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quinta-feira, janeiro 24, 2019

Sobre a beleza e sobre a matemática




Estive a ver, ontem, na RTP2, um programa sobre a beleza. E muito foi dito e mostrado mas aquilo de que gostei mais tem a ver com a relação entre a beleza e a matemática. Seria muito difícil explicar a emoção que senti ao ouvir isto tal como é difícil explicar a beleza da matemática, a vertigem de encontrar a elegância da demonstração de um teorema complexo, a vertigem de olhar e compreender as proporções de uma geometria sublime, a vertigem de descobrir o caminho certo por entre um intrincado labirinto. Difícil explicar. Parece coisa de doido. Mais vale calar porque há coisas que não se podem explicar, não se podem macular com a imprecisão das palavras incorrectas.


Se é a simetria, a proporção, a harmonia -- isso eu não sei. Sei que sou muito sensível à beleza. Dependente da beleza. Não vivo sem beleza. Procuro-a.

Pode ser uma difusão de cores em pleno voo, pode ser um sentido choro de violoncelo, pode ser uma lenta sucessão de volumes ou o grito de um ângulo agudo. Ou uma conjugação de palavras que me deixe sem fôlego, em lágrimas ou sem chão.

Não me prendo a uma só forma de beleza. Pode até ser apenas um terno sorriso, pode mesmo ser um olhar mais doce. Pode ser uma mão que se aproxima. Pode ser o rendilhado de uma sombra num muro branco ou o deslizar suave das águas de um rio ou o suave tombar das ramagens de uma árvore nas suas margens. Ou uma inexplicável saudade ou a imorredoura e muito bela memória de uma varanda suspensa, envolta em sombra e flores, em sorrisos, em abraços não consumados. .


Mas saber que afinal há mesmo semelhança entre a emoção que se sente perante estas formas quase consensuais de beleza e a que se sente perante conceitos de análise infinitesimal, topologias abstractas, geometrias descritivas, casos insolúveis, sistemas cruzados de inequações ou soluções inesperadas e quase mágicas para problemas de matemática enche-me mesmo de surpresa e satisfação.


Penso que será também semelhante ao que se sente perante o tentador abismo que é a física da matéria ou perante as assombrosas similitudes entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande ou perante o fascínio que resulta do meu total desconhecimento da vida das partículas elementares ou do imenso espaço ou do indefinível vazio. Mergulhar nesses mundos, percorrida por uma louca incompreensão, deixa-me com uma emoção que é um frémito quase vertiginoso muito semelhante ao que me faz ter vontade de me ajoelhar em silêncio perante uma tela de Caravaggio ou de Chagall ou de me reduzir a nada para melhor escutar os acordes vindos de um mundo habitado por divindades ou o que sinto perante uma paisagem que me faz ter vontade de me diluir na terra ou de sair a voar sobre os vales.


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Have beauty.

domingo, dezembro 30, 2018

Madrugar à conversa convosco






Não sei o que é isto hoje que a casa parece que não quer aquecer. Estou com um aquecedor a óleo aqui à minha beira e com a salamandra a queimar lenha como se não houvesse amanhã -- e a sala continua fria.

Ainda não há muito tempo tínhamos que comprar lenha. Mais recentemente comprávamos ao vizinho da ponta da estrada mas, antes de sabermos que ele tinha lenha a mais, íamos comprar a um lugar de que já uma vez aqui falei, um lugar muito estranho. Por vezes, algumas memórias minhas assomam como se quisessem que eu as revivesse mas algumas parecem-me improváveis, como se eu estivesse a ficcionar. Aquele homem silencioso e rude, aqueles cães enormes que ladravam e rosnavam ameaçadoramente sem que o homem tentasse acalmá-los, aqueles barracões cheios de lenha coberta por grandes oleados onde facilmente se poderiam esconder meliantes ou onde aquelas feras poderiam devorar presas indefesas sem que delas restasse algum vestígio é daquelas memórias que me parece saída de um filme de terror. Mas talvez aquele lugar, que existe na realidade, seja apenas um lugar muito pobre e o homem alguém a quem a vida não sorriu.


Mas isso era de quando as nossas árvores ainda eram pequenas. De repente, o lugar alterou-se. As árvores cresceram muito, a terra que, antes era castanha e seca, agora é fofa, escura, fértil e cobre-se de musgo, folhas secas, e dela brotam flores, arbustos, As pedras que antes tinham a superfície seca à vista agora também se cobrem de musgo, e nascem fetos, há heras a cobrir alguns rochedos. Toda a paisagem agora é outra. Estou a escrever e a pensar: do meu amor nasceu um bosque.


