Era eu miúda, o meu quarto ainda era aquele de que eu tanto gostava e do qual não há uma única fotografia (uma mobília toda ela funcional, construída à medida, de madeira clara, linhas direitas e percursora das linhas actuais, lineares, nórdicas) e apontava o candeeiro bem para a cama para que não se visse a luz por debaixo da porta, até que a minha mãe, lá para a uma ou duas da manhã vinha zangar-se por eu ainda estar a ler àquela hora.
E sempre assim foi. Mesmo quando os meus filhos eram pequenos e eu andava esgotada de tanto trabalhar e por tanto me esforçar por conciliar tudo, precisava de ficar levantada a fazer o que quer que fosse depois de todos estarem a dormir.
Preciso de um tempo meu. Os meus dias não se cumprem se eu não conseguir estar sozinha. Junta-se o facto de ser noctívaga à necessidade imperiosa de ter um tempo meu, em que ninguém fala comigo e eu não falo com ninguém, em que faço o que me apetece.
Quando estava em serviço, deslocada, a ter que estar enturmada de manhã à noite, tantas vezes com 'programa' até às tantas e tendo que estar no efectivo às primeiríssimas da manhã, mesmo assim levava o computador e estava acordada no quarto entretida a ler ou, desde que comecei o blog, a escrever aqui.
Pois bem.
O meu dia hoje foi preenchidíssimo: porque entrámos na era aquariana, levantei-me cedo para irmos caminhar e depois ir buscar comidas diversas a vários sítios e estar em casa, com a mesa posta, a salada feita, as frutas preparadas e tudo a postos para quando as tropas chegassem. Ainda por cima, quando agora ponho despertador, acontece-me acordar horas antes e já não conseguir dormir até o dito tocar. Portanto, dormi muito pouco.
E aí foi a alegria de sempre, a movimentação e animação de sempre.
Mas, depois, ao fim do dia, o registo foi outro, já não foi cá em casa, e aí já não houve alegria, pelo contrário.
Portanto, com um dia assim, teria razões mais que muitas para já estar na cama, ferrada, a recuperar energias. Ainda por cima, esta segunda vou outra vez ter que acordar cedo e seria bom que estivesse bem dormida para me aguentar, pelo menos na medida do possível. Mas não senhor, aqui estou.
Mas vi agora um vídeo que me consola: afinal isto de ter um bocado só para mim até é bom. Claro que se calhar seria preferível que não fosse às quinhentas... Mas isso são outros quinhentos...
Why being a 'loner' could be good for you | BBC Global
Many of us make an effort to surround ourselves with others, but we don't need to do this all the time.
Emerging research suggests there are some potential benefits to being alone.
These benefits range from improving our creativity, mental health, and even leadership skills.
Os meninos não dão tréguas. Em especial, ela que que é toda líder, toda voluntarista e determinada, logo que chegou anunciou que vinha tratar das decorações de Natal, dentro e fora de casa. Foi ela para a cave e foi de lá trazendo caixas e baús.
E foi buscar o escadote e depois, claro, precisou de ajudantes.
E desencantou pais-natais de que se lembrava de, quando era pequena, ver na nossa outra casa, bonecada de que eu já nem me lembrava.
Mas ela estava feliz pois o rever estes enfeites despertou nela uma certa nostalgia.
E contou a toda a gente, inclusivamente por telefonema, que tinha descoberto os pais-natais da outra casa, e adorou também encontrar as bolas grandes que ultimamente não tinham saído à cena.
E agora há bolas numa árvore, fitas noutras, uma coroa natalícia num portão e um laço no outro. E há de tudo um pouco e a casa está alegre e festiva, com luzinhas que são uma graça.
E para o jantar anunciou que ia fazer cebola caramelizada para pôr por cima dos hambúrgueres e, sozinha, cortou cebola, muniu-se de ingredientes e fez o que eu não sabia que se fazia assim: com manteiga, açúcar mascavado, vinagre balsâmico. E ficou espetacular. E ajudou a rechear os hambúrgueres feitos à mão com queijo da ilha ralado. Isto com o cão a chatear e a ter que ser posto fora da cozinha.
E depois de ter tomado banho, pediu para lhe secar o cabelo, coisa que faço de gosto e que sempre acorda em mim o gosto de ser cabeleireira.
Os rapazes estiveram mais sossegados, a guardarem-se para atacar à hora das refeições.
Agora já dormem pois amanhã dois deles têm programa bem cedo. E ao almoço já cá estão de volta, desta vez também com os pais.
E se agora conto isto é porque esta é a minha realidade, diametralmente oposta à de Jenny Jackson.
Esta mulher já apareceu noutros vídeos desta série e sempre me espanto com a sua franqueza, com a sua incrível humildade e, ao mesmo tempo, orgulho e dignidade. Vive sozinha. Habitou-se a viver sozinha. Gosta de viver assim. Sente-se independente. Mas, ao ficar com muitas dores nas costas, agora que a idade já avançou um pouco mais, sentiu que precisava de ajuda. A forma como ela fala disso, tão sincera, tão espontânea, é tocante.
O vídeo é, em minha opinião um testemunho fantástico, e talvez nos ajude a perceber como podemos ajudar os que estão sozinhos e têm receio de perder a sua independência (ou a sua dignidade) caso peçam ajuda.
Está legendado de origem em português pelo que se vê (e ouve) lindamente.
I OWE you my LIFE
There comes a moment in every life when the weight we carry feels too great to bear alone. In these moments, a choice appears: to keep struggling in silence or to open ourselves to the strength and kindness of others.
This story is about that choice — a journey of discovering the beauty in being vulnerable, and in finding that this simple act can transform not just ourselves but those who stand ready to help.
It’s not easy to let go of the walls we build to protect our independence, but when we do, something remarkable happens. Bonds, delicate yet enduring, can be forged; a quiet, gentle exchange of giving and receiving becomes a shared act of humanity, binding us ever closer to one another and reminding us that we are not alone.
Featuring Jenny Jackson.
