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sexta-feira, setembro 12, 2025

O palerma dos hambúrgueres, a última sondagem, o brutal ataque à democracia a que se assiste nos Estados Unidos... e etc.

 

Depois de ter escrito o post de ontem sobre os atentados à racionalidade, à justiça, à ética, ao decoro, à verdade (e a tudo o mais que queiram juntar) por parte de muitos militantes do Chega, chegou a notícia de que um ex-dirigente do Chega quer pagar para evitar julgamento por prostituição infantil. Ou seja, quando se julga que é impossível piorar, piora mesmo. 

Depois veio o momento caricato do Ventura -- naquele seu tom indignado, superior --, a vir divulgar que o Chega tinha votado contra a ida de Marcelo ao Festival dos Hambúrgueres, até porque, diz ele, é inadmissível que os impostos dos portugueses sirvam para pagar tamanho disparate. Como já foi amplamente parodiado, confundiu a Festa dos Cidadão com um festival de hambúrgueres. 60 carneiros sentados no nosso Parlamento e que estão a ser pagos com o dinheiro dos nossos impostos votaram com as patas, sem saberem o que estavam a votar.

Tendo sido ridicularizado por todo o lado, o que fez Ventura? Pediu desculpa? Não, senhor. Disse que se tinha enganado mas que a culpa tinha sido do Marcelo por andar sempre a viajar... e atirou com um número absurdo de viagens, dez vezes superior à realidade. Porque diz tantas mentiras? Porque faz tantas acusações disparatadas? Má fé, impreparação, desapego da verdade? Seja o que for, é mau demais.

Mas se a reputação do Ventura e da escumalha que se juntou a ele no Chega deveriam merecer o mais frontal e inequívoco repúdio de toda a população, não entregando um único voto a tal agremiação de marginais, mentirosos, incompetentes, mal-formados... o que se verifica é que uma parte significativa da população votante é igual ou pior a eles pois, segundo a última sondagem, aponta-se para o Chega a liderar as intenções de voto, caso houvesse agora novas legislativas. 

Pasmo com isto. Como é possível? As pessoas estão parvas? Ou, pior que isso, são parvas?

Penso que é tempo de se encarar a realidade: para evitar o descalabro (como o que está a acontecer nos Estados Unidos, um descalabro aterrador), há que entender, por dentro, as razões de tanta gente se rever neste culto, no culto Ventura. Provavelmente há que perceber que maioritariamente é gente que não lê jornais (muito menos livros, claro), que não ouve notícias, que apenas consome o lixo veiculado pelas contas das redes sociais do Chega, gente muito ignorante a quem não vale a pena tentar convencer através de factos, de números ou de gráficos pois, com certeza, nem a tabuada sabe, muito menos sabe interpretar gráficos, gente sem bases morais ou culturais, gente que se sente integrada no meio de um partido de meliantes.

Tudo isto preocupa-me demais.

As redes sociais, no meu caso, o Instagram, tem tido um lado positivo: traz-me o acesso à opinião de muitos senadores e congressistas americanos, de muitos jornalistas, de governadores, de gente da Justiça (alguns dos quais varridos pelo Trump), e o que ouço e vejo é aterrador, como se, num par de meses, todos os checks and balances, tal com os freios e o sistema de emergência do Elevador da Glória, tivessem deixado de servir para o que quer que fosse. Dá ideia que se partiu ou desprendeu o cabo da democracia e, inesperadamente, toda a sociedade americana se vê virada do avesso. 

O impensável passou a ser o quotidiano. A ignorância, a incompetência, o revanchismo, as perseguições gratuitas, a prepotência, a rudeza, a malvadez, a subserviência, tudo o que enoja, tudo isso é o que agora impera. 

E tudo isto perante a incapacidade de reacção dos democratas. Parece que estão anestesiados, sem reação. Aliás, para dizer verdade, nem sei quem é o mais poderoso dos democratas: ainda será Biden? Aquele senhor da Câmara dos Representantes? o líder dos democratas no Senado? A Kamala ainda mexe? O que se passa para estarem tão entorpecidos? Parece que apenas Gavin Newsom estrebucha. Mas não é suficiente. Perante os tremendos riscos há que haver uma força que se levante e defenda a liberdade, a democracia, a ética, a moral.

Mas não há.

E à medida que vou lendo, que vou ouvindo, que vou cruzando informação, mais aterrada fico. Sou radicalmente contra teorias da conspiração. Nada disso faz minimamente o meu género. Sou pela objectividade, não pelas suposições infundadas, pelo diz que diz. Só que, nestes domínios, em especial quando há muita patifaria, muito narcisismo, muita psicopatia e muito poder envolvidos, há um mundo paralelo, subterrâneo, do qual apenas nos vamos apercebendo à medida que alguém repara numa ponta solta, outro alguém a agarra e a puxa, outro se esgueira para ver de onde vem... E, portanto, a única coisa que, em concreto, sei é que, nos Estados Unidos, pouco ou nada sei sobre os mais recentes escândalos, atentados, suicídios, homicídios com contornos políticos. Volta e meia dou por mim a querer estabelecer ligações, relações causais. Mas detenho-me. Não sei o suficiente sobre o que se passa para poder, sequer, raciocinar.

Neste tema do jovem que foi assassinado, Charlie Kirk -- alguém que pregava a favor da violência, do porte de armas, alguém que defendia que era aceitável que todos os anos morressem pessoas assassinadas pois isso justificaria o tema da permissão do uso generalizado das armas, alguém abertamente xenófobo, racista, misógino, alguém que mobilizava fortemente a camada jovem do movimento MAGA, mas que, apesar disso, obviamente merecia viver --, estou em crer, a partir do que tenho lido e ouvido, ao constatar que há quem formule algumas dúvidas sobre alguns factos anómalos que envolvem todo o crime, que muito do que não se sabe talvez possa ser mais importante do que o que se sabe. E essa nebulosa que agora parece envolver tantas coisas naquele imenso país ainda torna tudo mais assustador.

Por isso, por tudo o que se vai sabendo sobre o que está a acontecer nos Estados Unidos (já para não falar de casos mais antigos como a Rússia), penso que deveríamos excomungar todo o populismo, todos os que dividem para reinar, todos os que instilam ódio na sociedade, todos os que não respeitam escrupulosamente a democracia, a liberdade, o respeito pela lei e pelas instituições democráticas. A dúvida é: mas como fazê-lo de forma eficaz? 

Aceitam-se sugestões.

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Nota

Claro que leio todos os vossos comentários, claro que os agradeço, os comentários enriquecem o blog, muitos leitores se calhar têm mais curiosidade em ler os comentários do que o que eu ou o meu marido escrevemos. Mas tenho andado com pouco tempo. E continuo a ter este hábito peregrino de só escrever no blog às quinhentas da noite o que faz com que, quando acabo, esteja com sono. Por exemplo, agora que já passa, e bem, da uma e meia da manhã, ainda quero ver os mails (... e já perdi a conta aos que também não agradeço e a que não respondo...) e ainda quero ir espreitar uma notícia cujo título me intrigou. Por isso, mais uma vez não vou responder ou agradecer os comentários. Por isso, peço as minhas desculpas.

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Desejo-vos uma feliz sexta-feira

quarta-feira, setembro 03, 2025

E não digam que elas não avisaram...


Diziam que estava morto. Vários dias sem aparecer quando toda a gente que se pela por falar aos jornalistas, três conferências de imprensa por dia, e isto numa altura em que as mãos aparecem cheias de derrames (que ele tenta cobrir com base), que se esconde atrás de mesas para ninguém ver os tornozelos inchados a transbordarem dos sapatos. 

Depois, quando apareceu, disseram que os da Segurança andavam a passear o morto. Tornaram-se virais os memes que parodiavam o fim-de-semana com o morto em que o morto era ele, de polo branco, barrigudo, e com aquele boné encarnado ridículo a dizer 'o trump teve razão em tudo'. Depois, quando ele falou mas sem aparecer, disseram que não estava bem, que a voz estava estranha, que mais parecia um tate-bitate a falar, que o mais certo é que tivesse tido um avc. Depois apareceu em pessoa e viu-se que, afinal, não só estava vivo como continuava igual a ele. Vi um pouco: continua repulsivamente megalómano, narcisista, doido varrido. E vingativo e pronto para levar a dele avante, seja lá o que for que lhe passe pela cabeça. 