Temos, pois, lenha que não acaba. Levantei-me agora mesmo para ir pôr mais um tronco na salamandra. Cheira muito bem esta lenha. Quando chegámos, a casa estava gelada mas cheirava muito bem, a boa lenha queimada. Azinheira, cedro, pinheiro. Não sei se aroeira. Há madeiras que não queimam bem. Por exemplo, o meu marido não quer aproveitar a madeira da figueira, tenho ideia que diz que não arde. Mas deve arder, se calhar leva é mais tempo a pegar-lhe o fogo. Não sei.


Fico muito contente, orgulhosa mesmo, como se as árvores terem deitado tanto corpo fosse um pouco obra minha. Mas não quero parecer pretensiosa. A natureza não se deixará influenciar pelo amor de uma mulher. E, no entanto, as árvores sentem, comunicam entre si e são, acredito nisso, seres sábios, fortes e sensíveis, seres superiores. Quem sabe não se sentem mesmo felizes por se sentirem tão amadas e, como as pessoas que são felizes e criativas quando se sentem estimadas, também elas, as minhas queridas árvores, desataram a crescer e agora chamam os pássaros e dão abrigo a musgos, arbustos e flores? Quem sabe?


Faço perguntas cuja resposta desconheço. Sou bicho inferior, só sei fazer perguntas, não descubro resposta para quase nenhuma.

Estive a fazer o tapete enquanto via televisão mas está a dar um filme que não é adequado ao meu estado de espírito e as alternativas não são muito melhores. Por isso, voltei aqui para escrever e para plantar mais algumas fotografias que fiz durante a tarde. Fotografo tudo porque tudo me maravilha. Enquanto não levar um susto de algum javali, continuarei neste meu doce flanar.


Hoje de manhã fui cortar o cabelo à cabeleireira. Queria coisa mais profunda e estruturada do que as tesouradas que lhe dou em casa. Estou com uma grande vontade de fazer uma coisa nova, apresentei uma proposta, coisa arrojada, ousada mesmo, e tenho que estar preparada para a defender. No meu íntimo sei que joguei uma cartada arriscada, dir-se-ia de improvável sucesso. E, no entanto, sei que quero que aconteça e sei que, quando quero assim uma coisa, não descanso enquanto não a tenho nas minhas mãos. Perguntei ao meu marido: 'E se não consigo?'. Ele disse: 'Se não consegues sabes o que tens a fazer'. Sei.

Mas porque sinto que, de uma maneira ou de outra, alguma coisa vai mudar, decidi que tinha que mudar de corte de cabelo para melhor sentir que aí vem uma vida nova.


E, na cabeleireira, foi aquela diversão de sempre. Disse ao meu marido: 'Se lá pusessem uma câmara a gravar e difundissem via televisão, haveria de ser programa líder de audiências'. O que aquelas mulheres dizem, o que riem, a forma como dizem que dão a volta aos maridos, a forma truculenta como falam umas das outras ou como relatam as suas pequenas rebeldias do dia a dia, fascina-me. Tudo demasiado irreal, tudo extremamente divertido. Eu estava a ler as revistas que não perco por nada quando lá estou mas com um olho nas celebridades e outro naquelas fantásticas conversas. O mundo real é surreal. Tenho pena quando vejo que estou quase despachada.


No carro, à vinda para cá, adormeci completamente. Sabem-me mesmo bem estes sonos que me desligam do mundo. Só acordei quando já estavamos a caminho do supermercado da cidade mais perto aqui da aldeia. Há lá peças de carne que não encontro na 'minha' cidade e já estou a aprovisonar mantimentos para o almoço de Ano Novo. O meu marido, como é um apressado e gosta de planear tudo, até já sugeriu que eu cozinhasse já algumas coisas ou que, pelo menos, adiantasse já as cozeduras. Claro que não vou fazer isso, ia lá servir comida a saber a coisa já feita? Vou congelar e faço no dia, excepto uns petiscos que são de demorada confecção que, esses, farei de véspera.

E estou a sentir que preciso de férias. Aliás, estamos os dois. Mas nem eu nem ele podemos agora. O que me vale é que quando me apanho com um ou dois dias de descanso, aproveito muito bem, estico o tempo, sorvo cada instante com vagar, contemplo com minúcia a beleza de cada pequena coisa.