Filmed in Hermanus, South Africa.
This is the fifth film that we have made together with Jenny. If you've missed the others, you can see them here:
O mundo inteiro deita-se a adivinhar se o Irão vai conseguir atirar algum foguete que consiga furar o chapéu de chuva de ferro que cobre Israel ou quem vai agora fazer o próximo movimento. Num artigo do NYT especulava-se sobre que mistério é este de o Irão estar tão sossegado a ver Israel dar cabo, um por um, dos líderes dos movimentos que são a sua força avançada fora de portas. Afinal hoje retaliou mas ainda não percebi se foi para ser a sério ou só um aviso.
Estas coisas são multi-facetadas e não vou nem ousar comentar o que quer que seja. Posso apenas dizer coisas vulgares como que repudio em absoluto movimentos terroristas, radicais, terroristas, retrógrados, cavernícolas, que atentam contra os direitos humanos, em particular os das mulheres. Em abstracto e em geral sou a favor da paz (desde que seja uma paz livremente aceite, não a que resulte da rendição de um povo injustamente agredido). Em absoluto condeno a invasão de um país que não respeite os limites territoriais internacionalmente aceites de outros países. Em geral e em abstracto parece-me uma aberração haver países que têm a sua base matricial não na história, não na língua, mas na religião, não aceitando pacificamente a convivência e a coabitação com pessoas de outras religiões. Em geral e em abstracto condeno em absoluto que se marginalizem ou ataquem pessoas só porque são de outra raça ou professam outra religião. Identicamente condeno em absoluto que se usem crianças como alvos ou meios de guerra. Generalidades.
No caso vertente, e mesmo à laia de aparte, espanta-me a capacidade de Israel a nível de serviços secretos e a nível militar e espanta-me o extraordinário domínio da ciência e da tecnologia que revelam. Os avanços tecnológicos e científicos que daí advêm para todo o mundo são sempre notáveis.
Claro que não confundo Netanyahu, a sua má índole e o seu condenável comportamento, os seus inclementes e brutais excessos, a sua atitude perante a política, a sua insana cruzada que parece ter como principal móbil o salvar a própria pele, com o direito de Israel a defender-se que esse creio ser inquestionável.
Mas sinto que falar sobre estes temas requer um recuo para o qual não estou agora motivada e um arcaboiço que não tenho. Além disso, estou outonal, suave, toda eu serenidade, contemplativa -- ou seja, incapaz de escalar o discurso para os níveis que o momento provavelmente requer.
Também não me apetece falar da disparatada encenação promovida por Montenegro e pelos seus desclassificados ajudantes apadrinhada pelo desestabilizador-mor. Mas, para falar verdade, também não percebo porque é que, face a esta cambada e à estúpida maneira como se comportam, não percebo porque é que Pedro Nuno Santos para aí anda a expor-se a falatórios e não diz simplesmente: apresentem o raio do orçamento que o analisaremos e depois logo nos pronunciamos.
Mas, portanto, enquanto vou acompanhando (um pouco à vol d'oiseau) o que por aí anda voando em nossa volta, vou vendo alguns vídeos que me parecem interessantes.
Este aqui abaixo, com a Marília Gabriela, é muito interessante. Dá que pensar. Não sei se ela ainda vive em Lisboa. Mas, independentemente disso, até porque nada tem a ver, faz-me um pouco impressão que uma mulher como ela diga que o telemóvel está silencioso, que está sempre sozinha. Mas compreendo muito bem o que ela diz. Quando se tem uma vida profissional muito activa, tendo que conviver diariamente com muita gente, é natural que se chegue ao fim do dia com vontade de ir para casa descansar e não de sair para ir para os copos...
Uma entrevista a ver.
Marília Gabriela e o sexo, a idade e a solidão! | Admiráveis Conselheiras | GNT
Nunca vivi sozinha. Enquanto pequena vivi com os meus pais, ficando, por vezes, em casa dos meus avós.
Quando acabei o liceu fui em passeio com sete ou oito conhecidos e mais uns trinta desconhecidos passar um mês num país africano.
Namorava nessa altura. Lembro-me do meu namorado muito emocionado no aeroporto e eu já toda entusiasmada com a aventura que se perspectivava. Foi um mês de múltiplas revelações. Acho que nem por um dia senti saudades do namorado. E não sei se isso diz muito sobre o que eu sentia por ele ou se diz da minha natureza. O que for.
Quando regressei, fui viver para uma residência de estudantes. Apesar de me dar bem com os meus pais, continuar a viver permanentemente com eles afigurava-se-me fora de questão. Tinha acabado de fazer dezassete anos. O ambiente de bairro e o controlo que a comunidade exercia nos seus membros e o receio que os meus pais tinham de que eu me tornasse objecto de falatório era-me insuportável. Ansiava por liberdade. Depois, por razões diversas, saí da residência e fui para um quarto. O namorado e os amigos eram uma presença constante com a graça adicional de que, entretanto, me tinha apaixonado por um desconhecido que me trazia de coração alvoroçado. Pouco depos, durante uns meses, vivi uma vida dupla. Nuns dias namorava com um, noutros andava inseparavelmente com outro.
Já o contei várias vezes pelo que abrevio.
Quando se tornou impossível gerir a situação, acabei com o namorado e caí nos braços do desconhecido. Algum tempo depois casei-me com ele. Tinha vinte anos. E algum tempo depois veio uma filha e algum tempo depois um filho. E vieram os primos dos filhos e os filhos dos amigos. A casa estava sempre cheia. E o tempo passou a correr e a filha arranjou um namorado e o meu filho uma namorada. E os namorados vieram cá a casa. E algum tempo depois a minha filha saiu para ir viver com o namorado e depois foi o meu filho que saiu para ir viver com a namorada. Entretanto casaram-se e começaram a chegar os filhos deles. Cinco. A casa foi-se enchendo.
E tal como os meus filhos vieram com os seus companheiros, um dia destes hão-de os meus netos começar a trazer os seus próprios companheiros e serão muito bem vindos.
