sexta-feira, março 30, 2012

Vítor Gaspar e o Orçamento Rectificativo; o Banco de Portugal e o agravamento da recessão; o autismo deste Governo face à evidência dos factos. É hora, meus amigos de Calling all Angels. E, para não falar mais disto, que me enerva, vou falar-vos de Eva, da sua entrevista e da respectiva sessão fotográfica.

Música, por favor
Jane Siberry - Calling all Angels


Os sinos tocam a rebate.

Notícia de quinta feira: a economia cai ainda mais aceleradamente do que o próprio Banco de Portugal tinha previsto. É a recessão a cavar uma cova mais funda. O BdP, a insuspeita entidade governada pelo insuspeito Carlos Costa,  revê em baixa as previsões. Claro. Quando se trabalha tão afanosamente no sentido da destruição do tecido económico e quando se retira tanto dinheiro da economia, o que se esperaria? Claro que  o consumo cai abruptamente e todo o edifício vai ruindo.

E a receita fiscal diminuiu. Apesar do pesado agravamento da carga fiscal, apesar de todos nós recebermos muito menos, a colecta é inferior. Claro. De que é que estavam à espera...?

Com tantas empresas a colapsarem ou a patinarem, é natural que os resultados (leia-se: ‘lucros’) caiam a pique (e o IRC, acompanha a queda, é claro). Com tanta gente desempregada ou a ganhar menos, é natural que o IRS também caia. Com tantas dificuldades, é natural que o consuma caia e, portanto, menos IVA. Era difícil prever isto? Eu acho que não. Eu acho que isto era mais do que óbvio, um óbvio do mais cristalino que há.

Quando a economia é atacada, todos os impostos que dela dependem, caem também. Aumentá-los numa altura de definhamento económico é pura parvoíce. O efeito é sempre contraproducente pois, ao agravar a carga fiscal, depaupera-se ainda mais a economia. Medidas destas aceleram os movimentos recessivos. Medidas destas nestas alturas põem a história a andar para trás, anulam o desenvolvimento atingido, dão cabo da vida de uma geração. São inaceitáveis.


Claro que há quem se fie na virgem e mesmo com a fera enraivecida a correr na sua direcção, se deixe estar quieto à espera que a virgem salte da azinheira para vir em seu socorro. Não haverá muita gente assim mas ainda há alguns.

Ou é isso ou, então, não é por parvoíce, mas sim, acções estudadas para que isto fique tão de pantanas que, quem queira, possa vir comprar tudo a preço da uva mijona. O tecido empresarial todo nas mãos de estrangeiros (e mais: de estados estrangeiros!)

É verdade que a dívida baixa, isso é verdade. E assistimos aos nossos fantásticos governantes a gabarem-se disso. Mas, de facto, é mesmo aquela coisa de deixar de gastar dinheiro a comprar ração para o cavalo – poupa-se é certo. A chatice é que o cavalo, ao fim de algum tempo, morre. Será isso pormenor?

Perante este lindo cenário, as consequências são as óbvias: os juros voltam a subir, o risco do País enfrentar a bancarrota volta a subir. E o BdP prevê que este ano o País vai perder mais cerca de 170.000 postos de trabalho.

Se me perguntarem se eu acho que Passos Coelho, Miguel Relvas e respectiva entourage já perceberam que estão a fazer asneira da grossa, posso confessar-vos que não estou certa disso. Acho, isso sim, que tudo isto é muita areia para a camioneta deles.

O mais que Passos Coelho consegue, seguindo certamente um conselho do gabinete de Imagem (onde lhe devem ter dito para se mostrar solidário com os sacrifícios dos pobrezinhos), é dizer o que disse no Congresso do PSD e passo a citar: ‘Como se costuma a dizer, isto está a sair-nos do lombo’. Gente erudita exprime-se assim.

Quanto a Miguel Relvas, não nos esqueçamos que se licenciou apenas há 4 anos e em Ciências Políticas e Relações Internacionais, coisa em que o dizem influente e exímio, mas, note-se, isso é matéria que se encontra a anos luz de números, de ciência exacta, de gestão económica. O negócio dele é outro. 

Isto, meus Caros, é muito preocupante. As pessoas estão a ficar sem dinheiro, há gente demais a ficar sem emprego, há empresas demais no limiar da sobrevivência, a economia afunda-se a uma velocidade crescente – e, no Governo, não há capacidade ou vontade de inverter caminho.

E cá estamos, ainda em Março, e já com um Orçamento Rectificativo que não apenas vem repor a nabice de se terem esquecido de orçamentar as despesas originadas pela absorção do fundo de pensões dos bancos, como também de se terem enganado a prever as receitas, e, também, de se terem enganado a prever as despesas. Enganaram-se redondamente. Nabice, nabice pura, incompetência primária. 

Riem-se de quê? Riem um do outro? - só se for isso...

Vítor Gaspar não sabe o que é gerir uma pasta de finanças (dizem que é jeitoso como estudioso nos bancos centrais mas isso não sei; o que sei é o que vejo e o que vejo é que, a fazer o que está a fazer agora, vem dando sucessivas mostras de que se engana vezes demais). Perigoso isto.

Mario Draghi, no BCE, nos últimos meses, fez aquilo que tinha que ser feito: injectou liquidez na economia europeia, emprestando dinheiro barato aos bancos. Fez isto para ver se consegue reanimar minimamente a economia. Contudo, cá, essas medidas não produzem efeito porque o País está ser governado por pessoas que não percebem estas questões elementares, que não conseguem estabelecer qualquer nexo causal, que continuam apostadas no estrangulamento económico.

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Se a prece de Calling all Angels, linda, já acabou, é agora vez de pormos esta a tocar
Maria Bethania - Teresinha, composição de Chico Buarque


Sinceramente, isto deixa-me apreensiva e desgostada e tira-me a vontade de brincar, de ficcionar.