Os avisos sucedem-se: ele é autoritário, incompetente, ignorante, maníaco, e quer fazer dos Estados Unidos a sua coutada, usar o país em seu próprio benefício. Expulsa e maltrata aqueles que elegeu como inimigos, silencia os que o denunciam, corta financiamentos aos que ousam ter voz própria, despede os que mostram independência. Explicam: foi assim que nasceu o nazismo, foi assim que se espalhou o fascismo. 

Agora meteu na cabeça que ser ser Nobel da Paz e anda a espalhar que já acabou com várias guerras. Começou por falar em quatro, depois passou para seis, agora já vai em sete. Tudo aldrabices sem ponta por onde se lhe peguem. Mais parece um filme cómico, tanto o disparate.

O Putin, então, anda a gozar com ele mas a gozar à cara podre: depois de o tourear no Alasca, agora anda a mostrar que faz dele o que quer e, às claras, mostra quem é a sua turma. Chama a Xi Jinping 'querido amigo' e, na volta, vai dizer o mesmo a Kim Jong-un e aos outros ditadores da grupeta que se juntou em Pequim. Aposto que os amigos do PCP, que tanto defendem Putin e que não conseguem ver porque é que o resto do mundo acha que Kim Jong-u é um ditadorzeco, também gostavam de ter sido convidados. Afinal, sentir-se-iam em casa porque aquilo lá, aquele grupinho de ditadores, é tudo uma maltosa que também abomina a Europa, a democracia, o livre pensamento.

Há muita gente que anda a falar publicamente contra Trump, a denunciar as suas patranhas, as suas jogadas de risco, o seu autoritarismo que não conhece barreiras nem lei. 

Mas hoje trago aqui um grupo de avozinhas que acho o máximo: as extraordinárias Piedmont Raging Grannies. Acho-as o máximo. Quando tendo a cair na desesperança, vejo coisas assim e encho-me, outra vez de esperança. Resistir. Resistir. Resistir. De todas as maneiras.

Tem que se arranjar maneira de furar a tacanhez, a grunhice dos burros do Maga, e, talvez com coisas assim, alguns, sentindo-se gozados, se sintam levemente vacilantes. Não sei. Mas, pela parte que me toca, diverte-me partilhar isto. Tenho a certeza de que no dia em que Trump (e J.D. Vance, esse outro bicho asqueroso que anda danadinho para tomar o lugar do palhaço-mor cor de laranja) caia e os Maga percebam a banhada que é o trumpismo, todos os movimentos populistas que por aí despontam também vão sofrer um revés. O Ventura inflou como inflou alavancado pela vitória de Trump -- é certo que levado ao colo pela Comunicação Social e depois levado em ombros pelo Mentenegro.

Fascist Donald Has a Game  -  Piedmont Raging Grannies


Trump is in the Files  -- Piedmont Raging Grannies

He’s trying everything he can think of to distract from breaking his promise to release the #Epstein files. So, here’s a reminder! 

Vivam as avozinhas! 
-- estas e as de todo o mundo, em especial as que se mantêm vivas, jovens, com a cabeça arejada.

quinta-feira, julho 31, 2025

Este Governo é uma treta -- A palavra ao meu marido --

 

Quando refiro a enorme incapacidade do governo para resolver os problemas do País e a falta de ética com que governa logo vêm os comentadores encartados da direita, seguindo as passadas do chefe-máximo da falta de seriedade democrática (também conhecido por PM), dizer que o pessoal de esquerda "não tem humildade" e que não respeita o voto dos portugueses. 

É claro que os portugueses votaram à direita, mas não será por causa disso que não se devem apontar os erros do governo. O governo não resolveu -- e tinha prometido resoluções milagrosas num curtíssimo prazo --, os problemas da habitação, da saúde, da educação, da justiça e do combate aos incêndios que tanto criticaram no tempo do governo PS. 

Pelo contrário, nestas áreas, os problemas agravaram-se, como já foi aqui várias vezes referido. 

Hoje, por exemplo, com o drama dos incêndios ocorridos nos últimos dias, vi uma notícia na televisão onde o "pintas" do presidente da liga dos bombeiros se reunia com o secretário de estado para falarem sobre a estrutura e os meios de combate aos incêndios. É absolutamente de loucos. Agora que os incêndios alastram no País é que têm estas discussões. Inacreditável -- mas na linha da atuação do governo. Finge que está a resolver os problemas mas, notoriamente, não tem capacidade para antecipar os problemas e para apontar as soluções atempadamente.

A falta de ética do governo, que compara com falta de ética do PM no caso Spinunviva, voltou a atingir o inexplicável patamar já o ano passado alcançado, com a devolução dos valores correspondentes ao 'acerto' de IRS resultante da descida das taxas. O mesmo aconteceu o ano passado. Não se percebe qual o racional que justifica as diminutas taxas dos meses de Agosto e de Setembro, sem relação com as novas taxas a aplicar a partir de Outubro. Mais parece um adiantamento por conta do acerto de IRS a declarar para o ano. Parece-me que só existe um racional possível que se chama comprar votos. 

Pode o governo dizer, olhando-nos olhos, que esta 'benesse' não tem nada a ver com as eleições do início de Outubro? 

Pode dizer que é diferente, no essencial, do que foi feito pelo Musk na campanha do Trump? Como uma pequena mas significativa diferença: o Musk assumiu publicamente que estava a dar dinheiro para esse fim, enquanto o governo finge que está a devolver dinheiro, "esquecendo-se" de referir que o vai recuperar no próximo anos. 

Assim como assim, talvez o descaramento do Musk seja mais transparente. 

Em democracia não deve valer tudo. É por isso que devemos apontar os erros do governo e não ficar manietados porque a malta votou â direita. No tempo da ditadura houve sempre "alguém que disse não" e vimos depois do 25 de Abril que, na generalidade dos casos, eram e são pessoas de grande valor. São um exemplo.

quarta-feira, julho 30, 2025

Beyoncé responde a Trump

 

Como um bicho atordoado, desatinado, descerebrado, sentindo-se acossado -- com revelações sobre o seu envolvimento no escândalo Epstein a rebentarem como pipocas, em todo o lado, a toda a hora --, Trump vira-se para onde calha e atira ao acaso. 

Ultimamente, para além dos disparates habituais e dos insultos e desconsiderações a adversários políticos ou a gente da televisão (Colbert, Kimmel ou Fallon, por exemplo), deu-lhe para lançar acusações sobre Beyoncé e sobre Oprah a propósito do apoio que publicamente deram a Kamala Harris aquando das eleições, pedindo a sua acusação. Imagine-se o nível a que o desvario já chegou.

Mas se alguns engolem em seco e tentam seguir em frente, outros há que, como foi o caso de Colbert, tiraram as luvas e agora é às escâncaras e sem meias palavras, ou como Beyoncé, que, no programa de Colbert,  é vista num vídeo, colagem de vários momentos dos seus clips, que é, todo ele, uma gargalhada na cara do camelo-mor.

Beyoncé responde ao Presidente Trump

Will President Trump succeed in his latest attempt to distract attention from the Jeffrey Epstein scandal?


Que a democracia consiga sobreviver -- nos EUA e em todos os lugares em que é ameaçada

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Dias felizes

segunda-feira, junho 30, 2025

Totalmente de acordo com o combate a sério à evasão fiscal anunciada pelo Governo e totalmente de acordo com o apontado por Vital Moreira

 

Desde que por aqui ando que falo disto: em Portugal, quem paga impostos paga mais do que deve, especialmente quem ganha um pouco acima da média, e isto porque há muita gente que deveria pagar (ou pagar mais do que paga) e não paga.

A partir de certo ponto, a carga fiscal é sentida como um esbulho. Taxar como se fossem milionários pessoas que são classe média  -- e, em vários países europeus, classe média baixa -- é dissuasor para quem pode ir trabalhar para outro país ou para quem pode fugir ao impostos.