A preocupação é o tamanho da mesa ou haver mesas adicionais que se juntem. E cadeiras. E bancos adicionais.
Por isso, viver sozinha nunca vivi. Nunca fui sozinha à praia ou ao cinema. Nunca levei o carro a lavar. Nunca usei um berbequim.
Mas uso este 'nunca' com a convicção que, no dia em que precisar, irei, farei. É assim porque aconteceu assim. Calhou ter tido a sorte do desconhecido me ter saído melhor do que a encomenda e de ter nele o companheiro presente, atento e dedicado, compreensivo e amoroso, bem humorado, culto, bom pai e bom avô, bom genro e bom amigo que justifica a sua presença ao meu lado há tantos anos. Se o não fosse já o teria rifado há séculos. Não suportaria ter dentro de casa alguém que não fosse o meu homem, sendo que, para ser o meu homem, tem que ter tudo o que acho fundamental e não apenas uma parte. Nestas coisas não se podem fazer concessões: ou se é tudo ou não se é nada. Não tem que ser perfeito ou não tem que ser um santo: tem é que ser o nosso homem. Isto no meu caso que sou hetero. Se fosse homo, seria a minha mulher mas teria que ser identicamente completa. Um meio homem, um meio companheiro, uma mariazinha que uns dias sim mas outros não, um zé cueca que põe a sua agenda à frente da vida a dois, um coiseca que se acha o máximo descurando a atenção e mimo que eu acho que mereço, eu e qualquer mulher ou qualquer homem, seria rifado de imediato. Santa paciência.
Teria que ir à praia sozinha, teria que atinar com o berbequim ou teria que ir sozinha ao restaurante. Acredito que não seja a melhor coisa do mundo mas é certamente melhor do que uma pessoa anular a sua autoestima para fazer de conta que tolera ou que aprecia a pouca coisa que o pouca-coisa tem para dar.
E depois há a família e os amigos para fazerem companhia. E há as oportunidades que estão sempre a aparecer, assim a gente esteja disponível para as perceber e aproveitar.
Não posso falar de experiências que não tive. Posso apenas imaginar.
Se vivesse sozinha não teria a quem me encostar nas noites frias. Mas, pelo contrário, não teria um corpo quente a encostar-se a mim nas noites de calor. Há sempre um lado bom em tudo.
Sinceramente, não sei como seria comigo se me visse sozinha, sem companheiro. Se me puser a pensar nisso, acho que depois da estranheza de ter que me virar sozinha em coisas com que hoje não tenho que me preocupar (colocar pesados varões para cortinados, pintar muros, andar com uma roçadora a cortar mato ou coisas afins), me sentiria como me senti quando, adolescente, estive um mês num país africano que não conhecia, maioritariamente rodeada de desconhecidos, a viver situações até então desconhecidas... e feliz, feliz da vida, cada dia uma descoberta, cada dia um imenso sentimento de liberdade. À distância de algumas décadas penso que foi pena foi não ter aproveitado ainda mais. Se fosse hoje, com as facilidades que hoje há, provavelmente teria ido viver (fosse para estudar, fosse para trabalhar), nem que fosse durante uns meses ou um ano, num país desconhecido. Gosto do desconhecido.
Mas, na altura, com a cultura e os hábitos de então e porque o lado familiar sempre esteve muito presente em mim, foi como foi e ainda bem que assim foi. Mas sei bem que há muitas maneiras de uma pessoa se sentir realizada e feliz e muitas delas não passam por um casamento de longa duração como o meu.
E vem isto a propósito de um vídeo que hoje me apareceu: The high price we pay for our fear of loneliness.
Ainda hei-de perceber o racional do algoritmo do YouTube. Creio que muitas vezes atira o barro à parede e, a partir dos vídeos que despertam o meu interesse, levando-me a abri-los e vê-los até ao fim, vai desenhando o meu mindset: Esta gosta de macacada, de arte, de arquitectura, de decoração, de política, de jardinagem, de música, de dança, de psicologia, de poesia... e, portanto, deixa cá ver o que é que se arranja para aqui a ver se ela morde o isco.
Quando eu partilho alguns vídeos deve ser a apoteose algorítmica e, portanto, a partir daí é iguaria que não falha no menu.
E estava a ver o vídeo acima referido e, a seguir, apareceu um outro que também me pareceu relevante. The fear of being alone and narcissistic relationships. Muito interessante e, creio, muito esclarecedor.
Pode a maioria das pessoas andar preocupada com matérias mais filosóficas ou mais prementes na actualidade e toda esta conversa soar a nonsense típico da silly season. Talvez. Mas acredito que, para além do eu-social ou do eu-político, há em todos nós o eu-eu que dá atenção a temas que têm a ver com assuntos mais pessoais. Por isso, tenho esperança que o tema deste post seja útil para alguns de vós que, aí desse lado, me ouvem a respirar.
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The High Price We Pay for Our Fear of Loneliness
We often make some very peculiar and regrettable choices on the basis of a hidden and unmentioned fear: that of being alone. But once we realise that there isn't, in fact, anything to fear about being on our own, we'll be liberated to make some far healthier decisions.
The fear of being alone and narcissistic relationships
Nota: Tive dúvidas no título. Deverá ser como escrevi 'O medo de se ficar sozinho' ou 'O medo de se viver sozinho' ou 'medo de se estar sozinho ' ou 'o medo da solidão? Não sei. O que acham?
Recebi uma chamada de uma ex-colega com quem antes falava bastante. Agora estamos em empresas distintas, cada uma trabalhando em teletrabalho, as casas longe uma da outra. Deixámos de nos encontrar quotidianamente pelo que, cada uma com o seu trabalho e a sua família, a oportunidade para nos pormos à conversa não surge naturalmente. Ligou-me estava eu em reunião. Avisei que ligava depois e liguei. Estivemos mais de uma hora, de gosto, à conversa.