Assim, nem tenho grande ânimo para vos contar o que se passou hoje com Eva. Dir-vos-ei apenas meia dúzia de coisas:

1.   Teve lugar uma entrevista para um jornal de referência sobre a operação da véspera (a aquisição de uma grande empresa). Por ser uma mulher interessante e dada a comportamentos assim 'a modos que' out of the box, desafiaram-na para uma sessão fotográfica um pouco diferente. Concordou. A coisa teve lugar no seu gabinete. Depois de uma noite bem dormida, Eva estava pronta para a guerra. O fotógrafo tinha-lhe dito que gostava de explorar o seu lado sexy até para evidenciar que uma mulher pode ser atraente, preservar esse lado feminino e sedutor e ser capaz de compatibilizar isso com a assertividade na condução nos negócios. Coisas assim despertam a curiosidade de Eva, desafiam-na, divertem-na. Em casa pensou nas roupas que haveria de vestir. Pensou num vestidinho simples, coisa singela - e pérolas. Bastam pérolas para criar todo um ambiente. Depois pensou que precisaria de música para se desinibir e logo lhe veio à ideia a Teresinha, a história da sua vida cantada pela Diva. Assim foi. Esteve com tanto à vontade que o fotógrafo, o jornalista e sua secretária estavam surpreendidos. 



     Numa das fotografias fez questão de estar sentada à secretária de modo a que se vissem alguns dos objectos que lá tem, especialmente uma certa moldura. Insistiu com o jornalista que gostaria que se visse essa fotografia pois, explicou, é um instantâneo de um momento de especial romantismo. O jornalista e o fotógrafo ficaram um pouco atrapalhados mas disseram que sim e nada perguntaram, até porque a fotografia é explícita.

2.    Na entrevista zurziu forte e feio neste governo. E defendeu o empreendedorismo, a boa gestão, uma estratégia de desenvolvimento, de conhecimento, de reforço de competências desde os bancos da escola, de reforço da formação profissional no seio das empresas. Explicou, e exemplificou para que ficasse bem claro, que o problema da competitividade do País não está, nem nunca esteve, na legislação laboral. Explicou que a motivação dos trabalhadores é fundamental, que a boa organização  dentro das empresas é fundamental, que uma liderança forte é fundamental, que trabalhar-se seguindo uma estratégia ambiciosa é fundamental.

3.     Perguntaram-lhe se são verdadeiros os rumores que correm de que está ligada à maçonaria. Eva disse que só respondia a questões que tivessem que ver com as empresas, com o contexto em que as empresas operam e com questões de ordem geral relacionadas com o país em que vive.

4.       Perguntaram-lhe se é verdade que apoia pessoalmente algumas causas humanitárias. Confirmou mas disse que não as publicita, que apenas divulga as causas que as suas empresas apoiam e que apenas o faz como incentivo a que muitas mais façam o mesmo e contou que são várias e contou como os trabalhadores das empresas estão envolvidos e solidários nas acções que levam a cabo. O empreendedorismo social e o voluntariado são causas que apoia com apaixonada convicção. 


No final da entrevista, Eva estava um pouco cansada. Tomara que as fotografias não ficassem disparatas e deslocadas no artigo. Tomara que as mensagens que quis passar não ficassem submersas no meio de observações relativas ao vestido, ao costureiro ou a imbecilidades do género.

Depois de todos terem saído, mudou de roupa e ligou a cada um dos filhos. Estavam bem e o coração de Eva fica instantaneamente doce, Eva sossega depois de falar com eles. 


Depois fez outra chamada. 'Correu bem' respondeu logo pois, do lado de lá, alguém lhe deve ter feito a pergunta. Alguém que queria saber pormenores. Eva contou o que tinha feito relativamente à fotografia na moldura. Riram. Ela imaginava a reacção dos parvalhões que a tinham mandado seguir ao verem a fotografia clandestina ali exibida perante o mundo. Mas Eva estava exausta, mesmo a precisar de descansar. Pediu-lhe então, com voz doce: 'Sabes? Está na minha horinha zen. Podes tratar de mim...?' e sorria carente, a precisar de mino. Do lado de lá alguém devia perguntar qual o tratamento pretendido. Eva ria-se: 'Então, tu sabes... Quando estou assim, uma litania'.


Eva, então, pousou o telefone, deixou-o em alta voz em cima da secretária e, enlevada, enternecida, absorta, ouviu a tão amada voz:


                                  O teu rosto inclinado pelo vento;
                                  a feroz brancura dos teus dentes;
                                  as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
                                  e contudo sombrias, e contudo transparentes;


                                  o triunfo cruel das tuas pernas,
                                  colunas em repouso se anoitece;
                                  o peito raso, claro, feito de água;
                                  a boca sossegada onde apetece


                                  navegar ou cantar, ou simplesmente ser
                                  a cor de um fruto, o peso de uma flor;
                                  as palavras mordendo a solidão,
                                  atravessadas de alegria e de terror;


                                  são a grande razão, a única razão.


Eva, fecha então os olhos, apaziguada, cansada da guerra. A poesia produz nela este efeito. 


Sobretudo a poesia dita por Miguel fá-la sempre sentir uma mulher muito amada e isso, mais que qualquer outra coisa, é o que lhe importa. 'Todas as glórias do mundo não valem uma noite de amor', referiu uma vez Eugénio de Andrade. Eva concorda, é coisa que nunca esquece, é quase o lema da sua vida.


Damien Rice - The Blower's Daughter
da banda sonora de Closer

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A poesia é Litania de Eugénio de Andrade.

Se quiserem respirar luminosas partículas, convido-vos a clicarem aqui para irem até às minhas palavras que voam em volta de uma fotografia que fiz há bocado e de uma certa Pele de Carmim de Ana Marques Gastão. Mendelssohn hoje é magnífico. É no meu blogue Ginjal, claro.

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E tenham, Caríssimos, uma belíssima sexta feira!

quinta-feira, março 29, 2012

Passos Coelho e Judite de Sousa na TVI - entrevista e comentários. Coisa pouco interessante. E, vai daí, volto a Eva. Hoje Eva chega a casa e, inesperadamente, um denso nevoeiro envolve o seu olhar (*)


Música, por favor - e hoje é da boa!


José Malhoa - Eu vou a todas!



Cheguei a casa muito tarde pelo que não vi a entrevista que Passos Coelho deu a Judite de Sousa. 

Apenas vi, depois, alguns excertos e, logo depois, as vibrantes opiniões de tudo o que é comentador em tudo o que é canal. 

Helena Matos - ou é do que diz, ou da forma como diz, mas soa muito irritante. Não acham?

Há, em especial, uma comentadora que me tira do sério, opinativa, irritante, sempre cheia de convicções irredutíveis, sempre dizendo vulgares lugares comuns (a redundância é deliberada) ou visões distorcidas e tendenciosas - mas tudo como se fosse a verdade mais absoluta e definitiva. Uma canseira ouvir esta senhora. Felizmente nunca tenho tempo para me cansar muito porque há sempre alguém mais lesto que eu que, mal a vê, procura o telecomando para a enviar para bem longe da nossa sala.