A cena do IRS jovem é falaciosa, creio que até absurda. Qual é o jovem que opta por Portugal porque até aos 35 anos tem IRS baixo, sabendo que, quando fizer 36, o fisco lhe vai cair em cima? Nenhum. Se o tema for impostos, ele vai olhar para o que vai descontar à medida que progredir profissionalmente e aí vai ver que em Portugal se impede que alguém ganhe um pouco mais, pois metade do que ganha vai direitinha para impostos e contribuições. 

Isto do lado do que é preciso fazer na redução de impostos como arma de combate à evasão fiscal.

Mas depois há os casos especiais que igualmente carecem de combate.

O caso de que já aqui falei inúmeras vezes das personalidade coletiva (pseudoempresas unipessoais ou familiares) como expediente de fuga ao fisco, em que incorre um bom número de profissionais liberais (advogados, médicos, etc.) é para mim chocante e, num primeiro momento, eu incidiria muito claramente nesta vertente. Claro que muitos deputados, provavelmente muitos governantes (antes de estarem no Governo -- espera-se) recorrem a essa habilidade pelo que terão o rabo mais que preso e, portanto, motivação nula para irem atrás disso.

Mas, reconheça-se que, se a legislação o permite e se a alternativa é deixar ficar uma parcela enorme de rendimentos na mão do Estado, a tentação pode ser quase inescapável. 

Por isso, ao mesmo tempo que se vá atrás disso, volto a dizer: baixem-se os impostos, baixem-se de forma palpável, reduzam-se os escalões, torne-se tudo mais aceitável.

Já aqui falei que tenho muitos amigos médicos e os que já atingiram a idade da reforma e têm gosto por continuar a exercer apenas trabalham um ou dois dias por semana pois dizem que mais que isso é para ser comido pelos impostos. Portanto, os que não têm a dita empresazinha para ser encharcada de custos e para fugir ao fisco, fazem a optimização fiscal não trabalhando. Isto, numa altura em que a escassez de médicos é brutal. E isto é um exemplo pois cada um tem os seus motivos e argumentos para estar revoltado com o esbulho fiscal a que é sujeito.

Outra situação é a dos senhorios e da "enorme percentagem de arrendamentos não declarados". O que não falta são as situações de arrendamentos 'por fora' ou 'por baixo da mesa'. Só não digo que conheço vários casos em que assim é para não me virem pedir que os denuncie. Os senhorios põem as suas casas ao dispor de pessoas que não conhecem, pessoas que lhes podem trazer problemas, os senhorios têm que fazer a manutenção das casas, têm que pagar IMI, têm que pagar o seguro da casa, têm que pagar o condomínio, e, no fim, têm que pagar um imposto que é francamente dissuasor. Conheço pessoas que preferem ter uma trabalheira a manter casas antigas a que não dão uso apenas porque acham que não lhes 'compensa' se forem pagar os impostos mas não querem entrar numa situação irregular. Por isso, optam por não arrendar as casas. Com a falta de casas que há, para além de serem precisas mais casas, em especial casas para os muito pobres e para os 'remediados', habitação social, portanto, da responsabilidade do Estado, há que conseguir pôr no mercado mais casas para a classe média. E a maneira sensata será baixar os impostos sobre as rendas, mas baixá-los consideravelmente, e, em simultâneo, criar incentivos fiscais para os inquilinos que declarem as rendas através de contratos registados nas Finanças. Só assim se incentivará os senhorios a arrendarem casas a que hoje pouco ou nenhum uso deem e, ao mesmo tempo, se incentivará a que declarem fiscalmente os contratos.

O caso "do setor dos restaurantes, bares e estabelecimentos similares, onde é percetivel uma elevada evasão", também referido por Vital Moreira, é outro que merece destaque. O número de vezes em que vou a uma churrasqueira buscar frango assado ou a uma pizzaria ou a um qualquer restaurante em que, ao pagar, me dão o ticket do pagamento e o ticket da 'registadora' (no qual está escrito que é para conferência e não substitui a fatura) é impossível de quantificar. Quanto peço a fatura, até ficam a olhar para mim como se fosse uma excêntrica: 'Ah quer...?'. Confesso que nos locais de maior afluência em que, mal me despacham, se viram para atender o seguinte, até para não atrapalhar a cadência, acabo por deixar passar. Mas é indecente, é escandaloso. Impunidade total. Isto já para não falar que em muitos destes sítios só aceitam pagamento em dinheiro, ou seja, nem fica rasto. A AT não deveria regularmente andar em cima destes estabelecimentos? Deveria, deveria. Muitos impostos deveriam ser colectados se houvesse auditorias ad hoc, ie, de surpresa.

É que por haver tanta, tanta, tanta gente a não pagar impostos ou a pagar muito menos do que devia, andam outros, os que gostam de fazer as coisas by the book, a pagar muito mais do que seria razoável.

Portanto, apoio completamente que o Governo crie medidas efectivas, fáceis de implementar e de controlar para combater a evasão fiscal. E apoio que se simplifiquem as regras fiscais e se baixem os impostos. No caso do IRS, defendo que se reduza, pelo menos para metade, o número de escalões e que se reduza significativamente as respectivas taxas. 

No caso da habitação, como forma de alavancar a oferta de casas para arrendamento, que se baixem capazmente os impostos na tributação autónoma e se criem incentivos aos inquilinos que tenham recibos emitidos pelas Finanças.

Tal como nos malfadados tempos da troika ataquei ferozmente a política de austeridade porque asfixiou a economia e empobreceu as pessoas e o País, agora continuo a defender que a economia precisa de liquidez para se movimentar e para crescer. Libertar mais rendimento (por redução da carga fiscal) só aparentemente empobrece os cofres do Estado pois, havendo mais liquidez circulante, há mais consumo, há mais investimento, há mais emprego, há mais poupança. E, em qualquer dessas vertentes, incidirão os impostos, fazendo com que a colecta se fortaleça (não por via das taxas mas da base sobre a qual se aplicam).

Sei bem que haverá quem diga que lá está a minha costela liberal a manifestar-se. É verdade. Tenho uma costela liberal, já o disse muitas vezes. Liberal (qb) na economia e liberal (qb) nos costumes sociais. Quando disse há tempos que se o Partido Socialista não souber reinventar-se e trazer de novo para os seus valores os da social-democracia que estão na sua origem, há lugar para um partido novo, progressista, democrático, humanista, moderno, venerando a cultura e o planeta, liberal.

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A imagem lá em cima, muito primariazinha, foi o que saiu via IA.
Se fosse mais cedo, tentava coisa mais apurada. Assim, peço que aceitem as minhas desculpas

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Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

quinta-feira, junho 12, 2025

Neste nosso tempo em que os cidadãos regrediram à subtil designação de seguidores

 

Até não há muito -- talvez até antes de haver uma concorrência desmedida entre os canais de televisão, nomeadamente os de cabo que têm que manter as emissões em contínuo e deitam a mão a tudo o que é gato-sapato, ou até ao advento das redes sociais que vieram dar a voz a tudo e a todos por mais ignorantes e estúpidos que sejam -- só era dada oportunidade de se pronunciar em público a quem reunia um mínimo de características positivas que os fizessem distinguir do comum dos mortais. Tinha que se ser gente de cultura, com alguma coisa a acrescentar, para se poder chegar a um púlpito e falar para as massas.

Agora não. Veja-se Marcelo que, num dos seus momentos de deriva populista, chamou a discursar no 10 de Junho o João Miguel Tavares. Anedótico. E tal como a Assembleia da República é agora lugar em que um bando de grunhos tem assento, também as televisões se enxameiam com gente desqualificada. Vejam-se os Big Brothers desta vida, os programas de comentário do 'social' e muitos outros. E veja-se a cambada que invade os youtubes. 