Contou-me de um outro, nosso conhecido, que está reformado há uns dois ou três anos e que continua a trabalhar. Diz ela: só sabe trabalhar, não se vê a estar em casa sem nada que fazer. A mulher ainda trabalha, o filho está no estrangeiro, o neto também. Portanto, nada o puxa para casa. Já reformado? Não fazia ideia. Fiquei muito admirada. Deve ser um bocado angustiante uma pessoa saber que já pode, e se calhar deve, ficar em casa, não precisar de mais dinheiro e, portanto, trabalhar apenas porque não sabe, ou não quer, fazer mais nada.
Esta minha ex-colega, que tem família numerosa e que antes relatava vitórias e provações dos filhos, dos netos, dos genros, dos compadres e demais familiares, agora, por causa da covid que a força a estar longe dos familiares, fala-me de animais de estimação, de flores, de passarinhos no jardim, da horta -- e está igualmente feliz. Já antes aqui falei dela. Tudo lhe tem acontecido e tudo ultrapassa com uma perna às costas, sempre na boa, sempre na levezinha.
Hoje, ambas na má língua a propósito de uma outra, rimo-nos a bom rir. E o que ela penou para aturar a outra, uma incompetente e vigarista encartada, uma flausina que mascarava o bluff que era com um rebuscado charme. Mas penou também na desportiva pois achava a outra tão postiça que não conseguia levar a sério tudo o que vinha dela. Agora que a outra deu de frosques, ainda mais na desportiva ela encara aqueles anos que poderiam ter deitado abaixo o seu optimismo. Contou-me cenas da outra, cenas verdadeiramente imperdoáveis, altas sacanices, e fartámo-nos de rir.
Habituada a uma casa sempre cheia e a andar num virote para ir trabalhar longe de casa e para acudir à legião que sempre estava de passagem por sua casa, isto quando a criançada não era lá deixada (o que era quase inevitável dada a profissão dos pais), agora vive o oposto e continua feliz da vida. Perguntei: 'e não sente a falta da barafunda?'. E ela, rindo: 'eu não; vemo-nos por vídeo; e temos tempo, qualquer dia isto passa; e nunca tive uma vida tão regalada como agora; não quero outra coisa'. Diz que faz o mesmo trabalho que fazia antes ou talvez mais mas não perde tempo com o trânsito, que o trabalho em casa caiu para perto de zero e que isso lhe sabe a merecidas férias. E ri de gosto.
Li que umas pessoas estão desesperadamente sós e outras desesperadas por ter um tempo só para si. E perguntam onde nos encaixamos. Fiquei a pensar. Durante muito tempo desejei ter disponibilidade para estar sossegada ou para fazer o que me apetecesse. Agora, com o confinamento, tudo se alterou. Mas porque coincidiu com isto o ter mudado de trabalho e ter pela frente e em mãos um desafio muito absorvente (por vezes, esmagador), o que aconteceu é que o meu tempo de trabalho tem galgado para o tempo do descanso. Talvez por isso, não sinto sombra de solidão. Mas a verdade é que nunca a senti. Não me lembro de alguma vez me ter sentido sozinha. Mesmo se alguma vez o estive, ocupei o tempo a fazer coisas que me sabem bem fazer. Posso agora sentir saudades de estar com os meus, de os ter próximo de mim, mas o tempo em que estou sozinha sabe-me bem. Claro que sozinha também não estou. Mas, de vez em quando, gosto de estar no meu canto e isso é bom.
Contudo, penso nas pessoas que vivem sozinhas e que, com o confinamento, não podem sair e encontrar-se com amigos. Deve ser muito triste. Aí a solidão deve pesar e de que maneira. Penso também nas pessoas que estão vinte e quatro horas por dia com companheiros com quem já não sentem grande afinidade, com filhos que impedem que certas situações se esclareçam de frente, com trabalho a fazer e sem um minuto de privacidade. Deve ser de deixar os nervos em franja, um sufoco, uma asfixia.
Por tudo o que se tem passado na casa e na vida das pessoas, imagino que, logo que isto desconfine a sério, muito desequilíbrio emocional venha a ver a luz do dia. O que tem que rebentar, há-de rebentar quase como uma explosão e isso, antevejo, acontecerá mal se volte a sentir o prazer da liberdade que acompanhará o alívio ou a ausência de medo.
Eu o que me apetece fazer, para além de voltar a ter a família reunida, é passear pelo meu país. Tenho muita vontade de andar a descobrir montanhas ou a beira de riachos escondidos entre arvoredos. Muita, muita.
No outro dia, uma com quem conversava pelo telefone dizia que estava cheia de saudades de fazer retiros daqueles em que passava uma semana ou um fim de semana prolongado enfiada num mosteiro, em silêncio, fazendo meditação, ioga, lendo. Sem computador ou telefone, sem conversar. Só silêncio. Estando em teletrabalho e tendo mandado o companheiro bugiar, sozinha em casa, aquilo de que tem saudades é de retiros de silêncio. Acho notável. E a verdade é que a percebo. Será um silêncio de qualidade ao passo que agora o seu tempo está preenchido com o trabalho e com banalidades. Contou-me, cheia de orgulho em si própria que, no verão, pela primeira vez na vida, foi passar férias sozinha e que tinha adorado. E que essa sensação de liberdade a deixou cheia de confiança e cheia de vontade de ir à procura de coisas novas. Eu ouvi-a espantada com a transformação que senti que estava a operar-se nela.
Vamo-nos adaptando a tudo mas a adaptação é, em si, uma transformação. E há transformações profundas que, forçosamente, nos farão ver o mundo de forma diferente mesmo que as circunstâncias voltem a parecer-se com o que eram antes da fractura da covid. E há decisões que antes temíamos e que, quando menos dermos por isso, nos vão parecer naturais, inevitáveis.
Moral da história? Nenhuma, ora essa. A história de cada um é coisa de cada um e geralmente não tem moral que se cheire.
Tenho dito.
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E agora vou partilhar um vídeo com o que agora gosto de ver -- não notícias, não comentário, não coisas com as quais não aprendo nada. Só coisas tranquilas. Não sei se são coisas úteis ou apenas curiosas. Ou apenas silenciosas. Seja por que for, gosto.