Mas, adiante. Dos excertos da entrevista e dos comentários que ouvi, o que me pareceu é que continuamos no patamar da indigência. Conversa de concièrges. Aliás, é uma política ao nível da que fariam as concièrges se lhes fosse entregue os destinos do País (sem ofensa para as porteiras, claro).  Não há rasgo, nem estratégia, nem coisa nenhuma, apenas um banal desfiar de banalidades. Um entediante déjà-vu

Pedro Passos Coelho - Não consigo achá-lo bonito, que hei-de eu fazer?
Mas, apesar disso, o aspecto físico ainda é o que tem de melhor. Imagine-se, pois, o resto.

Vamos ter mais austeridade um dia destes (e Passos Coelho vai dizer que a culpa é dos outros), vamos ter novo pacote de ajuda com mais imposições (e Passos Coelho é bem capaz de dizer que sempre disse que ia ser preciso) - a menos que a política europeia mude.

Portanto, meus Caros, não tenho pachorra para falar mais disto.

Vou antes falar de Eva. Mas um bocadinho só, que hoje cheguei a casa muito tarde, estou cansada e com sono. Se a música lá de cima ainda não acabou, podem, por favor, ir lá acima desligá-la? Obrigada.

.....     §     .....


Quando chegou ao carro, Eva vestiu o casaco e pôs-se a caminho. Voltou a parar à frente da casa onde já tinha ido de manhã, esteve lá um pouco mais de meia hora e, já tarde, guiou até casa. Pelo caminho fez dois ou três telefonemas, recebeu outros tantos. Conversas rápidas, que Eva não é dada a grandes efabulações telefónicas.

Chegou: uma noite tépida, sem aragem. Como de costume não achava as chaves. Sempre o mesmo, a esta hora e ainda nisto, à pesca sem descobrir onde se enfiam - refilava, em pensamento. Lá as encontrou. Depois, era a porta que não deslizava, presa. Empurrou: nada. Parecia empenada, teria inchado? Mas nenhuma porta incha assim, do nada, de manhã para a noite. Até que olhou e viu no chão, presa, uma folha de papel espesso, dobrada em quatro.

Baixou-se, intrigada, desdobrou. Um outro papel caíu. Apanhou. Eva abriu a boca de espanto. Era uma fotografia sua, beijando Miguel, deitados na relva. Depois leu o papel. Dizia apenas, assim em maiúsculas ‘APENAS   UMA   BRINCADEIRINHA…’. O rosto de Eva toldou-se. ‘What the hell...?!?’.

Entrou em casa e a boa disposição tinha-se evaporado.

Descalçou-se ali mesmo, atirou a carteira para cima de uma cadeira, largou logo ali mesmo também o casaco. A casa estava vazia, às escuras e Eva sentiu-se espiada, acossada. Uma vaga sensação de indefinido medo tomava conta dela. Vestiu uma roupa simples.



Acendeu apenas um pequeno candeeiro na sala e sentou-se num canto, quase às escuras, encolhida. Depois levantou-se e foi escolher uma música mas, ao contrário do que é costume, hesitava, não estava com disposição para coisa alguma. Lá escolheu uma que, vá lá saber porquê, lhe ocorreu - mas todos os movimentos revelavam uma certa falta de convicção. Baixou o volume do som. Voltou a sentar-se.

Música, por favor
Il Canto di Malavita
(La musica della mafia)


De olhos fechados tentava recordar-se com quem se tinha cruzado à hora de almoço, se tinha visto alguém suspeito; mas não, não tinha visto nada de estranho, no caminho foi distraída e lá apenas teve olhos ou para o livro ou para o seu arcanjo das longas asas.

Pensou no que se tinha passado no escritório com aquele pateta, no que também se tinha passado na recepção do outro dia, nas inimizades que, seguramente tem despertado ao longo dos tempos, nas afrontas que, tantas vezes faz aos chamados poderes instituídos, no desprezo que sente e não disfarça pelos dirigentes de pacotilha que não valem um caracol e que não queria nem para moços de recados, pensou no incómodo que tem causado entre os irmãos ao rejeitar participar em sessões em que estejam alguns que sabe-se lá por que critérios foram aceites e que mancham o bom nome de uma instituição que se deveria manter sempre prestigiada. Tanta gente que podia querer amedontrá-la. Andam então a segui-la? Andariam também a ouvi-la?   

Sentiu-se invadida, suja, enjoada. Mais do que medo era asco.

Depois o telemóvel tocou. Número privado. Eva nunca atende números privados mas intuíu que este seria coisa relacionada com isto e quis comprovar. De facto, do outro lado o silêncio. Eva, o coração acelerado, perguntou: ‘Está? Está?’ Nada, silêncio, até que ouviu desligar. Isto está bonito, pensou, assustada, antevendo perseguições, medos, paranóias. E logo hoje que o Miguel teve que ir para fora, que falta me faz.

Ligou-lhe. Contou-lhe e o seu corpo tremia. Do outro lado, Miguel ouvia, calado. Depois falou e Eva respondeu: ‘...O sacana?!... Mas qual sacana? De quem é que estás a falar?’ Miguel esclarecia e ela, pensativa, ‘Será…? Mas para quê? Vingança…? Será? O estúpido será tão estúpido assim?’.

Mas no fim já se ria, deveriam rir-se os dois pois parecia que brincavam um com o outro.


Se os mafiosos ainda estiverem a cantar, por favor, apesar da música ser giríssima, peçam-lhes que  agora se calem, está bem?
E depois, façam o play aqui, sim?

Schubert, Fantasia - Maria João Pires e Ricardo Castro



No final, mais tranquila, descalça, foi comer uma sopa, uma fruta, um iogurte. Depois escolheu uma nova música, pôs-se a ler.

Passado um bocado, nova chamada, era o seu amor. Miguel disse-lhe, então, para pôr o telemóvel em alta voz e para se deixar estar na chaise longue, sossegada.

Eva assim fez até que começou a ouvir a bela e amada voz grave, pausada,

                                       Agrípia, foi a partir de ti que eu renasci
                                       na luminosa corola de um sorriso
                                       e os meus navios cinzentos e perdidos
                                       seguiram a bondade do teu rumo.
                                       Esta casa não seria a minha casa
                                       se não fosse a tua branca arquitectura
                                       e o teu hálito límpido que me guarda
                                       nas suas tranquilas coordenadas.
                                       Por ti o horizonte está em casa
                                       e nele eu vivo contigo a ondulada
                                       permanência da alma iluminada.