Quando os meus netos cá estão, quando se póem a ver televisão, o que eles gostam de ver são youtubers ordinários a comentarem jogos ou parvoíces, a dizerem toda a espécie de disparates. Por mais que se tente impedi-los é por isso que eles se sentem atraídos. E imagino que os tiktoks desta vida estejam também pejados de porcarias idênticas. A mim, no instagram, não me aparece disso porque o algoritmo percebe que gosto de outras coisas e não me mostra grunhices mas, fosse eu de me interessar por maledicência, populices, racismos ou outras desconformidades e, certamente, seria alimentada com milhões de coisas dessas.

Não sei como se poderá parar estas enxurradas de desinformação, de superficialidade, de ordinarice, de aberração. Faz-me lembrar aquelas praias ultra-poluídas, como algumas dos países mais pobres de África, uma desgraça sem limite, as águas carregadas de lixo, as praias inundadas de detritos de toda a espécie e feitio, as pessoas, como animais, a esgravatar no meio da porcaria. Assim a comunicação nos dias de hoje. Lixo, lixo, lixo. E meio mundo a foçar no meio dessa imundície.

As instituições democráticas acabam por soçobrar perante a força da avalancha. Veja-se o que acontece com estes grupos ultra-nacionalistas, gente com aspecto troglodita, gente que nem sabe de que fala, sem conhecimentos de história, certamente gente com alguma perturbação mental, talvez traumas de infância, talvez gente mal-amada, gente que odeia os outros, gente que parece que tem prazer em fazer mal a pessoas indefesas, gente que odeia a decência, a democracia, a cultura, a inclusão, gente incapaz de gestos de bondade, de generosidade. E, no entanto, por aí andam e, estranhamente, conseguem que haja outros tantos que os apoiem. E ouvi que os serviços secretos sabem da existência destes grupos de gente má, de gente que incita e pratica a violência, e, pelos vistos, nada faz. Ouvi que há países em que estes grupos são proibidos. E acho bem. Mas não deve ser possível controlar verdadeiramente a sua existência pois este nosso mundo dispõe de alçapões e labirintos para toda a gente que gosta de se mover no mundo das trevas. A dark web, os chats e outros corredores sombrios permitem a movimentação desta gente maldosa que, em vez de se tratar, anda a espalhar o mal.

Ouço dizer que o populismo, o racismo, a xenofobia, o ultra-nacionalismo e coisas que tais se combatem com uma informação correcta, com educação, com pedagogia. Ajudará mas é lirismo pensar que isso é suficiente. Meio mundo não frequenta a aprendizagem rigorosa, não frequenta o conhecimento, não frequenta a comunicação social séria, não frequenta o mundo dos livros, não frequenta os espaços em que as pessoas falam sobre assuntos sérios e falam com vagar. 

Por isso, por muito que se queira educar os ignorantes, a pedagogia não chega até eles: uns porque trabalham e chegam tarde e cansados a casa, outros porque se desabituaram de ponderar, outros, os mais jovens, porque a realidade das redes sociais, dos whatsapps e dos youtubes é a única que conhecem.

E, no entanto, eis que, no meio disto, surge uma mulher que, vestida de branco, com voz pausada e serena, diz palavras sábias, límpidas, radiosas, inteligentes.

No dia 10 não ouvi o discurso de Lídia Jorge mas mão amiga fez-mo chegar. E, embora esteja a ser amplamente divulgado, faço questão de tê-lo também aqui. Uma maravilha. As escolas deveriam divulgar amplamente estas palavras. As televisões deveriam passá-las de vez em quando. De alguns excertos deveriam ser feitos cartazes para espalhar por todas as terras. 

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico.

Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto.

Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra.

A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.

O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade anfitriã em 1996.

Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.

O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.

É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.

A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.

A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.

Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu.

Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.

Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.

O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.

Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.

O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois de morto.

Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.

Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.

Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.

Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos em que o próprio viveu.

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.

Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.

E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas.

Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos do dia a dia.

Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.

Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque.

Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência.

Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos”.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.

Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.

No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.

Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.

Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço.

Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque.

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.

É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.

No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.

Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.

Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.

Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.

É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade.

É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.

O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade.

E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso.

Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.

Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos e por quem.

Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante D. Henrique.

Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.

Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.

Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui, no dia de hoje.

Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos.

Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.

Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.

É uma luta nossa, contemporânea.

Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.

A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.

O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém responde: vimos da terra.

Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.

Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos.

O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.

Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.

Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.

A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial.

Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.

Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.

Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos.

Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.

A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.

Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.

Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.

Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

 

[Discurso de Lídia Jorge. Lagos, 10.Junho.2025] 

domingo, maio 25, 2025

Modo de pausa

 


Depois de ter esperneado com o resultado das eleições, ter espremido os neurónios tentando pôr em equação o ensarilhamento em que estamos metidos, depois de ter lido mil opiniões e ouvido cinquenta mil sapientes veredictos, o que tenho a dizer é o mesmo que sempre fiz em situações de berbicacho: bola para a frente porque para a frente é que é caminho.

Enquanto muitos dos meus colegas adoravam enfronhar-se em cansativos meas culpas ou em intermináveis sessões de lições aprendidas, eu sempre fui mais de me reunir rapidamente com quem tinha alguma coisa de inteligente a dizer (opiniões de burros ou de papagaios dispenso), tirar meia dúzia de conclusões, com essas conclusões e mais o que há pela frente traçar um caminho e... bora lá antes que se faça tarde.

Portanto, por mim já chega de andar a tentar a pisar e a repisar sobre o mesmo assunto.

É certo que continuo a achar que o Montenegro é um chico-esperto e que, nos 11 meses em que governou, não fez nada de jeito -- e o que pareceu melhorzinho foi a continuação do que vinha do anterior governo ou a distribuição de ma$$a, pois tinha folga (herdada) e sabia que as eleições estavam ao virar da esquina. Mas, enquanto a Spinunviva ou outras argoladas do género não o derrubarem, só espero é que faça aquilo para que foi eleito.

Quanto ao PS, sempre disse que achava que o Pedro Nuno Santos não era a pessoa certa para suceder a António Costa. O PS pela mão de Pedro Nuno Santos quase me levou a não votar no PS. Pedro Nuno Santos foi um erro de casting, como os resultados eleitorais mais do que demonstraram. 

Na altura, pareceu-me que José Luís Carneiro seria a pessoa certa. Mas, na altura, o Chega ainda gatinhava. Agora, os do Chega já andam em duas patas e já convenceram milhão e tal de pessoas que são os melhores para governar o País. Orwell cheirou-os a léguas (a eles e a todos os outros que têm feito o mesmo percurso). Não sei se, para a presente circunstância, José Luís Carneiro tem o carisma, o punch e a visão para levantar o PS e, ao mesmo tempo, para atirar o Chega ao tapete. Não estou a querer dizer que acho que não. Estou apenas a dizer o que disse, que não sei. Não o conheço suficientemente bem. Mas espero que sim. Espero bem que sim.

Face a este panorama, se eu fosse o Marcelo o que faria, antes de mais, em paralelo com as conversas oficiais com os partidos e off the record, seria chamar os directores de informação dos diferentes meios de comunicação social para os desafiar a fazerem um pacto (de regime) para que parem de andar atrás do Ventura. O Chega é o Ventura. E o Ventura é um demagogo, sem ética, sem vergonha. Mas é também um excelente comunicador. Criativo e bom comunicador. Consegue lançar ossos para a praça pública a toda a hora, mobilizando a agenda dos media. Só que os canais de televisão -- ou de rádio ou os jornais -- não são cães para irem atrás de qualquer osso, pois não? Se a Comunicação Social deixar de dar palco ao Ventura, o Chega esvazia-se. Provavelmente deveria ser a ERC a ter um papel pedagógico junto da Comunicação Social. Mas a ideia que tenho é que a ERC não risca, não serve para nada. Portanto, penso que deve ser o Marcelo (que tem muitas culpas no cartório em toda a instabilidade que atravessamos) a atravessar-se.

Identicamente, alguém deveria andar em cima das redes sociais dos partidos, em especial do Ventura e do Chega. Contas falsas devem ser denunciadas. Incitamentos ao ódio ou insultos devem ser denunciados. Há mecanismos legais para lidar com tudo. Não deve haver complacência.