Um outro dia, Filo. Mais um dia sem história, um daqueles dias que, mal acaba, imediatamente desaparece esvaindo-se no buraco negro que parece querer sugar-nos.
De novo, desde que me levantei até depois das dez da noite, não tive um segundo de descanso. Tempos complexos. E à noite confeccionei o almoço de amanhã pois durante o dia não consigo. E só às sete e tal da tarde, quase a correr, depois da última reunião, consegui uns minutos no campo. E depois os telefonemas. Muitos. Cheguei à sala depois das onze da noite. Não consegui, sequer, ver os noticiários. Chegam-me, das reuniões, notícias arrepiantes nas quais nem quero pensar. Contudo, inevitavelmente os telefonemas da família giram em volta disto. O meu marido zanga-se, já não consegue ouvir conversas sobre o assunto. Mas, todos confinados, como não desabafarmos quando falamos uns com os outros?
Angustia-me não saber quando poderemos retomar a vida normal, ter a mesa grande de novo cheia, a bancada cheia de travessas de comida que voam num abrir e fechar de olhos, os meninos a brincarem, as sessões de cantoria, ou todos no jardim da minha mãe, ela toda contente com a família em volta. Enquanto cozinho, um cheirinho gostoso pelo ar, penso que eles iriam gostar e depois penso, com pena, que, se calhar, nem tão cedo eles poderão comer a comida que tão dedicadamente confecciono. Angustia-me pensar nisso.
E depois há o medo. De tarde, nas VCs (vou escrever assim para abreviar as VideoConferências) quase sinto que o diabo -- em forma de milhões de bichos malignos e invisiveis -- começa a aproximar-se de cada um de nós. Ouço que uma pessoa com quem estive a semana passada deve estar infectada e que parece que não está nada bem. Outro esteve num local carregadinho de bicheza e estive também com ele várias vezes durante a semana passada.
Aliás não, que disparate. Já viu como ando, Filo? Estava a escrever 'semana passada' depois de recordar os dias e os locais onde estive com cada um deles. E agora reparo que não, que já foi na outra semana. O tempo confunde-se na minha cabeça. Tão depressa me parece, para algumas coisas, que já foi há muito tempo, talvez até numa outra vida, como, para outras, me parece que foi há três e quatro dias e, afinal, há que somar a semana de hibernação que já passou.
Quando percebo que devo ter estado ao lado de alguém que, se calhar, agora está infectado, penso: ainda bem que não fui a casa dos meus pais. Tenho tanto medo de ser veículo de um bicho que, dada a idade e condição deles, os encontre indefesos. Mas, ao mesmo tempo, custa-me tanto não ir lá. Há muitos anos que vou todas as semanas. Agora é a minha mãe que não me quer, insiste: 'não preciso, tenho tudo, não preciso, não venhas'. E eu, perante estas situações que, na altura, desconhecia penso que é mesmo melhor que me mantenha aqui, acompanhando-a à distância, a ela (e ao meu pai, coitado, sem se dar conta de nada disto).
É verdade, sim, Filo, esta mudança súbita, este afastamento e este desconhecimento e temor pelo que aí vem, assustam-me, preocupam-me, deixam-me um bocado desalentada.
Claro que a minha maneira de ser leva-me, durante o dia, a atirar estes estados de alma para trás das costas e penso que os que trabalham comigo me acham capaz de virar o mundo do avesso. Mas, ao contrário do que é costume, chego a esta hora e estou tão exausta e apreensiva que não consigo disfarçar.
Mas, ao mesmo tempo, tenho esta sensação -- talvez absurda, João, talvez acabe mesmo por desiludir-me -- de que este era o tropeção na linha do tempo de que o mundo estava a precisar para recuperar o equilíbrio e voltar a encaixar-se no planeta. Como se na vida de excessos que nós levávamos (e falo em nós de forma genérica, claro), consumistas até à medula, distantes da natureza, narcisistas e estúpidos, histéricos e absurdos, estivéssemos a precisar de um par de estalos. E, saído das profundezas na terra, um insignificante e insignificante bichículo está a ser suficiente para nos provar que temos pés de barro, que somos umas frágeis criaturas que vão ao tapete num abrir e fechar de olhos.
Diz o João, o outro João, que o René Thom (o matemático da Teoria das Catástrofes) escreveu um livro há muitos anos (e não me lembro bem se o diz explicitamente ou se fui eu que tirei umas pelas outras) onde defende que grandes transformações e saltos evolutivos/qualitativos na Biologia e na sociedade ocorrem nas bifurcações que as catástrofes abrem; ou vamos por um lado ou pelo outro, irreversivelmente. E é isso que eu acho. Tomara é que, a seguir, não sigamos pelo lado errado.
Mas acredito que não, acredito que, ainda que trôpegos e apalermados, haveremos de cair na real e passar a ter uma vida mais racional, mais respeitadora do habitat em que nos foi dado o privilégio de viver.
Só não sei é se acredito mesmo ou se quero acreditar. Mas isso agora também não interessa para nada.
Agora não é tempo para grandes dissertações, agora é tempo de sobrevivência e de quarentena. Nós e a Dona Helena.
Sabe, Filo, quando, num outro tempo, fui passar três dias à Barragem da Aguieira éramos para ter ido ao lugar onde agora está. Não fomos porque estava chuvoso e achámos mal empregado ir para aí com tempo assim. Tinha visto fotografias e tinha achado um lugar muito bonito. Um dia destes tenho que lá ir conhecer. Perto do mar, perto da Lagoa, perto de terras muito bonitas. Desfrute. E daqui lhe envio um sentido agradecimento pelo carinho que me enviou por outra via.