Ah, a paz que lhe vem desta voz, destas palavras. Ouviu com as mãos cobrindo o rosto, num absoluto recolhimento. No final, queria agradecer-lhe mas não conseguiu. Se ele ali estivesse, tê-lo-ia abraçado. Assim ficou sossegada, calada, com lágrimas nos olhos.

Depois, Miguel recomendou-lhe que se fosse deitar, que dormisse um sono descansado. Eva assim fez mas, antes de entrar para o quarto, voltou à sala, remexeu num armário até que descobriu um saco com molduras vazias. Viu uma por uma até que escolheu uma sóbria, em ouro velho. Emoldurou, com cuidado, a fotografia tirada por fotógrafo furtivo. Olhou e sorriu: ‘Até que estamos bem…’.

.....     §     .....

(A poesia é Agrípia de António Ramos Rosa).
(*) - A ideia do 'episódio' de hoje nasceu do comentário da Leitora 'Era uma Vez' a quem agradeço.

[E, já agora, hoje no meu Ginjal temos palavras à volta do Adagio também de António Ramos Rosa. Mendelssohn ainda por lá paira. Convido-vos a irem até lá. Basta clicar aqui]

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E é isto, meus Caros. Tenham uma bela quinta-feira, está bem?

quarta-feira, março 28, 2012

Eva compra mais uma empresa e dá um baile (por una cabeza, por supuesto)


Música, por favor


As Red Hiding Hood interpretam o tango Por una Cabeza




Ontem de tarde, depois de uma complicada recta final de horas de intermináveis e acesas discussões, pareceres contraditórios, a culminar um arrevesado processo que compreendeu uma due diligence cheia de surpresas, um project finance analisado na pior altura possível, avanços e recuos de toda a espécie, Eva fechou finalmente a compra de uma nova empresa. Um processo que se pretendia rápido, tinha acabado, afinal, por se prolongar por meses.


Com a sua determinação que não se desfoca nem por um segundo mas sabendo que uma transacção só é boa se for boa para todas as partes envolvidas, Eva garantiu protocolos vários, garantiu que não despediria ninguém, garantiu que iria expandir a fábrica, garantiu que iria dar formação a parte do pessoal, garantiu financiamentos, garantiu uma série de outros aspectos - garantiu, nomeadamente, que o negócio é atractivo e que o risco é contido e que, a verificar-se, será razoavelmente mitigado.

O que agora se segue será ainda complexo e Eva terá que pôr no terreno toda a estratégia que delineou para avançar com esta operação. Fá-lo-á já nos próximos dias pois não quer alimentar especulações ou angústias injustificadas por parte das pessoas que trabalham na empresa adquirida.

Contudo, ontem, ao fim do dia e antes de sair do escritório, já não tinha disposição ou cabeça para mais nada pelo que, a seguir, ligou para o galerista, perguntando se ainda daria tempo para se deslocar até lá para lhe mostrar o quadro de que lhe tinha falado. Este prontificou-se logo.

Todos os outros que com ela colaboraram nas negociações combinaram ir para os copos, jantarada, diversão. Ela não, tem pouca paciência para essas ruidosas comemorações. Estava feliz, sim - não apenas por ter concluído, e concluído bem, uma operação complexa mas, sobretudo, porque em vez de se tratar da venda de mais uma empresa a estrangeiros, tinha sido o inverso: uma empresa portuguesa a expandir-se, adquirindo uma empresa estrangeira - mas precisava de sossego, não de farra.

Passado pouco tempo já lá estava o galerista. Eva gostou. Era o que estava à espera, um típico Guilherme Parente (se é que é legítimo falar assim): colorido inocente, uma alegria simples, tudo aquilo de que ultimamente mais gosta de se rodear.

Guilherme Parente (Lisboa, 1940) - Não foi este que adquiriu mas foi um do mesmo género
Este: Técnica mista, 65x114 cm

O galerista é um homem simpático, culto, civilizado. Ficaram os dois à conversa durante um bom bocado. Era a forma de Eva se distender.

Quando estava para sair, a secretária assomou à porta do gabinete com ar um pouco amedontrado, quase com falta de ar. Que estava lá em baixo na recepção, em carne e osso, ‘o seu amigo de estimação’. Eva manteve a sua olímpica calma. ‘O próprio?’. A secretária mal falava: ‘Diz que sim’.

Eva riu-se. ‘Ele que suba; e leve-o aí para a sala do lado. Não precisa de o tratar mal. Pode perguntar-lhe se está com sede … e se ele disser que sim, diga-lhe que, para a próxima, beba antes de vir fazer visitas… [A secretária, enervada como estava, não achou graça nenhuma e Eva pareceu ir fazer-lhe a vontade]… ok, se ele disser que sim, vá buscar um copo de água ...e despeje-lho na cabecinha… Não? pronto, então deixe lá, dê-lhe à boquinha. E diga que, como não reservou hora, tem que ir ver se eu o posso atender. Diga-lhe assim, tal e qual’ e riu-se ainda mais ao ver o ar de censura da secretária. Sabia, obviamente que ela não iria dizer nada disto mas, enfim, só de dizer já Eva se divertia.

A seguir fez uma chamada, ‘Imagina tu, Miguel, quem é que me apareceu agora aqui, sem mais nem ontem…?’. Miguel disse qualquer coisa, ao que Eva se pasmou: ’Como é que adivinhaste…?! Eu acho uma coisa do além, um topete do caraças e tu achas natural...! Não é possível!’ e desligou, contrariada.

Mas foi contrariedade de pouca dura. Sentou-se. Abriu a gaveta de baixo da lateral da secretária, pousou os pés em cima do rebordo (já lhe doíam os pés, muitas horas em cima de tacõezinhos de agulha dão nisto: o rabo fica mais empinado, é certo, mas os pés, por amor da santa, os pés ao fim de muitas horas, quase não se aguentam) e assim, bem instalada, ligou aos filhos (todos os dias, haja o que houver, telefona a cada um para saber se está tudo bem). E, nessa altura, toda ela se desfazia em maternal doçura, o coração nos lábios, os olhos destilando mel - assim é Eva quando fala com os frutos do seu ventre.

Depois de um dia complicado, apenas aligeirado pelo oásis da hora de almoço, depois de falar com os filhos, eis que Eva estava agora verdadeiramente tranquila.

A secretária assomou de novo à porta, ar afobado. Sem dizer nada, com a cabeça fez sinal que o artista principal já estava instalado e mostrava preocupação por Eva não dar mostras de o ir atender. Eva riu-se: ‘E já lhe deu banhoca?’. A secretária, assustada, não fossem as paredes ter ouvidos, fechou logo a porta.