Tirando isso, penso que, com toda a humildade, deve tentar validar-se se as percepções de tanta gente estão erradas ou se, pelo contrário, são legítimas. 

Dou alguns exemplos:

Como são atribuídos os subsídios? Como é que isso é auditado para verificar se não há abusos? Há gente que não faz nenhum e que vive, ao após ano, à pála de subsídios?

Há mesmo milhares e milhares de imigrantes que não trabalham e que recebem subsídios? 

Há mecanismos para acolher e integrar os imigrantes, em especial os que não falam português? 

E, pelo que se tem visto em algumas reportagens, os abusos que se têm detectado no SNS são altamente lesivos das contas públicas e, também pelo que tem visto, os processos administrativos, para além de permitirem toda a espécie de abusos, são manuais, precários e não há auditorias. Será que isto acontece generalizadamente? 

Tenho lido que em Portugal há mais médicos por habitante do que na maioria dos outros países. E, no entanto, há muitos milhares de pessoas sem médicos de família, é preciso esperar muitos meses por uma consulta banal (e sobre as de especialidade acho que ainda é pior). Parece que há sempre falta de dinheiro. E, no entanto, na volta o que há é dinheiro a mais, esbanjamento, aproveitamento, muita ausência de gestão, muito regabofe. Tenho defendido que a gestão de hospitais deve ser entregue a gestores profissionais. Não a médicos, não a gentinha dos partidos. Hospitais que gerem orçamentos de milhões têm que ser entregues a gestores competentes e profissionais. Numa altura em que a Saúde está tão mal, com Urgências fechadas, com tantos atrasos, se entregassem a gestão a profissionais não apenas se poupariam muitos milhões como os serviços melhorariam rapidamente. Se as pessoas começarem a ver 'saneamento' de gastos abusivos e melhoria no atendimento com certeza o paleio populista será esvaziado.

Quanto à habitação, também é preciso arranjar soluções urgentes: aproveitem edifícios públicos, adaptem-nos, alojem o máximo de pessoas. Rapidamente. Com assertividade. Com pouco paleio. E favoreça-se e apoie-se o ressurgimento de cooperativas de habitação. Apareçam com soluções concretas, rápidas, bem articuladas, bem acompanhadas, bem divulgadas. Esvazie-se o populismo.

Já disse e repito-me: é tempo de juntar esforços contra o populismo. E, enquanto a legislatura for avançando, o PS terá tempo para se reorganizar. Ou haverá tempo para aparecer um novo partido (caso o PS não consiga livrar-se do anquilosamento aparelhista, não consiga regenerar-se assimilando com inteligência o ar do tempo).

Mas, dito isto, agora vou continuar na mesma onda em que tenho estado nestes últimos dias: a ler, a curtir, regando, cozinhando, caminhando, estando em família, na boa. Agora nem tenho escrito. Tem-me apetecido descansar, estar em modo de pausa.

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Desejo-vos um belo dia de domingo

quinta-feira, maio 22, 2025

Um reborn de nome André

 

Desde que, há três meses, comecei a frequentar o Instagram todo um mundo desconhecido se abriu frente aos meus olhos inocentes. Vejo e ouço coisas que me deixam perplexa. Antes das redes sociais apenas quem tinha algo de relevante a dizer era chamado a opinar em público. Era a quem detinha o poder editorial que incumbia a responsabilidade de identificar os melhores e levá-los ao púlpito maior, televisão, rádios, jornais ou revistas. Com as redes sociais, qualquer um -- qualquer zé-ninguém, qualquer maria-vai-com-as-outras, qualquer burro encartado, qualquer tarado, psicopata, narcisista, marginal, ignorante & ordinário, qualquer gentinha sem noção -- tem o púlpito à sua disposição e canal aberto para o mundo. E qualquer um, tendo a sorte de ter audiência, consegue viralizar, monetizar a sua 'mensagem', catequisar. Influenciar. É o tempo dos influencers. Dos políticos influencers. E qualquer um pode ser influencer. 

Tenho a sorte de o algoritmo ter percebido mais ou menos os meus gostos e, por isso, há o lado bom de me ser dado a conhecer o que muitos escritores, editores, pintores, escultores, galeristas, jornalistas, pessoas de bom gosto têm a dizer ou a mostrar. Mas, certamente porque me detenho a ver, também me aparecem cabeleireiros, maquilhadores, cozinheiros, nutricionistas. Muitos brasileiros.

E, no meio, por vezes, não sei a que propósito, coisas estranhas que não percebo se são paródia ou mera parvoíce e que não me fazem parar. Mas tão frequentemente me têm aparecido que agora prestei atenção. Sendo eu novata nas redes sociais (ie, no Instagram) se calhar estou a achar estranho o que, para quem anda há anos pelo facebook, instagram ou tik tok, já deve ser banal. Mas, ainda assim vou falar de um fenómeno que desconhecia e que está a deixar-me perplexa.

E estou a falar em concreto de uma coisa que dá pelo nome de reborn. Bebé reborn. Eu via mulheres com uns bebés meio estranhos ao colo. Depois, prestando atenção, percebi que eram bonecos. Mas as mulheres andam com eles ao colo como se fossem bebés de verdade, levam-nos a passear, fazem festas de anos. Inclusivamente vi uma a chorar, revoltada, porque tinha ido com o reborn ao médico e o médico tinha-se recusado a atendê-lo. E depois vi que já havia várias pessoas a fazer vídeos a discutir se sim ou não e até uma advogada a aconselhar os médicos a quem apareçam 'mães' de reborns, dizendo como devem agir.

E eu, perante tudo isto, fico como se levasse uma pancada na cabeça. Como é que é possível?!

Fui ao chatgpt confirmar o fenómeno, ver se esta maluquice existe mesmo.

Transcrevo o que escreveu:

Um bebé reborn é uma boneca feita com extremo realismo para se assemelhar a um recém-nascido ou a um bebê de poucos meses de vida. Esses bonecos são criados a partir de kits de vinil ou silicone, que são moldados, pintados e montados manualmente por artistas — conhecidos como "reborners" — que dedicam várias horas (às vezes dias) a cada peça. Os detalhes vão desde a coloração da pele com veias visíveis, até o enraizamento fio a fio dos cabelos e a aplicação de peso interno para que o boneco tenha o peso e o toque de um bebê real.

A origem desse movimento remonta à década de 1990 nos Estados Unidos, com raízes na comunidade de colecionadores de bonecas. Desde então, a prática se expandiu significativamente, ganhando popularidade em diversos países da Europa e da América Latina, especialmente no Brasil, onde há feiras, cursos e lojas especializadas nesse tipo de arte. Além do público colecionador, os bebés reborn atraem também pessoas que os utilizam por razões emocionais ou terapêuticas — como mães que perderam filhos, pessoas com depressão, ou idosos com Alzheimer, para quem a interação com esses bonecos pode trazer conforto. 

O alcance dessa tendência vai além do simples colecionismo. A popularidade dos vídeos nas redes sociais — especialmente no YouTube, TikTok e Instagram — ampliou o interesse pelo universo reborn. Muitos criadores de conteúdo compartilham rotinas de "cuidados" com seus bonecos como se fossem bebês reais, atraindo tanto críticas quanto admiração. A indústria se profissionalizou: há artistas renomados internacionalmente, bonecos que podem custar milhares de dólares e até certificações de autenticidade.

Ainda que para alguns a prática pareça excêntrica ou até inquietante, para outros ela representa uma forma legítima de expressão artística, uma válvula emocional ou mesmo uma ferramenta terapêutica. Isso mostra que os bebés reborn são mais que uma moda passageira; eles fazem parte de um fenômeno social multifacetado que une arte, afeto e mercado.

Há influenciadoras que fazem parte de uma comunidade crescente que utiliza os bebês reborn não apenas como objetos de coleção, mas como parte de experiências emocionais e artísticas. Seja por motivos terapêuticos, expressão artística ou simples afeto, elas compartilham suas jornadas com autenticidade, atraindo tanto admiração quanto debates sobre os limites dessa prática.