Cedo começámos a fazer festas que incluiam sessões dançantes. Formou-se um grupo que durante anos se manteve unido e, por uns motivos ou por outros, o que interessava era que houvesse pretexto para dançar. Vários rapazes vieram a dar engenheiros e, talvez por vocação, desde miúdos, havia iluminação especial e instalação sonora a acompanhar a selecção musical. Coisa a preceito. Alguns de nós morávamos em moradias que tinham garagens, outros em grandes andares nos quais parte da casa era transformada em discoteca.
Havia um, franzino, apagado, que era muito atilado, filho de figura institucional da cidade, homem distante e austero, e de uma mãe também muito senhora, pais mais velhos do que a maioria dos pais, que viviam numa moradia antiga, solarenga. Contudo, na mais pura contradição dos termos, não apenas arranjou uma namorada mais alta, mais forte e muito mais desempoeirada que ele como organizava as mais desopilantes festas. Em casa da namorada dele, minha grande e divertida amiga, filha muito mais nova de três irmãos, as festas também era à solta. Se a mãe dele ainda aparecia para nos receber e cuidava de arranjar belos lanchinhos para os amigos do filho, aos pais dela nunca conheci. Conhecia os irmãos mas os pais não estavam nem aí. Foi através dela que vieram os primeiros ensinamentos sexuais, os quais ela colhia junto de irmãos e primos.
Outra era a minha melhor amiga. Eram também três irmãos e vários primos. O pai era um bon vivant e a mãe, triste pelo comportamento do marido e cansada pela agitação da miudeza, também se refugiava na sua marquise ensolarada ou numa estufa que havia no jardim e deixava-nos na maior largueza.
Portanto, quase todos os fins de semana havia festa. A partir do que hoje é o décimo ano passámos também a ter os convívios no liceu, supostamente para angariarmos dinheiro para a excursão de finalistas.
Entre nós, havia vários casais. Eu estava apaixonada por um enfant terrible e ele por mim mas, já o disse várias vezes, éramos tão temperamentais que grande parte do tempo estávamos arreliados, eu a fazer-lhe ciúmes como vingança por achar que ele não me cortejava o suficiente, ele zangado comigo por eu supostamente andar a dar atenção ou a achar graça a outros. Mas, seja como for, éramos empolgados namorados, e de tal forma que nos chamavam o Romeu e a Julieta. A seguir chegou outro que cantava e fazia poemas para mim, deixando o legítimo desvairado. E, entre um e outro, eu não tinha mãos a medir -- emocionalmente falando, claro. Mas isto para dizer que, durante as festas, eu tinha sempre par para dançar. Claro que dançávamos em grupo e sozinhos mas o grande apelo era dançarmos a par, slowzinhos bons, abraçadinhos, a sentirmos como o nosso corpo tinha vontade própria. E mal a música começava, logo um ou outro me vinha buscar para dançar.
Eram outros tempos. Hoje já nada disto faz sentido. Mas, na altura, apesar da nossa liberdade e de estarmos ali por nossa conta, havia o costume de serem os rapazes a irem 'buscar' as raparigas. E havia geralmente duas ou três raparigas que ficavam para o fim. A mim custava-me muito isso. Muitas vezes, estávamos todos a dançar e elas ali sentadas ou encostadas e uns dois ou três rapazes, feitos mongas, de roda da música ou das luzes ou a arranjarem desculpa para não as irem buscar. Doía-me ver como elas ficavam a disfarçar, tentando fingir que não se importavam. Muitas vezes eu pegava naqueles panhonhas e ia eu levá-los até elas. Tirava-me a alegria olhar para elas e pensar que deveriam sentir-se peças sobrantes. Naqueles dias de zanga entre mim e o meu grande e tumultuoso amor, acontecia ele estar amuado e não me vir buscar; e os outros, sem saberem se o campo estava livre, hesitavam e eu, por breves momentos, sentia o que seria a sensação de ficar a sobrar. Nunca sobrava pois, na perspectiva de algum outro se antecipar, ele chegava-se à frente e, se esperava demais, era eu que tomava a dianteira e desafiava algum outro.
No entanto, apesar de ter sido grande namoradeira e de ter sempre um belo grupo de amigos, nunca prescindi do meu tempo. Mesmo nesses tempos de grande euforia adolescente, à noite, depois de estar com os meus pais na sala a vermos televisão, eu ia para o meu quarto e lia até tarde. Precisava de estar sozinha. Sempre precisei de silêncio, sossego, tempo meu, alguma solidão. Mas era solidão voluntária e isso faz toda a diferença.
Uma outra recordação: não gosto de tomar refeições fora sozinha. Lembro-me de quando andava na faculdade. O primeiro ano foi uma seca. Gente marrona, pouco dada a festas, a distrações. Uma tremenda desilusão, aqueles primeiros meses na faculdade. Andando o meu namorado noutra faculdade, quando não conseguia almoçar comigo -- e não tendo eu ainda arranjado amigos novos -- quando ia almoçar na cantina, acontecia-me estar sozinha. Detestava. Felizmente havia sempre alguém que se juntava e eu acabava sempre por ter companhia. Aliás, foi assim que arranjei um grande amigo, alguém que vinha de um outro mundo, que me trazia vivências para mim totalmente desconhecidas. Passava horas à conversa com ele. Horas. Ouvia-o fascinada. Vivia numa residência, tinha muito pouco dinheiro, pouca roupa e nitidamente roupa pobre, os pais tinham uma pequena mercearia no interior do país, tinha uma irmãzinha pequena de quem gostava imenso e a quem comprava presentinhos para levar quando ia a casa de visita. Emocionava-se quando falava da menina. Tinha uma fotografia dela na carteira, uma menina loura como ele e, como ele, com aquele ar saudável da província. E depois havia aqueles estudantes africanos, negros retintos, com corpos extraordinários, e que tinham uma simpatia desconcertante por mim. E eu achava-lhes graça, achava graça ao que eles gostavam do meu cabelo, achava graça à sua inocência ao virem oferecer-me iogurtes como se fossem presentes valiosos. Por isso, por um ou outro motivo, eu acabava sempre rodeada de gente divertida ou curiosa, a ouvir histórias que me pareciam exóticas.
