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sábado, junho 11, 2022

Um dia no campo

 


Por vezes, quando ligo o computador à noite, penso que não vou ser capaz de escrever nada. Hoje é um desses dias. Estou sem força para puxar assunto. Tenho sono.

Uns dias porque as reuniões tiveram que ser muito cedo, outro porque fui, bem cedo, fazer análises, hoje porque o programa de festas assim o exigia, a verdade é que todos os dias fui acumulando défice de descanso.

Na quinta feira, depois de ao fim da tarde ir fazer alguns exames de revisão (e, noc-noc-noc -- três vezes na madeira -- parece que so far so good), fui ao supermercado. Vim de lá tão carregada que nem consegui tirar os sacos do carro. Quilos de carne. Feijão preto. Muito pão. Muita fruta. Sumos. Cebolas. Couscous. Azeitonas. Tremoços. Sei lá. Às tantas nem sei bem calcular as quantidades certas para cada coisa. 

É uma realidade em geometria variável. São muitos e a malta miúda come se não houvesse amanhã. O mais crescido já está bem mais alto que eu. Já começou a dar aquele salto que dão os rapazinhos quando se preparam para virar adolescentes. E todos os dias está maior, mais assertivo, mais divertido.

À saída do supermercado, tinha conseguido enfiar os sacos no carro,  porque não tinha outro remédio mas, ao chegar a casa, quando fui tentar tirá-los, mostraram-se inamovíveis. Tive que chamar o meu marido, pois claro. Depois foi arrumar tudo, parte no frigorífico, parte no saco que haveria de seguir viagem. E esta sexta-feira, logo de manhã, ala moço que se faz tarde, vá de arrumar tudo e ir buscar a minha mãe. De lá seguimos para o campo. Churrasco. Quando chegaram, já eu tinha separado as carnes de frango num tabuleiro, as de porco noutro, as de vaca noutro. Separado e temperado, cada umas de sua maneira. Quando chegaram, o meu filho ateou o fogo e, a seguir, de avental e tudo a preceito, atirou-se ao trabalho. Um cheirinho bom a churrascada, aquele apetite que logo é ateado.

Tínhamos pensado comer cá fora. Montámos duas mesas para complementar os lugares da mesa residente debaixo do telheiro. Mas estava calor e muito insecto. Então, levantámos o arsenal que tinha sido levado para lá e fomos montar arraiais na sala de jantar. O meu marido estava um bocado aborrecido porque o ano passado trocámos de mesa para termos uma maior e afinal a mesa grande continua a não ser solução. Tivemos que montar mais duas. Depois de almoço, quando estávamos na cozinha, disse ao meu marido, que se calhar devíamos ter uma outra mesa grande. Ia-se atirando ao ar. Não percebi aquela reação. Explicou: 'Andaste meses à procura de uma mesa grande e já estás a querer trocá-la por outra?'. Mas não era isso: a nova é para manter, o que eu dizia era uma desmontável maior do que uma das duas desmontáveis. Mas ele não quis ouvir. 

Outra das dificuldades é ter onde colocar todos os tabuleiros da comida. Com a sala (que, por acaso até nem é pequena) com tantas mesas de refeição e, portanto, com menos espaço de circulação, temos que colocar a comida onde qualquer um possa servir-se sem incomodar os restantes. O melhor sítio que arranjei foi uma mesa que está na sala que está dois degraus abaixo, e pôr a mesa mesmo encostada aos degraus. Felizmente, o urso felpudo portou-se como um gentleman: não atacou a comida.

O dia foi uma maravilha. Todos bem dispostos, os meninos muito unidos, sempre a brincarem, a luz muito bonita. Muitas fotografias para ilustrar a boa onda, os bons momentos, os saltos, as brincadeiras, os sorrisos, o sol, as cores.

À tarde, não sei como conseguiram lanchar. Eu não consegui. Mas eles sim. Acho extraordinário. A minha filha nunca foi muito comilona mas o meu filho sempre comeu bem e na adolescência eu ia aumentando a dose a cada semana que passava e era um processo sempre incremental. Mas agora a realidade é uma realidade aumentada. Tenho que multiplicar por muitos esta dúvida. Pensava que só queriam lanchar uns iogurtes e uma fruta e que cachorros só lá para mais tarde. Mas não. Às seis e tal, já estava tudo pronto para um lanche a preceito. Cachorros, batatas fritas e, pronto, vá lá, alguma fruta. Só uns quantos juntaram iogurte. E, todos, é bom de ver, o célebre bolo de cenoura com cobertura de chocolate da bisa.

Quando, ao fim do dia, se foram todos embora, fui arrumar a casa e recolher os pertences: um par de meias debaixo de uma das mesas, um elástico do cabelo, umas havaianas num canto do corredor. No outro dia, dois pares de óculos escuros. 