Ou seja, o que vi foram pessoas não colecionadoras de bonecas realistas, nem idosos ou doentes com Alzheimer, mas mulheres que, por algum distúrbio ou sei lá porquê, agem como se fossem mães de verdade dos bonecos e criam páginas nas redes sociais para partilhar as suas experiências com aqueles 'filhos', mostram o quartinho dos bebés, os brinquedos deles, os cuidados que requerem, etc.

Em condições normais, eu diria que uma mulher que trata um boneco como se fosse um filho de verdade e se aliena a ponto de se esquecer que aquilo é um ser inanimado e não um ser vivo, é alguém que precisa de ser tratado. 

E, no entanto, não. Expõem-se, têm centenas de milhares de seguidores, formam uma comunidade, reivindicam, reclamam direitos.

E tudo como se fosse normal. E parece que ninguém acha isto doentio, sinistro, distópico.

Perante situações destas, eu penso: como se dialoga com pessoas assim, que acreditam no mundo paralelo em que se posicionam? Que conversa racional é possível ter com pessoas assim?

Sinceramente não sei. E isto inquieta-me.

Não quero fazer extrapolações abusivas mas quanta gente perturbada deste ou doutro tipo --, ou pessoas que acreditam que a terra não é redonda, ou que, sendo imigrantes, acreditam que quando um político se atira aos imigrantes não está a ameaçá-los a eles mas a outros e, portanto, o apoiam, ou pessoas que pouco têm mas que o maior medo que têm é que os que ainda têm menos venham roubar-lhes alguma coisa ou que se insurgem contra os desgraçados miseráveis que recebem uns trocos para sobreviver --, constitui o público alvo dos populistas? Quantas destas pessoas, tão distantes da realidade concreta, tão facilmente manipuláveis, votam nos populistas só porque sim, só porque os populistas dizem 'a verdade' ou prometem 'abanar isto tudo'?

E como podem os políticos decentes, que falam a verdade, com base em factos, em estatística, em dados históricos, reais, fundamentados, interagir com estas pessoas? Não sei. São línguas diferentes, comprimentos de onda diferentes. 

Claro que a análise que se pode fazer à população que vota em partidos populistas não é una. Uma análise a fazer tem que ser multifactorial. Uns votam porque são fascistas e estavam à espera de quem viesse resgatar o antes do 25 de Abril, outros são levados pelo que as igrejas evangélicas, maná, do 7º dia ou outras recomendam, outros são bolsonaristas e, aqui deslocados, seguem a cópia, outros acreditavam nos amanhãs que cantam do comunismo e agora viraram para uma realidade mais actual, outros não vão além do mundo dicotómico dos bons e dos maus e votam no que diz que vai atrás dos maus, outros são ex-combatentes, ainda com feridas a sangrar da guerra e votam em quem diz que é preciso não esquecer os ex-combatentes, outros votam em quem se ajoelha, tem crucifixos no bolso e fala pondo as mãos como se estivesse em prece, outros votam porque não gostam da cor dos imigrantes que agora aparecem lá na rua, outros votam porque acreditam que aquela pessoa que assim lhes fala ao coração é sincera e se preocupa de verdade. 

E isto é complicado porque se é fácil levar pessoas assim a seguir um líder carismático que parece falar para cada um (mesmo, de facto, nada dizendo de concreto), muito difícil é levá-los a perceber que fazem mal em escolher serem 'conduzidos' por um populista que nada mais faz do que alimentar-se da sua ignorância, do seu medo, do seu distanciamento da realidade.

Pessoas assim mais depressa aceitam dar o seu voto a um político reborn, fake, do que a um político sério, decente.

E isso é um perigo. Ou, sendo eu uma optimista, um desafio. 

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Para que tenham maior visibilidade, transcrevo alguns comentários que eu e o meu marido temos recebido e que muito agradecemos. Não transcrevo um dos comentários, excelente, pois vejo que é uma transcrição e não consegui identificar ao autor original para aqui atribuir os créditos. Mas transcrevo outros. Não todos, para isto não ficar ainda mais extenso do que já está.

O SÍNDROME DE ESTOCOLMO

(Amar o agressor)

As eleições legislativas de 2025 trouxeram uma clarividência sombria: uma parte significativa da população votou contra os seus próprios interesses, com uma convicção que está paredes meias com a cegueira. Dá pena!

Mal informados e mal formados ainda acreditam no coelhinho da páscoa ou no "4 pastorinho" ou numa qualquer igreja maná ou outras, totalmente alienados politicamente.

É o velho ditado a ganhar nova vida - o povo descalço continua a votar em quem lhe roubou os sapatos.

E desta vez ainda lhe bate palmas!

.....

JAMAIS CONFUNDAM O POVO, com os inimigos do povo. Nunca caiam na tentação de ODIAR O POVO. Amilcar Cabral

A política é o meio através do qual homens sem principio dirigem homens sem memória. Voltaire

Uma nação que tem medo de deixar seu povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto é uma nação que tem medo de seu povo. – John F. Kennedy

A maioria dos males que o homem infligiu ao homem veio do facto de as pessoas se sentirem bastante certas de algo que, na verdade, era falso. BERTRAND RUSSEL

O servo ideal de um governo totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas pessoas para quem a distinção entre facto e ficção e entre verdadeiro e falso não existem mais. – Hannah Arendt

Esta mascarada enorme-com que o mundo nos aldraba-dura enquanto o povo dorme-quando ele acordar acaba . Antonio Aleixo

quarta-feira, maio 21, 2025

Ainda as eleições
-- A palavra ao meu marido

 

O grande problema dos partidos tradicionais, nomeadamente, de esquerda é que não entenderam as mudanças do eleitorado. Para uma maioria significativa dos eleitores -- e o caso dos mais jovens é paradigmático --, a esquerda e a direita não significam nada e estão-se absolutamente nas tintas para os valores aceites pela comunidade nas últimas décadas. 

O que interessa é o que aparece nas redes sociais. Não interessa se a informação que lhes é apresentada corresponde à realidade ou é mentira. Apenas procuram notícias que correspondam às suas aspirações, que sejam muito sucintas, sensacionais e facilmente compreensíveis e sobretudo disponibilizadas pelos seus gurus nas redes sociais.  Notícias que digam mal do "inimigo" seja ele qual for,  geralmente aquele que dá mais jeito ao "guru" de estimação naquele momento: imigrantes, ciganos, políticos...

O que é preciso é que existam inimigos que permitam mobilizar a massa anónima para que os gurus possam atingir os seus fins. 

A esquerda não percebeu a mudança. Não conseguiu denunciar os embustes, utilizando a nova forma de comunicar, nem apresentar objetivos agregadores que correspondam às aspirações dos que têm mais dificuldades e que lhes permitam perspectivar a célebre mudança por que tanto anseiam, seja ela o que for no imaginário de cada um deles. 

Os dirigentes do PSD, a começar pelo Montenegro, que tem uma enorme tendência para se esquecer dos aspectos éticos e que, nalguns casos parece que estão em cima de uma linha muito ténue entre o que é ou não admissível em democracia adaptaram-se melhor e transmitiram uma mensagem mais fácil de perceber para os que não estão para se chatear com essa maçada de ter que perceber os factos e tirar conclusões. 

Mas, atenção, a subida do Chega também resulta de outros factores como aqui escrevi na noite das eleições. Como é possível que os vários canais noticiosos tenham estado horas e horas a falar do Ventura, nomeadamente, horas a filmarem as traseiras do carro da frente quando ele era transportado para o hospital. O Bernardo Ferrão veio justificar-se dizendo que era notícia. Que notícia? Estavam à espera que o Ventura se atirasse da ambulância em andamento para darem em direto? 

Diversos analistas confirmam que, no período eleitoral, os media  ampliaram e deram grande relevo aos assuntos favoráveis ao Chega: segurança, imigrantes, corrupção, promovendo assim esta gentinha. Tenham um pouco de clarividência e reflictam no papel que tiveram na ascensão meteórica do Chega nos últimos anos. Se forem jornalistas sérios não ficarão certamente orgulhosos do papel que desempenharam. 