Eva viu as horas. Caraças, a uma hora destas é que este parvalhão me aparece! E sem aviso…! Que falta de educação!

Depois tirou o espelhinho da gaveta. Tirou o baton da carteira e retocou os lábios. O cabelo estava bem, tinha-o voltado a apanhar, e o ar despenteado fazia parte do look. A seguir foi à casa de banho, na calminha. Só depois, com vagar de pantera, é que abriu a porta e entrou na sala. O artista deu um salto, armado em cavalheiro. Fez gesto de quem ia, quiçá, ao beija mão, no que foi interrompido com gentileza (ainda me baba a mão, credo...!, pensou). Eva deu-lhe antes, por sua iniciativa, um vigoroso aperto de mão. Mandou-o sentar e sentou-se à cabeceira, afastada da mesa, pernas traçadas na sua direcção, mas absolutamente decentes. O outro engoliu em seco, tentou evitar a visão das pernas e concentrar-se nela, na cara - na cara, (não no decote).

Eva, disse então, com ar caridoso, como se estivesse a atender um pobrezinho que lhe tivesse aparecido à porta, ‘Então, diga lá… em que o posso ajudar…?’. Reparou que o artista engolia de novo em seco.

‘Fui informado do sucesso do negócio, queria vir cumprimentá-la, está de parabéns' e simulou um ar feliz como se o sucesso fosse também dele, ou como se solidarizasse na vitória. Eva fez-lhe uma negaça em pensamento mas sorriu: ‘Ah, muito obrigada. Mas tenho que admitir: foi sobretudo uma vitória do governo, não lhe parece…?’. Ele fez um sorrisinho amarelo, era seguramente o que lhe convinha, mas não ousava admiti-lo, nunca se sabe que reacção a fera teria, já estava a perceber-lhe uma indisfarçada ironia na voz e no ar. Fez-se, então, de inocente e, com prudência, galanteou :  'Ah, não, o governo não teve nada a ver com isso, o mérito é todo seu’.

E, então, colocou a mãozinha, certamente transpirada, em concha, sobre o pescoço.

Eva sentiu-se quase ofendida, e pensou: ‘Então mas não é que este sujeito é completamente parvo…?! Como se eu não estivesse fartinha de saber…?! Está cá com uma sorte…!’ mas sorriu, inocente, como se não tivesse percebido o sinal, ‘Está a sentir-se mal…? Desaperte a camisa’.

O sujeito ficou seriamente atrapalhado, o porte sereno de Eva desarmava-o, as reacções sempre imprevistas ainda mais: ‘Não, estou bem, é este calor’. Eva deu uma gargalhada: ‘E ainda dizem que as mulheres é que sofrem horrores com os afrontamentos da menopausa… Aqui está fresco, não está calor nenhum. É o seu termostato, meu Caro, é o seu termostato, isto quando se passa dos cinquentas é o diabo...’

Ele, inibido e sem lhe ocorrer resposta a um dislate deste calibre, olhou para os pés, já sem saber que rumo dar à conversa. Eva seguiu-lhe o olhar e, ostensivamente, como se estivesse intrigada, pôs-se também a olhar para os pés dele, o que o deixou ainda mais atrapalhado.

E sorrindo, com ar de quem faz a observação mais banal deste mundo depois de lhe observar os pés: ‘Aqui está fresco mas lá fora está quente, parece que estamos no verão, sabe, já não está tempo para esses seus sapatos de inverno…’. E ele já quase escondia os pés debaixo da cadeira. E, num ápice, passou a mão na testa, suava que não era brincadeira nenhuma.

Eva, prosseguiu. ‘Mas, então, meu Caro, ao que vem? Conte-me, então’.

Ele, completamente sem jeito, os pés enrolados para baixo da cadeira, limpando disfarçadamente as mãos nas pernas, ‘Vinha mesmo só para lhe dar os parabéns’. E Eva, já só a querer folia: ‘Ah, que querido! Tão simpático! Obrigada. É amoroso da sua parte…’ e sorriu, fingindo uma afectação de tia, coisa que, de facto, estava longe de ter. 'E mais nada...?', insistiu. E ele, que não, que era mesmo só isso.

Eva, então, dando a conversa por terminada, levantou-se, fez o gesto de o acompanhar à porta e ele, obedientemente, lá foi.

Quando estava já quase a despedir-se, Eva falou como se lhe tivesse ocorrido: ’ …Ah, olhe, daqui por algum tempo, quando você estiver disponível das suas actuais funções…’ ele sorriu, agradecido - depois de tudo, não estava agora à espera deste agrado - e Eva continuou, ‘e quando eu tiver necessidade de ter alguém experiente e de confiança…’ e ele sorria, venerando e obrigado, e ela concluía: ‘vou ver se arranjo alguém que seja o seu oposto…’ e deu uma gargalhada. Ele ficou sério, sentiu-se gozado.

Eva deu-lhe uma palmadinha no braço, e com ar maroto, fingido: ‘Estava a brincar…’ e ele fez um sorrisinho completamente amarelo-limão, já azedo, completamente arrependido de lá ter ido.

Quando já ia a caminho do elevedor, Eva ainda se lhe dirigiu, ‘Anda com má cara. Acho-o caído… Veja lá… Ou então é o fato que não lhe assenta bem, sei lá… há qualquer coisa em si, não sei…’ 


Quando ele se enfiou no elevador, Eva olhou a sua secretária, amiga de longa data, e viu que ela estava completamente mortificada. Com ar traquinas, Eva entrou no gabinete, e, fechando os olhos, riu-se de gosto, divertida. Grande dia.

A seguir foi apanhar a carteira e as chaves do carro, avançando em passo de dança. Parecia dançar o tango com um parceiro imaginado. Sensual, vitoriosa, toda ela requebros e sorrisos. Não se sabe em quem estaria a pensar mas concluíu, provocadora: 'Me aguarde...'.

....  §  ....

Como hoje não há poesia por aqui, convido-vos a irem ver uma lírica especial ali para os lados do meu Ginjal e Lisboa, a love affair. É Fernando Assis Pacheco e a su'A Musa Irregular. Esta semana, claro, tudo acompanha com a grande música de Mendelssohn.