Mas via pessoas solitárias, sozinhas, a olharem para o vazio. Se por vezes tentava aproximar-me, notava que eram pessoas que tinham alguma dificuldade em interagir. Não me parecia que gostassem simplesmente de estar sozinhas mas, pelo menos parecia-me, não sabiam bem como interagir, faltava-lhes naturalidade. Ficava com a sensação que sentiam alguma timidez, algum embaraço por não terem companhia, mas conviver não era natural para elas.
E assim, por um ou outro motivo, sempre havia pessoas desirmanadas, sozinhas, ar vagamente perdido.
Hoje tudo isto seria impossível: ou porque já não é assim que funciona ou porque todos os instantes são preenchidos com o telemóvel ou com o tablet ou computador. Em qualquer circunstância em que alguém está sozinho, salvo raras excepções, está a ver ou a interagir com um destes dispositivos. Será o horror ao vazio, à solidão, será a necessidade absoluta e permanente de parecer acompanhado, a interagir com 'amigos'. Estar simplesmente a olhar para ontem é coisa que já não existe.
Mesmo em reuniões, tenho colegas que estão com o computador ligado e sempre a verem qualquer coisa, a escreverem. Dir-se-ia que têm assuntos urgentes a tratar, dir-se-ia que gostam de passar a imagem de alguém a quem os outros ou as circunstâncias não dão tréguas. Mas, sempre que vejo o que fazem, constato que estão simplesmente a manter-se ocupados com tretas que poderiam esperar: ou mails banais ou notícias.
Mesmo em sociedade ou em família o que não faltam são pessoas que, a meio do convívio, estão a ver o que outros postam no facebook ou no instagram, colocando comentários ou smiles. Parece que há a obsessão pela conexão, pelo preenchimento total de cada instante. Na paragem de autocarro, na mesa do restaurante, na sala de espera, na fila de supermercado, mesmo enquanto andam, são raras as pessoas que não estão a ver o telemóvel. No outro dia, alguém estava com ar muito compenetrado, muito atarefado. Quando vi que estava a fazer um jogo de cartas, fiquei estupefacta. Dá ideia que ninguém quer ser apanhado em flagrante delito de solidão.
E se hoje estou a recordar cenas minhas ou a referir estes temas é porque li um artigo que achei interessante e cuja leitura recomendo a quem consiga entender-se com a língua francesa.
(...) ce serait «pour ne pas entendre. Ne pas entendre le vertige qui nous saisit lorsque l’on pense ! Ne pas être seul, c’est ne pas avoir à négocier avec nos peurs, notre culpabilité et notre responsabilité. La solitude impose une posture de lucidité, la lumière crue. Ne dit-on pas "Ne reste pas seul" dans une période délicate ? Être seul est une épreuve métaphysique. Or, nous vivons une période si angoissante que beaucoup ne peuvent plus supporter cette épreuve. Et puis, la solitude n’est pas très instagrammable ! Sauf si on ajoute un plaid, un livre, un chat et un thé chaud !» (...)
São os tempos que vivemos. Vivermos sem internet disponível em todo o lado já nos pareceria coisa insuportável, própria de desertos e inóspitas lonjuras, ou, então, hábito dos ctónicos, esses seres misteriosos dos quais descendo e que só hoje fiquei a saber que têm este intrigante nome.
Cá para mim as fotografias que aqui hoje coloquei não têm muito que ver com isto mas também não sei porque haveriam de ter. São da autoria de Terry O'Neill e grande parte delas obtive-as no The Guardian. E vêm ao som do violoncelo de Yo-Yo Ma e da voz de Alison Krauss que tentam aqui introduzir o tema do Natal que, parecendo que não, já por aí anda nas iluminações, nas montras e por todos esses novos lugares de culto.
Era para ter optado pela Janis Joplin que, para sempre, associarei a essas dias iniciáticos da minha adolescência mas depois reconsiderei: afinal o tema deste post não é sobre essas eternas tardes dançantes mas, sim, sobre um dos grandes males dos tempos presentes, o pavor da solidão -- e, vá lá saber porquê, apeteceu-me condimentar as minhas palavras com um cheirinho a natal.
A menininha linda também gosta de podar árvores. Sozinha cortou uma rodada de ramos altos de cedro. Ajeitou-se com aquele serrote na ponta de um grande cabo que ofereceram ao avô pelo Natal. O bebé pegou num pau grande, uma estaca redonda e comprida, e andava também com ela ao alto debaixo das árvores a fazer de conta que fazia o mesmo que a mana e os grandes faziam. Também andou com o carrinho de mão onde punhamos as folhas secas e ia despejar, todo contente por ir despejar o 'lixo'. O mano do meio preferiu andar de bicicleta, anda em grande velocidade e, se cai, levanta-se, sacode-se e volta a montar-se e a pedalar. No carro, quando íamos petiscar, enquanto eu falava com a minha mãe, pediu para eu contar que também andou a pôr ramos na fogueira.
O pai deles deitou abaixo, à machadada, um pinheiro. Dito assim custa a crer e eu, se não tivesse visto, ficaria admirada. Mas assisti e confirmo: atirou abaixo um pinheiro alto à força de machadadas. E cortou um ramo gigante de eucalipto. Quando o ramo estava quase separado do tronco principal, começou a ouvir-se ranger, depois as folhas a agitarem-se e, de repente, aquele grande volume desabou lentamente, a despegar-se progressivamente, até que, num grande estrondo, caíu por terra. Desramou também vários pinheiros em altura, serrou os troncos grandes em troncos pequenos e ajudou na fogueira. Ao fim do dia estava, tal como os filhos, cansado e cheio de sono. A mãe dos meninos também desramou pinheiros e varreu o 'campo de futebol' que estava pejado de folhas secas. Ao fim do dia adormeceu no sofá mas, à noite, era a que estava mais acordada pelo que foi ela que foi a conduzir de volta para casa.