Também o Marcelo devia reflectir na forma como atuou e contribuiu para que a possibilidade de que, quando sair de Presidente, o líder de oposição possa vir a ser o Ventura já não seja uma abjecta ficção. Foi, como disse o Júdice, o pior presidente dos últimos cinquenta anos. 

Os dirigentes do PSD, que para salvarem o Montenegro e os seus lugares, não se importaram de provocar eleições e trazer os temas preferidos do Chega para o debate, sejam eles relevantes ou não, também deram para o mesmo peditório. 

A contínua intromissão do MP na política, fazendo passar a ideia de que os políticos  são, por natureza, corruptos, chegando ao extremo de fazer cair um governo com maioria absoluta, cozinharam um caldo pastoso que o Chega  aproveitou para fazer passar as ideias que mais lhe convinham. 

É verdade, o mundo mudou e o Ventura é um líder carismático que faz muito bem o seu trabalho, mas teve ajudas de monta para chegar onde está e, implícita ou explicitamente, a comunicação social, o Marcelo, o MP e o Montenegro ajudaram um bom bocado. A esquerda, por inépcia, também contribuiu.

Hoje li a notícia de que o Chega quer proibir a atuação do Nininho Vaz Maia na Azambuja e, apesar de envolver o comunicado num palavreado pretensamente tradicionalista, a verdade é que os motivos são absurdos e não é difícil perceber que, por trás, há uma motivação racista. É a tentativa de voltar à censura que acabou há cinquenta anos e é perigosamente parecido com o que se passou na década de trinta do século passado nos regimes fascistas. Parece-me tão grave que, antes que esta prática se expanda e o revanchismo e a arrogância anti-democrática comecem a fazer caminho, o Presidente devia ter uma palavra pública de repúdio. 

terça-feira, maio 20, 2025

Reflexões na ressaca

 

Isto não está fácil, confesso. Não me apetece escrever. No domingo à noite deitei-me tarde, atordoada. Os resultados das eleições viraram-me do avesso. Eram seis da manhã e ainda não dormia. Já o dia clareava e eu sem sono. Depois acordei às oito e picos e parecia-me que já não tinha sono. Forcei-me a dormir mais um pouco. Mas pouco mais. Íamos ao ginásio e depois ainda tínhamos várias coisas a fazer. Ou seja, mal dormi.

Por isso, de tarde, lá para as cinco, deitei-me ao sol, na espreguiçadeira, e adormeci. Não muito pois as nuvens passavam a vida a cobrir o sol e ficava frio. 

Há pouco, estávamos a ouvir o Paixão Martins, adormeci de novo. Micro-adormecimentos mas o suficiente para não ter conseguido acompanhar com seguimento.

Ainda não recuperei do entorpecimento, do estupor catatónico em que, interiorente, fiquei.

Do que me chega, há pessoas bem na vida, instaladas, umas que ainda guardam ressentimentos do 25 de Abril e que votam no Chega pois acham que o Ventura vai ajustar contas com esse passado. Outras, quadros em boas empresas, querem simplesmente rebentar com 'isto tudo'. Se calhar, pessoas mal sucedidas na sua vida pessoal (mas isto já sou eu a dizer). Quando pergunto a quem conhece essas pessoas o que é que, na verdade, elas acham que o Ventura pode fazer por elas, a resposta é que isso não é questão que se ponha. Não pensam tão longe, limitam-se a querer rebentar com as coisas. O que vem a seguir é tema que não lhes ocupa o pensamento. Outro caso, nos antípodas, um conhecido que não estudou muito, que começou a trabalhar, trabalho pouco qualificado, faz uns 'ganchos' ao fim de semana para compor o ordenado. Vota no Chega porque diz que os 'outros' não fazem nada por ele, acredita que o Ventura é capaz de fazer. Pergunto: mas fazer o quê, em concreto? A resposta é a mesma: o pensamento dele não vai até esse ponto.

No outro dia, vi na televisão uma dessas que vive certamente numa realidade pobre, suburbana, mas que deve sentir que vive numa realidade alternativa ao viver permanentemente nas redes sociais. Percebe-se que, certamente, tem como ídolos algumas conhecidas influencers. Usava várias vezes a expressão: 'quero tudo a que tenho direito'. Ao ver as influencers andarem pelos hotéis, pelos ginásios, institutos de beleza e restaurantes, sonha, certamente, atingir esse patamar. Pela conversa, acredito que vote Chega. Deve ser daquelas que acha que o Ventura diz tudo o que tem a dizer, não tem medo de nada, tentam calá-lo mas ele não se fica. Ou seja, veem-no como um líder que merece ser seguido. Claro que se lhe perguntarem o que é que o Ventura pode fazer por ela, não saberá dizer. Isso já é uma segunda derivada e o raciocínio não vai tão longe. Se lhe perguntarem também em que é que os 'poderosos e corruptos' de que o Ventura tanto fala a prejudicam, claro que também não saberá o que dizer. 

O Ventura navega nestas águas turvas da ignorância, do ressabiamento, da ilusão. Em bom rigor, de concreto ele não promete nada. Aliás, de concreto, ele não diz nada. Limita-se a apresentar-se como um líder, o que está aqui para salvar os descontentes, o enviado de Deus, o que vai vingar os que se sentem prejudicados. As pessoas acreditam nele sem precisarem de provas, tal como acreditam em Deus sem precisarem de provas ou tal como, antes, acreditavam no PCP sem cuidarem de saber em que país é que aquele modelo comunista funcionava. As pessoas que votam no Chega, em larga maioria, fazem-no por uma questão de crendice, de fezada.

Numa reportagem de há pouco tempo, um pastor evangélico, no Seixal, um que aluga quartos num armazém sem condições, dizia que recomendava o voto no Chega. Os iguais reconhecem-se.

Porque é que nestes subúrbios há tantas igrejas maná, evangélicas, do sétimo dia e coisas assim? O que é que aqueles pastores fazem pelas pessoas? Nada. Ficam-lhes com o dinheiro e prometem coisas, umas divinas, outras estratosféricas. E as pessoas acreditam, gostam.

Não sei como se combate isto. As pessoas com ética, com sentido de responsabilidade, honestas, não recorrem à mentira, às promessas vãs, não se prestam ao papel de fazerem vídeos estúpidos, manipulados ou falsos, apelando à vingança ou  difundindo mensagens xenófobas ou racistas, nem usam a ignorância das pessoas para explorarem as suas emoções, os seus medos, os seus anseios. Ou seja, as pessoas decentes não são capazes de usar as mesmas 'armas' que os populistas. No fundo, o terreno está livre para que os do Chega, os das igrejas alternativas ou outros movimentos do género, possam ocupá-lo e aproveitar a crendice, a ingenuidade ou os ressabiamentos de quem ali se sente entre iguais.

Como se explica a uns e a outros, ao milhão e trezentos mil que votaram no Chega, que o que está a ser feito no País é isto e aquilo, que há contas e orçamentos, que, no caso dos que ganham menos, não pagam impostos e podem usufruir de tudo (hospitais, escolas, policiamento nas ruas, etc.) sem pagarem nada. ou que há um défice demográfico no País e os imigrantes são necessários, úteis e deveriam ser recebidos de braços abertos? 

Como falar com pessoas que não querem ouvir coisas 'complicadas', cujo tempo de atenção se esgota com uma frase de cinco palavras, que não querem saber da ética dos líderes que adoram? Que apenas querem imaginar um eldorado em que elas serão tratadas como princesas com tudo a que têm direito e eles serão machos, viris, ricos, com grandes carrões?

Aqui, em França, na Alemanha, em Itália, nos Estados Unidos... agora ou há cem anos... como se combate o populismo? 

Acresce a isso, a circunstância presente, ubíqua, desregulada: como se combate o efeito nefasto das redes sociais?

Não sei.