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E tenham, meus Caros, uma bela quarta-feira!

terça-feira, março 27, 2012

Eva ou o esplendor da poesia na relva


Música, por favor
(no botãozinho mais pequeno da esquerda em baixo, para não saltarem para o youtube)

Paganini - Sonata nº 6 para violino


Não há dia em que, ao levantar-se, Eva não abra, de imediato, a grande janela que dá para a varanda e espreite o dia.

Assim que vê o céu antevê o tempo que vai estar, a temperatura e, logo, lhe acodem ao pensamento várias ideias, planos, disposições, estados de espírito.

Depois do banho e, enquanto toma o pequeno-almoço, Eva pensa na sua indumentária para o dia, o tom dominante que será claro se estiver numa de peace and love, ou colorido se estiver virada para a acção, ou monocromático de cores fortes se quiser impor a sua vontade, ou cinzentos, castanhos (o que é raro) se estiver vagamente indeterminada, ou escuro se estiver para nem admitir conversas. Também pode ser um branco e preto com fronteiras bem definidas se quiser perturbar a mente de alguém.

A maquilhagem e os adereços tais como brincos, colar, anel, pulseira (tudo escolhido na perspectiva de que o que é bom pouco basta) acompanharão a tendência do vestuário, os sapatos e a carteira obviamente farão pendant. Mas também pode acontecer que esteja para a brincadeira e, nesse caso, a carteira e os sapatos farão um inesperado contraste com o vestuário e apenas se conjugarão com a cor do baton (ou, até, apenas com a cor da lingerie que, isso sim, é indispensável).


Hoje Eva vestiu um vestido aparentemente austero, de riscas. Para o caso de ser necessário, levará na mão um casaco preto, fluido, uma malhinha muito fina. Contudo, vendo bem, perceber-se-á que há ali qualquer coisa de subversivo. Talvez o decote, talvez a suave textura do tecido que convida ao toque, talvez a cor do baton que combina ostensivamente com o tom dos sapatos, uns Christian Louboutin encarnados bordados a preto, obviamente de tacão bem alto.


Apanhou o cabelo com displicência, sabe que as indisciplinadas ondulações apenas valorizarão um pouco mais o aspecto de bad girl. Depois de sair voltou atrás: a écharpe, claro. Finíssima, quase transparente, comprida, encarnada com leves desenhos pretos.

Ao vê-la sair de casa, quem a conheça dirá que o dia vai ser complicado, Eva vai para arrasar - mas alguma folia não estará fora de questão.

Passada firme, rosto tranquilo mas decidido, feminina, lábios flamejantes, grandes óculos escuros, eis, então, que Eva sai de casa.

O carro arranca com suavidade. Eva estará certamente a ouvir música, provavelmente música barroca. Se tivesse aberto a janela, arrancado com vivacidade, provavelmente estaria a ouvir reggae mas, hoje, pela forma como curvou deslizando, a sentir o prazer da curva, provavelmente será violino, talvez Paganini.

Depois conduz até uma zona residencial, estaciona, toca à campainha, entra. Passado algum tempo sai e volta a entrar no carro. Desloca-se agora até à zona de escritórios com mais cachet da capital. O carro entra na garagem e só voltará a sair a meio da tarde.

Contudo, ligeiramente antes da grande movimentação da hora de almoço, alguém mais atento repararia que Eva sai do edifício, rápida, quase furtiva, o casaquinho escuro e fluido cobrindo o vestido, a écharpe esvoaçando, um saco de pele (Hermès) em vez da elegante pequena carteira, outros sapatos, agora uns quase baixos. Soltou o cabelo que esvoaça, despenteado. Nem parece a mesma.


Se alguém a seguisse repararia que vai apressada, olha o relógio e anda sem ver com quem se cruza. Dirige-se, então, a uma rua murada quase escondida, um grande portão. Entra, pois, no Jardim botânico.

Aí os movimentos passam a ser outros, mais distendidos, a cabeça ergue-se, vê-se que Eva aspira longamente o ar puro e vegetal.

Anda como quem muito bem conhece cada recanto. Vira à direita, desce, entra na vegetação, procura o pequeno lago, procura um certo banco.

Jardim Botânico de Lisboa

Senta-se, reclina-se, atira a cabeça para trás, inspira longamente. Solta devagar o ar. Depois tira um pequeno livro do saco, lê. Lê e pára de ler, olha em frente, respira fundo, lê.

Um pouco depois, um sobressalto mas quase como se fosse um sobressalto aguardado. Alguém parece ter surgido do nada. Um homem - moreno, grisalho, interessante, de barba, descontraidamente vestido, calças claras, blusão de cabedal, camisa desportiva azul clara - atira-se para o banco. Na mão traz um saco de papel.

Eva retira então do saco guardanapos de papel e, ali mesmo, no banco de jardim, entre os dois, põe a mesa. Sandes, caixas de salada, sumos, um iogurte para ela. Conversando, rindo, almoçam tranquilamente. Vê-se que ambos apreciam verdadeiramente aquele picnic assim improvisado; dir-se-ia, aliás, que é usual fazerem-no. No final, limpam a boca e há elegância nos seus gestos; a seguir, Eva arruma meticulosamente as embalagens vazias, os talheres de plástico, os copos, os guardanapos, tudo no saco de papel.

Depois, ele parece convencê-la a fazer qualquer coisa, levanta-se, puxa por ela. E ela, sorrindo, vai. Ele procura então um local abrigado dos olhares, plano, limpo. Apalpa o chão, 'está seco, ainda bem que não chove...' e sorri, com ironia e doçura. Abraça-a e, depois, puxa por uma ponta da longa écharpe e abre-a como quem estende um lençol numa cama. Puxa por Eva, que não oferece qualquer resistência, uma vez mais parece ser coisa habitual. Depois despe o casaco e dobra-o para servir de almofada, descalça os sapatos. E então, Eva, a intrépida, é apenas Eva, a dócil, e deita-se na relva, num jardim público. Com um gesto de pudor ajeita o vestido, e pensa que em dias assim mais valia vir de calças, e ali fica a olhar a copa das árvores, o céu por cima. O homem vira-se de barriga para baixo, beija-a ao de leve no rosto, depois pega no livro e lê em voz alta, não muito alta, de facto quase sussurrada, enquanto Eva fecha os olhos, deleitada, entregue a um dos mais supremos prazeres, ouvir o seu amor a dizer poesia:

                      Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
                      e os ventos empurraram-na. Está ali, na perfeição redonda
                      da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
                      Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
                      só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada.

                      É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
                      um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
                      Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
                      Que lentas são as folhas largas e as areias!
                      Que denso é este corpo, esta lua de argila!