Depois fomos levar a minha mãe. E depois regressámos. 

Eu cansada. E o que bebi de água ao longo do dia...? Não é que a comida estivesse salgada. Ponho pouco sal. Compenso com as ervas e os outros temperos. Não sei se foi do calor, se do movimento. Mas, mais que eu, o urso felpudo. Durante todo o dia com tanto movimento e tanto barulho, não conseguiu pregar olho, não conseguiu descansar, tão pouco comeu. Chegou, atirou-se para o chão e ainda está no mesmo sítio, ferrado.

E eu, agora, tenho que me ir deitar. Mas, antes, ainda vou à cozinha beber mais um copo de água. Este sábado, que me vai parecer um domingo, vai ser um novo dia. E eu já fiz o pedido: que ninguém me acorde. Please.


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As fotografias pertencem ao conjunto The week in wildlife – in pictures e vêm na companhia de Peter Gabriel com Quiet Steam (thanks K.)
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Desejo-vos um bom sábado

Saúde. Afecto. Paz

terça-feira, junho 19, 2012

A minha horrível transição do liceu para a faculdade


Hoje uma música diferente do registo habitual
(mas recomendo que baixem o volume...)

Peter Gabriel - Don't give up


Eu vinha de um ambiente de festas, tardes dançantes, namoro no horário das aulas, fora do horário, passeios à beira rio, tardes na esplanada, idas ao cinema, idas em grupo à praia. O meu namorado era todo de esquerda, com intervenções públicas de esquerda, uma pessoa ligada às artes, amigo dos artistas mais conhecidos da arte de esquerda (e, na altura, a arte era quase toda de esquerda). Eu não o acompanhava nessas andanças nem era tão engagée pois, na altura, tinha, sobretudo um sentido lúdico da vida. Mas partilhava a preparação das suas intervenções, e tudo aquilo, e toda a minha vida, na altura, era uma festa, uma fantástica e permanente festa.




Já, em tempos, aqui o referi.

Na altura não havia tanta informação como há hoje, nem sei se havia testes vocacionais, nem eu tinha nenhuma vocação bem definida, nem procurei ajuda para me ajudar a decidir. Lembro-me de ter ido com a minha mãe falar com dois amigos dela, uma que era professora, directora de um estabelecimento de ensino e com outro que, na altura era presidente da Câmara (ou que viria a ser, não me lembro se a conversa foi antes ou depois dele ser Presidente da Câmara). Não adiantaram muito, mas ele disse que eu era boa aluna a matemática, que havia um curso versátil, que talvez fosse bom para mim, que facilmente podia ir trabalhar para um banco, uma seguradora, uma empresa. Achei que talvez, mas sem grande convicção.

Na altura o que eu pensava era que gostaria de ser psiquiatra mas, para isso, tinha que tirar medicina o que estava fora de questão já que as doenças e, sobretudo, a morte me incomodavam, para não dizer que me apavoravam. Depois pensei em psicologia mas o curso não tinha, na altura, grande reconhecimento oficial.

Hoje penso que gostaria de ter feito arquitectura mas, na altura, isso não me ocorreu. 

Os cursos que eu achava que davam, geralmente, apenas para leccionar tais como biologia, química, pareciam-me restritivos pois, tinha a ideia de que, quando acabasse o curso, não me quereria ver limitada. E assim fui excluindo. Até que fiquei naquele que fiz, o que o outro tinha sugerido. 




Quando cheguei à faculdade tive um enorme choque. Choque. Choque a sério. Apenas por ser pessoa de não desistir (e porque, se desistisse, não sabia qual a alternativa) não me vim embora.

Foi horrível. Toda aquela gente estava ali apenas para estudar. Os chamados marrões com quem eu nunca me tinha dado no liceu parece que estavam ali todos. Escreviam apontamentos compulsivamente, ficavam numa excitação a colocar dúvidas e mais dúvidas, no fim da aula corriam para junto do professor, para pedir ajuda para coisas do arco da velha, faziam trabalhos em casa, nos intervalos tiravam dúvidas uns com os outros e, no fim, iam todos para casa. Uma coisa inimaginável.

O meu namorado andava noutra faculdade, noutro extremo da cidade, e tinha as suas actividades culturais, e, algum tempo depois, começou a dar aulas.

E eu via-me, de repente, sem os meus amigos que se tinham dispersado por outras faculdades, sem a presença assídua do meu namorado e no meio de gente baça, sisuda, marrona, chata.




Em relação à matéria, eu achava que não percebia nada daquilo, nunca tive paciência para tirar apontamentos, nem conseguia ter uma única dúvida, achava tudo aquilo uma maçadoria. Claro que estudava mas não muito, tanto mais que me começava a convencer que estava a cometer um erro tremendo. Nem aqueles assuntos, nem aqueles estranhos professores, nem aqueles colegas chatos e limitados me pareciam talhados para mim.