Ou será que nem vale a pena matar a cabeça a tentar matar a charada? Será que é esquecer esta franja que sempre votará irracionalmente? Ou não? Será que deve é haver um pacto entre a comunicação social para não dar cobertura aos populistas? Ou quem está no Governo deve, simplesmente, focar-se em resolver problemas concretos e divulgar eficazmente a sua resolução? Ou não é bem isso e o melhor mesmo é ser-se capaz de criar uma utopia -- mas uma utopia realizável -- e deixar que as pessoas que precisam de acreditar em miragens tenham algo com que sonhar... e depois concretizar esses sonhos?

Em paralelo, enquanto se pega pelos cornos (ou de cernelha) o populismo, tentando impedir que cheguem mesmo ao topo, há que construir uma alternativa. Vi na TVI uma caracterização do eleitorado do Livre e da Iniciativa Liberal: um alinhamento entre escalões etários (gente mais jovem do que nos outros partidos) e formação académica (largamente com formação superior). Reforçou a minha convicção de que o futuro passa por aqui. Tivesse eu menos uns quantos anos e era bem capaz de fazer de tudo para explorar as convergências entre eles e tentar arranjar uma plataforma que fosse o motor de um movimento progressista, dinâmico, arejado, que atraísse mais gente, que gerasse iniciativas agregadoras, que avançasse com propostas de melhoria nos diversos sectores da sociedade, que mobilizasse mais gente para participar na construção de novas propostas de acção.

Enfim. Ando para aqui às voltas, preocupada com o mundo cada vez mais estúpido, disfuncional e distópico em que vivemos.

Vou ver se durmo melhor esta noite. E vou ver se, durante o dia, me entretenho mais a olhar e a fotografar as florzinhas que estão por todo o lado. Estão viçosas, lindas, os campos estão cobertos, felizes da vida como se a os temas da política lhes passassem totalmente ao lado.

segunda-feira, maio 19, 2025

E agora...?
Agora é tempo para o pragmatismo

 

Depois de ouvir o discurso revanchista de Ventura, copiando o estilo ameaçador de Trump, depois de ver a esperada renúncia de Pedro Nuno Santos e ao ver o discurso de Montenegro que falou como se tivesse tido a maioria absoluta, fico com a sensação que o caldinho pode estar seriamente armado. Contudo o País tem que ser posto em primeiro lugar. Há prioridades que devem ser postas em cima da mesa e, uma vez identificadas, ir em frente e agir em conformidade.

1 - O País não pode correr o risco de estarmos sempre dependentes dos ajustes de contas, das ameaças, das provocações do Chega

2 - Ou seja, tudo deve ser feito para que o Ventura não tenha a última palavra. E essa preocupação tem que estar sempre presente.

3 - O País deve ser governado com inteligência, assertividade, com visão estratégica, tendo em conta os riscos internacionais e os riscos internos. Se o governo que vai nascer não conseguir bons resultados, nas próximas eleições o Ventura conseguirá melhores resultados e, se agora foi o PS que levou uma banhada, nas próximas eleições pode ser a AD a levá-la. E aí será o País, no seu todo, que estará nas mãos do Ventura (tal como os Estados Unidos estão nas mãos do Trump). E aí, adeus minhas encomendas.

4 - Há muitas reservas em relação ao 'centrão' e há certamente muita gente do PS que jamais vai querer dar uma 'mão' à AD. Percebo tudo isso. Mas as circunstâncias são o que são. Não vale a pena ir buscar exemplos do passado para provar os danos dos abraços de urso ou os malefícios do pântano dos centrões. Tudo isso pode ser verdade. Melhor, tudo isso foi verdade. Não tenho dúvidas. Mas, neste momento, o circo está a arder e é nesse cenário que devemos situar-nos. Chegámos aqui e é aqui que devemos situar-nos. 

5 - Ou seja, face aos riscos e face às circunstâncias, neste momento penso que o mais inteligente será barrar o caminho à influência crescente do Chega. Para isso, penso que o mais racional será o PS estabelecer um entendimento com a AD no sentido de criar condições para entregar à população resultados rápidos, palpáveis, demonstráveis. Têm que ser encontradas soluções rápidas (em gestão, chamamos quick wins, pequenos ganhos que fazem ganhar a adesão das pessoas) nas áreas problemáticas que geram mais descontentamento junto da população e sobre as quais o Chega cavalga. Ainda hoje o meu filho dizia que têm que se encontrar soluções rápidas nas áreas da Saúde, da Educação, da Habitação e da Segurança Social. Concordo. Encontrem-se soluções rápidas, sem dogmas. Se o mais rápido for, aqui e ali, fazer acordos com privados, que se façam. Não se diabolizem os privados. Como se vê pelo resultado das eleições, a maioria da população já não está nem aí. Seja-se pragmático: desde que os contratos sejam regulamentados, não há drama. Encontrem-se soluções: consultas e cirurgias rápidas, mais escolas, mais creches, residências para idosos e clínicas para doentes que precisam de reabilitação ou de cuidados paliativos, casas públicas, financiamento a cooperativas de habitação, etc. Seja-se criativo. Seja-se rápido.

6 - Pode dizer-se que, se o PS der a mão ao Governo AD, isso vai desvirtuar a sua linha ideológica. Talvez, sim. E dar a mão a Montenegro, um fulano que é um chico-esperto, chateia. Pois chateia. A mim chateia-me como nem imaginam. Detesto chico-espertices, habilidades no limiar da legitimidade, manhosices. Detesto. Mas o País tem que estar acima disso. E, de resto, seja como for, o PS tem mesmo que mudar. Por isso, não tem muito a perder em 'vergar-se' para ajudar a AD a governar bem - pelo contrário, o País reconhecerá o sacrifício, se for a bem do País. 

7 - Em paralelo, vejo espaço para um grande partido e era bom que esse partido fosse o PS, pois tem uma base matricial na formação da democracia em Portugal e tem grandes democratas no seu historial. Mas, se não for o PS, paciência. Já o disse, faz falta em Portugal um partido que aponte no sentido das democracias do norte da Europa, um partido civilizado, culto, moderno, desenvolvido, inspirador, mobilizador. Se o PSD não fosse um partido que tem enraizada uma matriz de videirinhos, de patos-bravos, de chico-espertos, poderia evoluir para um partido como o que antevejo. Mas a sua matriz não o deixará evoluir. O PSD tem a 'filosofia' dos esquemas, dos interesses, dos jobs for the boys metastizada em toda a sua rede de concelhias e distritais (e, se calhar, o PS também) pelo que duvido que consiga alguma vez desempoeirar-se. Por isso, antevejo que, mais dia menos dia, teremos um novo partido a adquirir pujança e a fazer uma frente eficaz ao populismo. Mas isso leva tempo. Enquanto essa alternativa não nasce e não se impõe, a prioridade -- e volto ao tema das prioridades - tem que ser travar o Chega. Por isso, para concluir, para mim, neste momento, pondo em primeiro lugar o bem do País, acho que tudo (tudo, tudo) deve ser feito para reduzir a base de apoio do Chega -- e, para tal, é preciso entregar bons resultados à população no que é determinante, ou seja, é preciso governar bem.

8 - Há um outro aspecto: qual o papel da Comunicação Social? Vai continuar a querer competir com as redes sociais? Vão continuar a andar com o Ventura ao colo? Vão continuar a alimentar a maledicência, o desgraçadismo, a levar misérias e crimes aos programas generalistas de dia, assim alimentando a ideia da insegurança de que o Chega se alimenta? Marcelo, que é um dos grandes culpados pela situação em que estamos, faria bem em chamar os responsáveis das televisões e apelar ao sentido de responsabilidade no sentido de preservar a democracia do nosso País.

9 - Há ainda o Ministério Público que tem actuado como um contrapoder, deveria também ser chamado à responsabilidade. Andar a queimar políticos, deixando-os a serem derretidos em lume brando ao longo de anos, é do pior para a democracia. O populismo alimenta-se da ideia da corrupção generalizada, o populismo diz que 'isto é uma bandalheira'. E o MP não pode ajudar a essa festa. Marcelo deveria também ter uma acção nesse sentido.

10 - Termino, repetindo-me: penso que é tempo de todos, todos, todos -- todos os que amamos a democracia -- nos unirmos para que o País e a democracia sobrevivam à chaga populista que está a alastrar perigosamente.