. Isto acontece com os pensadores escorreitos, inspirados, dotados.


"Pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados - desde a económica até à da legalidade e da ética - releva ou não, em sentido próprio, do conceito do caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor." (1997)

- Transcrições de 'O Esplendor do Caos' de Eduardo Lourenço, edição Gradiva de 1998.


Prémio justíssimo.
E que bem lhe fica ser Prémio Pessoa. Eduardo Lourenço diz que este prémio é o que faz mais sentido para ele. Claro que é!

Muitos Parabéns!