Eu também desramei árvores mas hoje não muitas pois, sobretudo, andei atrás do bebé (que já não é bem um bebé mas um rapazinho lindo e terrível, muito independente e cheio de personalidade e, não menos importante, com um sentido de humor fantástico: faz patifarias e, se vê a minha cara espantada, desata a rir à gargalhada). Também trouxe os meninos para casa para lancharem e para ficarem a brincar aqui à porta de casa enquanto os crescidos ficaram no trabalho pesado lá em baixo. E fiz também um ditado à menina já que vai ter teste na segunda-feira e os pais fazem questão que se prepare.
O meu marido, por seu lado, arrastou toneladas de ramos para a fogueira (queima esta devidamente autorizada, refira-se, que isto agora está, e bem, tudo controlado) e disse-me que também desramou árvores.
Conto-vos: é impressionante a quantidade brutal de ramos e de árvores que se têm cortado e queimado e de cuja falta não se sente -- já que tudo o que fica se desenvolve à força toda, num vigor assombroso.
Como sempre, quando já estavamos apenas os dois, cheguei aqui e adormeci. O meu marido anda na mesma e queixa-se: 'um gajo não descansa'. É que, se as semanas úteis pedem o descanso do fim de semana, a verdade é que há não sei quantos que não temos podido ter as merecidas tréguas.
De cada uma das coisas de que aqui falei tenho fotografias. Vou acompanhando o andar do tempo quer com as minhas palavras, quer com as minhas fotografias. Não é apenas a permanente transformação da natureza que vou registando, é também a transformação dos meninos. Estão grandes, desenvoltos, amorosos.
Entretanto, ao abrir o YouTube, voltou a aparecer-me, como sugestão, o trailer do filme que tentarei não perder quando cá aparecer: Celle que vous croyez. Não sei bem como traduzir: Aquela em que acreditas? Aquela que achas que conheces? Aquela que tu julgas que eu sou? Talvez seja mais este último.
Já tinha visto pois tem-me aparecido amiúde. E já li e vi entrevistas, nomeadamente com a actriz principal, Juliette Binoche.
É a história de Claire, uma professora universitária com 50 anos, que, para se vingar de um amor perdido ou para se desforrar da sua condição de mulher a perder o viço ou apenas para tentar viver uma situação emocionante (não sei -- nem sei se ela sabe), cria um perfil falso, o de Clara (Clara Antunes porque, quando estava a criar o perfil, ao pensar no nome, pousou o olhar num livro de Lobo Antunes).
Para tal inventa que tem 24 anos e, para a coisa ser credível, arranja uma fotografia de uma rapariga bonita e usa-a. Aproxima-se, então, de um jovem, amigo do ex-amante. Aos poucos o jovem apaixona-se por ela. Ela é simpática, sempre presente, usa frases joviais, emojis e outros bonequinhos, e assim vai enleando o ente cada vez mais seduzido. E do facebook passa para o telefone. E, aos poucos, vai, também ela, ficando prisioneira do avatar que criou, passando de sedutora também a seduzida. Rejuvenesce, apaixona-se. E, no entanto, ela é apenas uma voz, palavras, uma presença remota. Só que o mistério e intangibilidade seduzem. O trailer mostra as sessões que Claire tinha com a psicóloga, onde explica o que se passa.
Sem culpa: pelo contrário, com desarmante franqueza, Claire explica que, se não se disfarçasse de jovem alegre e descontraída, Alex, o jovem, não se apaixonaria por ela.
Este mundo virtual em que se podem criar personagens, inventar-lhes uma identidade, criar laços com outros seres que igualmente são nada mais do que presenças intangíveis do lado de lá do espelho é algo que me interessa bastante.
Tenho conhecido personagens assim, por aqui.
Uma coisa é uma pessoar ser anónima. Por razões pessoais ou profissionais uma pessoa pode não revelar a sua identidade. É o meu caso. Mas, em tudo o resto, haver verdade e, até -- se no mundo virtual faz sentido falar nisso -- haver transparência. UJM sou eu.
Mas outra coisa é inventar personas, dar-lhes um nome e criar para elas uma imagem, uma história, uma maneira de ser. Note-se que, ao falar, não critico isso pois admito que seja um caso psicológico, uma impersonalização, uma transposição de uma personalidade ficcional para um avatar. Não sei explicar bem mas admito que possa até não ser coisa voluntária ou racional. Suponho que o próprio acaba -- tal como Claire ficou prisioneira de Clara -- também refém das mentiras que vai criando para dar vida ao seu personagem, e isso dá-me alguma pena.
Há depois outras pessoas, pessoas com frustrações, que vivem vidas de solidão, e que preenchem o vazio aproximando-se virtualmente de outras pessoas, imaginando amizades maiores do que são na realidade, ficcionando afectos, insinuando-se, seduzindo. E, se percebem que, do outro lado não há disposição para alimentar essa fixação, forjam novas personagens que usam para se vingarem, para acusarem, para difamar, intimidar. E, de novo, falo nisto sem crítica. Acontece e há que aceitar que a vida é cheia de situações que preferíamos que não existissem. Mas o mundo não é perfeito. Há pessoas com problemas, que precisam de ajuda. Mais do que rejeitá-las, tenho pena, desejo que procurem apoio, que se tratem. Viver uma vida na sombra de personagens, ou mostrando uma carência afectiva muito grande ou mostrando rancor pela felicidade alheia, é uma forma estranha e, creio, pouco saudável de viver a vida.
Mas, enfim, não tenho conhecimentos suficientes para saber qual a melhor forma de lidar com estas situações. Diria que não se deve alimentar a dependência dessas pessoas, que o melhor é deixar que percebam que devem procurar tratamento ou alguma outra forma de apoio. Mas não sei mesmo.
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Lamento não conseguir responder aos comentários ao post de ontem. Passa bem das duas da manhã, estou perdida de sono. Se conseguir ligar o computador durante o dia, tentarei responder. Vai ser muito preenchido mas pode ser que tenha uma aberta. Aceitem as minhas desculpas.
As pinturas que usei neste post são de Hee Sook Kim.