                      Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
                      fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
                      Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
                      Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
                      Crescem, crescem os músculos da mais íntima distância.


Se Paganini já chegou ao fim, então, por favor,
George Gershwin - The man I love por Ella Fitzgerald


Ele olha-a, sorri, procura aprovação, ela também sorri, mostra que gostou. Depois Eva põe uma mão à volta do pescoço de Miguel e puxa-o para si. Dois namorados, nem mais, nem menos.

Alguns minutos depois, levantam-se, sacodem as roupas - Eva sacode com cuidado a sua écharpe, coloca-a em volta do pescoço branco e ajeita-a com gestos femininos, veste o casaquinho, ajeita-o, despedem-se. Ela desce, faz o caminho de retorno, ele sobe. Uns segundos depois, Eva olha para trás. Miguel também. Como adolescentes dizem-se-se adeus, sorriem.

...  §  ...
O poema é  'A mulher feliz' de António Ramos Rosa.
...  §  ...
[E por poema: se estiverem numa de poesia e palavras em volta de uma fotografia, sugiro que cliquem aqui para irem até ao Ginjal e Lisboa. Hoje tenho Ruy Belo que acompanha com Mendelssohn]
...  §  ...

E tenham, meus Caros, uma gloriosa terça feira!

segunda-feira, março 26, 2012

O dia em que Antonio Tabucchi esteve no Palácio Fronteira com Paula Rego e o dia em que 'viajou a caminho do seu nada de nada, a caminho de si próprio, ou dos seus sonhos, que não acabam nunca'


Música, por favor

Maurice Ravel - Pavane pour une infante defunte


Hoje não vos falo de Eva. Ia contar-vos como, aos domingos, Eva mergulha no interior mais íntimo da terra, e, despojada, bicho da terra, animal inexpugnável, se recolhe como se rezasse ou como se revolvesse o solo, ou como se nem fosse gente, talvez pássaro, talvez lagarto, talvez flor ou, talvez, apenas um punhado de terra. 

Mas a meio da tarde ouvi uma notícia que me tocou e deixou de me apetecer falar de Eva. Por isso, hoje vou contar-vos sobre um outro dia, há quase nove anos.

. § .

Estava um fim de tarde quente, agradável. Para se chegar lá passa-se por casas pequenas, muros, ruas e vielas, algumas um pouco íngremes.

É um local muito bonito, com uma vista desafogada, os jardins cuidadosamente planeados e mantidos. É um dos belos palácios portugueses, o Palácio Fronteira e um local que dignifica e incentiva a arte em Portugal (vidé a agenda cultural).

Parte do jardim do Palácio Fronteira

Algumas pessoas circulavam por todo aquele elegante espaço. Gente das artes, essencialmente. Um agradável cocktail de fim de tarde; bebidas e apetitosos amuse-bouche eram servidos em bandejas  que apareciam e desapareciam com eficiência e discrição.

Dom Fernando Mascarenhas, actual Marquês da Fronteira,  o 12º, tinha encomendado a Paula Rego um painel de Azulejos para substituir o que se tinha perdido, um relativo ao Fogo e integrado no painel dos Quatro Elementos.

Lançava-se também o livro feito a esse propósito com ilustrações de Paula Rego e texto de António Tabucchi. Seres luminosos, ambos. Lá estavam. 

Ele delicado, cortês, de uma quase desarmante simpatia, sorridente. 

Ela etérea, divertida. Estava sentada numa cadeira de jardim e, às tantas, levantou-se, apalpou a saia, e ria-se com ar intrigado, 'está molhada mas eu acho que não fiz chichi'. Paula Rego, de olhar perscrutante e bem humorado, de uma simplicidade quase infantil.

Hoje fui buscar esse meu livrinho, objecto delicado, precioso.

Fogo em versão trilingue, português, italiano, inglês - Paula Rego e Antonio Tabucchi
(Livro fotografado em cima de uma carpete de Arraiolos feita por mim)

Escuso de vos dizer, meus amigos, que me sinto muito bem em lugares assim. A quietude, o vagar, as sombras que conferem intimidade aos espaços, a largueza de horizontes de jardins with a view, o som da água que tomba nos lagos, os cheiros que se misturam e que vêm das flores, das heras, dos fetos, das árvores e das mulheres perfumadas, as vozes baixas e reverentes, tudo isto me agrada mesmo muito.

Nesse fim de tarde havia ainda um resto de sol que iluminava Lisboa em baixo, até se perder de vista. E havia, também, portanto, aqueles maravilhosos recantos do jardim, onde azulejos, lagos, estátuas, flores, sombras, se encontram em perfeita harmonia, um ambiente de suave mistério ou, talvez, antes, uma leve e sofisticada magia.

E, por aqui, conversando, escritores, pintores, gente ligada a estes meios, gente silenciosa, discreta, vagamente sorridente, deambulavam com afecto e dignidade, num absoluto respeito pela natureza, pela arte, pelos outros.

Pedi que me autografasse o livro. Suave, sorridente, Antonio Tabucchi mostrou a sua bela caligrafia, escrevendo a dedicatória:

Fará nove anos daqui por pouco tempo: 'Para a ...., felicidades' , a bela assinatura e a data

Pedi também a Paula Rego que assinasse o livrinho, um dia mostro-vos a sua caligrafia. Mas hoje, aqui, o espaço pertence ao gentil italiano, ao italiano da voz suave, da postura suave, ao italiano que tanto amava este nosso país.

Una notte indimenticabile - a história em italiano de Antonio Tabucchi e as imagens em fogo de  Paula Rego

Por dentro, o Palácio é muito belo, bem cuidado, e tem zonas de sombra e recato e tem grandes janelas por entra a luz e tem salas que se ligam a salas que se ligam a salas e tem o odor antigo dos locais em que a vida se detém com vagar. Mas, naquele dia, apenas entrei para cumprimentos porque o que se passava, passava-se cá fora, nos magníficos jardins.

'Os teus encantos não caem nunca, és como o mar que cresce às ondas, cresce do vento, mas da água nunca'
palavras de Antonio Tabucchi no final do conto.


Mas isto foi numa outra tarde, uma tarde quente como a deste domingo, uma tarde amena em que o sol se punha, dourando Lisboa.

Porque este domingo, justamente também em Lisboa, aos 68 anos, Antonio Tabucchi, o italiano suave que tanto amava esta cidade suave, viajou a caminho do seu nada de nada, a caminho de si próprio, ou dos seus sonhos, que não acabam nunca. 