Tentava retomar um pouco do meu estilo de vida anterior, queria arranjar companhia para passear, ir ao cinema, ao teatro, ir até à Linha, à praia mas ninguém, ninguém estava nem aí. 

Eu estava a viver lá durante a semana e ao fim de semana ia para casa. Tanto que eu tinha sonhado com aquela liberdade e afinal não encontrava ninguém que a quisesse partilhar comigo.

Um dia, encontrei-me à tarde com a minha mãe e, pela primeira vez, ela viu-me triste, infeliz, com vontade de desistir. Eu via a minha mãe preocupada por me ver assim e tentei manter-me sem chorar mas, mal ela virou costas para ir para casa, eu desatei a chorar. Nunca antes me tinha acontecido nada assim.

Foram uns meses de desenquadramento e aflição, sem saber como lidar com aquele tão grande desapontamento. À medida que o semestre ia avançando, eu ia confirmando que a matéria parecia ser, toda ela, complexa, hermética, inútil, estupidamente incompreensível.





Nunca fui pessoa de estudar muito; nunca, em toda a minha vida, fiz uma directa para estudar. O que percebia à primeira, entrava, ficava. O que tinha que ser lido, relido, treslido e fixado era uma desgraça, não tinha paciência, sempre odiei gastar muito tempo com a mesma coisa, a menos que o faça por prazer. Por isso nunca fui aluna de jeito a história, a geografia, a botânica, a mineralogia. Em contrapartida, a matemática, física, filosofia, português, era muito boa aluna.

Agora ali era matéria a jorros, a jorros mesmo, matéria que era chinês, rodeada de gente que nem queria saber de nada que não apenas estudar e eu não sabia viver assim.

Eu tinha entrado para a faculdade sem ter feito um único exame, com excepção do exame da 4ª classe e da admissão ao liceu que eram obrigatórios. A partir daí dispensei sempre. Não sabia o que era fazer um exame nem escrito, muito menos oral.





Quando começaram as frequências eu pensei que era o fim. Salas enormes cheias de gente, tudo a fazer aquelas provas horrorosas. Pensei que ia chumbar. Pensei que ia passar das dispensas de exame às reprovações.

No entanto, para minha grande surpresa, grande parte daqueles alunos que andavam sempre de volta dos professores e que não faziam mais nada senão estudar e bajular os professores, chumbou e eu, para minha ainda maior surpresa, embora não muito à larga em duas das disciplinas, lá passei e até dispensando da oral a todas. A todas menos a uma. É que, para enorme meu espanto, numa das pautas que estava cheia de Reprovado escritas a encarnado de alto a baixo, vi, à frente do meu nome, um 19 e uma data para prova oral. Pensei que era engano, que se calhar era 9. Fui à secretaria. Informaram-me que não, que era 19 e que tinha que ir defender a nota. Pensei que o professor me iria fazer umas perguntas, se calhar para perceber se eu tinha copiado. Como praticamente não me dava com ninguém, não me informei.





E assim, uns dias depois, sem saber bem ao que ia, sozinha, entrei numa sala cheia de gente, com um júri numa mesa ao fundo e uma cadeira em frente. Estavam à minha espera. Eu tinha andado perdida lá dentro do edifício, sem dar com aquela sala, era a sala nobre. Quando vi aquela gente toda, senti um calafrio. Eu não tinha estudado, ainda não me tinha habituado a estudar, ainda tinha os meus hábitos de festa e boa vida dos tempos de liceu. Lembro-me que, à medida que atravessava a sala cheia de gente e me ia sentar em frente da mesa com três professores, pensava ' Estou feita... Mas o que é isto, senhores...?!?! E agora, como é que saio desta? Bolas para isto...!'.

A partir daí acho que entrei em piloto automático, não faço ideia do que me perguntaram. Mantive o 19 e sei que recebi palmas. Foi esta a minha primeira prova oral. Sozinha. Saí dali sem perceber bem o que me tinha acontecido e sem que ninguém meu conhecido tivesse assistido para me explicar que experiência extra-sensorial tinha sido aquela. Fui sozinha, rua fora; e nada daquilo me soube a coisa alguma.




Mas, por coincidência, a partir daí a minha vida levou uma grande volta. O curso passou para segundo plano, a vida voltou a estar em primeiríssimo lugar. Voltei a ser eu. Até hoje.


*
As fotografias são de Lois Greenfield.

Já agora, e não querendo monopolizar a vossa atenção, gostaria ainda de vos convidar a visitar-me lá no meu Ginjal e Lisboa. A música hoje é linda, Shostakovich. E as minhas palavras emergem junto a um rochedo ao encontro de um belo poema do novíssimo livro de Armando Silva Carvalho, 'De amore'.


E tenham, meus Caros leitores, uma terça feira muito boa, um dia muito feliz!