. § .

Hoje no Ginjal e Lisboa, a love affair dou início à semana dedicada a Mendelssohn e acompanho com Herberto Helder, um poeta que canta como ninguém a doce e inocente demência, coisa de que gosto de falar, como terão oportunidade de verificar. Convido-vos a irem até lá espreitar.

. § .

E tenham, meus Caros, uma boa semana. 

domingo, março 25, 2012

Uma noite tranquila em casa de Eva


Música, por favor

Mendelssohn - Barenboim interpreta Songs without Words


E então chegou a casa. Pousou a carteira, as chaves do carro.

Foi à casa de banho, desmaquilhou-se.

Depois foi à cozinha e encheu um copo de sumo.

Com o copo na mão, foi até ao quarto, escolheu uma música (sem palavras). A hora era tardia, a noite estava amena, quase parecia verão, abriu a janela que dá para a varanda. Ao longe, no silêncio nocturno, um vago marear que, sem aragem, não podia ser o som da ondulação dos cedros, era, só podia ser, o som do mar.

Olhou-se no espelho, o sorriso tinha-se recolhido, estava um pouco cansada.

Com lentidão, puxou uma ponta da echarpe de rede, sentiu-a a deslizar devagar pelo pescoço até que ficou toda na sua mão, pousou-a depois sobre o busto negro; a seguir, com lentidão, despiu o casaquinho. Olhou-se no espelho. Talvez um ou dois quilos a mais. Terá que caminhar com mais intensidade, terá que emagrecer um pouco.

Depois deixou descair uma alça e arqueou ligeiramente os ombros para a frente, para favorecer a descida, depois, com a mão, aliviou a pressão da outra alça, arqueou de novo os ombros, deu um jeito e o vestido iniciou a trajectória descendente, descaiu todo ele, deixando os seios a descoberto e ficando retido nas ancas.


Olhou-se assim no espelho. A barriguinha lá estava e, com o vestido assim descaído, preso nas ancas, quase parecia a Vénus de Milo.

Vénus de Milo

Ou, então, Rubens. Uma das saudáveis mulheres de Rubens.

Rubens- The Union between Earth and Water


Sorriu da auto-condescendência. 

Alivou a pressão do vestido, puxou-o um pouco para baixo e ele caíu, pesado, nos pés.

Levantou um pé, depois outro, apanhou-o, pendurou-o num cabide, organizada.

Olhou-se no espelho. Meias de seda, de cor neutra, ligas de renda, saltos altos. Pensou no príncipe árabe a dizer poesia.

A seguir retirou os brincos, depois a pulseira, e só então se sentiu quase despida.

Apeteceu-lhe ir até à varanda, descansar um pouco antes de se deitar.

Pegou no telemóvel, no copo, mas, ao chegar à porta, sentiu que a aragem estava fresca. Voltou atrás e pegou na écharpe de renda transparente. Envolveu-se nela e, tal como estava, foi então até à varanda.

O som remoto de um carro que passava lá em baixo na estrada, o vago som do mar, de dentro o som da música – um quase silêncio, portanto. 

Sentou-se na cadeira que está no recanto mais abrigado e ali, descansada, ouvindo a música, pensou no suave e morno roçar da mão do príncipe. Malandreco.

E pensou também num certo sorrisinho alarve, parvo, insuportável.

Fez então uma chamada. Quando atenderam, disse secamente: ‘Não quero saber que ele seja dos nossos, estou-me nas tintas, o tipo é execrável, estaria bem na república das bananas, não aqui, que isto, parecendo que não, ainda passa por ser um país civilizado. Além disso, já disse não sei quantas vezes que não o reconheço como sendo dos nossos’.  Do outro lado alguém devia estar a protestar mas ela interrompeu, ríspida: ‘Não quero saber. E a esta hora não tenho paciência para ouvir argumentos que me maçam. Faça como quiser mas tenha em consideração aquilo que eu quero’.  Desligou, vagamente irritada.

Encostou-se para trás, bebeu o resto do sumo, olhou a noite, respirou fundo. Que paz, afinal.

Deixou-se estar assim, tranquila. A seguir fez nova chamada e a voz agora era quente, ciciada, sorridente: ‘Por onde andas?...  A dormir? … A uma hora destas? … E não te ocorreu que eu poderia precisar de resolver umas quantas coisas contigo?’ e riu-se com a resposta que veio do outro lado e a gargalhada espontânea era agora de menina marota.

‘Não sejas preguiçoso. Ainda se fosse para atravessares a cidade…’ e ria, alguém a fazia de rir de gosto.

‘Vá lá…. Ainda se fosse para atravessar a rua…’ e depois voltava a rir.

Depois concluíu, mas a voz era doce: ‘A esta hora não tenho paciência para pedir. Ok. Quem quer vai, não é? Está bem, vou eu’.

Quando ia desligar, lembrou-se: 'Espera, não desligues, como é que entro? Qual é o santo e senha?' e sorria, era uma menina marota. 'Quem? Deixa cá ver....' e pensava, 'Pode ser o Eugénio'.

Do lado de lá ouviu dizer num sussurro, um sussurro cheio de silêncios, 'Então fixa:


                                                               Vê como o verão
                                                               subitamente
                                                               se faz água no teu peito,

                                                               e a noite se faz barco,

                                                               e a minha mão marinheiro.'


Eva fechou os olhos, encantada. E respondeu: 'A senha, então, será:


                                                                         Tenho o nome de uma flor
                                                                         quando me chamas.
                                                                         Quando me tocas,
                                                                         nem eu sei
                                                                         se sou água, rapariga,
                                                                         ou algum pomar que atravessei.'


E sorria. Olhou-se ao espelho, depois hesitou, deveria levar a écharpe?, talvez não, afinal não ia atravessar nenhum pomar, apenas o corredor.

Mas quando ia bater à porta, hesitou. Determinada, voltou para trás. Foi buscar a écharpe. Ensaiou ao espelho a melhor forma de a passar pelos ombros, deixando uma das pontas mais comprida, e sorriu, pensando: 'Afinal, qualquer Eva usa parra..'*

{}

Os poemas são de Eugénio de Andrade e têm o título, respectivamente de 'Arte de navegar' e [tenho o nome de uma flor...] 


NB: Todos os episódios desta história estão agrupados no separador 'Eva - a mulher dos olhos verdes', à direita, lá mais para baixo

{}

E tenham, meus Caros, um belo domingo!
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* - Os créditos e os agradecimentos à Mary (vide comentário abaixo)