E agora vou dormir. Já viram bem isto? Estou para aqui a escrever de gosto, nem dou pelo tempo a passar. O lume espevitou, a sala finalmente parece mais quentinha. Estou com uma manta quentinha nas pernas e sinto-me confortável. Em contrapartida o Leonardo DiCaprio, coitado, continua ali naquela dolorosa labuta, a rastejar no meio do gelo e de sangue.  E, quem sabe, a esta hora, ali fora,  sob o belo céu estrelado, andam javalis a revolver a terra à procura de bolotas.

... e eu, se não me detenho, continuo nisto. Daqui a nada são três da manhã, não tarda começa a madrugar e eu ainda para aqui nesta conversa vadia convosco. Santa paciência para mim mesma.

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domingo, junho 17, 2018

Primeiras memórias





E depois fomos a casa dos meus pais e daí ala moço que se faz tarde, a caminho deste meu lugar na terra onde eu sou mais eu. É aqui que agora estou, in heaven

Tarde de calor. Roupas de verão, cheiros de verão. À vinda, tinha começado a ler o último livro do Miguel Sousa Tavares. Como sou da contra-corrente, não li o Equador nem o que se lhe seguiu. Em contrapartida, tinha lido e gostado do Não te deixarei morrer, David Crockett. Gosto de livros de memórias, gosto de diários, de cartas, de blogs. Este livro também é de memórias. Mas, como sempre acontece, adormeci.

Chegada cá a casa, voltei a ele e, desta vez, não adormeci. Estou a gostar. Comecei pelo fim. Depois li a meio. A seguir, convencida que já estava, fui para o princípio. Miguel tinha feito seis anos na véspera, quando a mãe o chamou para lhe dizer que ia mandá-lo para casa da madrinha. Porque os pais não tinham dinheiro que chegasse para educar todos os filhos, enviaram-no a ele e a outra irmã para casa de quem se dispôs a ajudar. A irmã não sei para onde foi. Ele foi para aquela Quinta no norte. Aí esteve ano e meio e, durante esse ano e meio, apesar de estar longe da mãe, da casa e das irmãs, foi feliz. 


Começa o livro com a evocação da primeira memória de si próprio. Estava na copa e viu um raio de luz.

Pensei nas minhas primeiras memórias. Muitas vezes penso que, se calhar, invento as minhas memórias. Ouço ou leio que as pessoas apenas guardam memórias do que se passou quando já tinham idade que se visse. Eu não. Eu recordo coisas de quando era quase bebé mas recordo-as de tal forma que não me parece que sejam produtos da minha imaginação. Por exemplo, lembro-me muito bem de quando fiz um ano. Lembro-me de ter ido a casa dos meus avós maternos e de os meus pais me terem deixado à porta com um menino um ano mais velho que eu e de quem eu gostava muito. Eu já andava. Era verão e eu tinha um vestidinho branco e uns sapatos brancos. E lembro-me do sítio onde estava e lembro-me de ele me ter ido levar a casa dos meus avós e ter dito 'ela fez chichi'. E a vergonha que tive. Muita vergonha. Era uma menina crescida, tinha feito um ano e, no entanto, tinha feito chichi nas cuecas.

Fui muito, muito amiga desse menino até aos meus dez anos. Inseparáveis. Foi seguramente o meu melhor amigo até essa idade. Lembro-me muitas vezes dele. Lembro-me de passar horas e horas com ele, conversávamos muito. A inteligência dele fascinava-me bem como a sua contenção e paciência. Nunca se zangou comigo, apesar de eu frequentemente fazer de tudo para tentar tirá-lo do sério. Tinha um coração de ouro. Trabalhou na banca, tendo chegado a um lugar de relevância. Mas aquele não era o seu mundo. Contou-me a minha mãe que arranjou uma depressão, depois negociou a saída antecipada. Vive no campo, a maior parte do tempo sozinho. 


Lembro-me também de umas meninas gémeas que tinham um irmão mais crescido. As meninas eram mais velhas que eu e gostavam de tomar conta de mim como se eu fosse uma boneca. Tinham um gato. Gostavam de costurar vestidos para as bonecas e para o gato. Lembro-me do gato miar muito e de uma segurar no gato enquanto a outra o vestia. Depois vinha o irmão e zangava-se com elas e, no meio da confusão, o gato fugia e elas ficavam furiosas com o irmão. Não me lembro dos pais deles, só mesmo deles e do gato.

Lembro-me de um outro menino que tinha o mesmo nome que o primeiro. Uma vez esse meu amigo não estava e eu fiquei muito triste, sem saber o que fazer. Lembro-me da minha avó me dizer que fosse brincar com o outro mas eu não quis, não tinha graça aquele, não sabia tantas coisas, não conversava comigo, só fazia parvoíces sem jeito. Fiquei em casa, triste, à espera que o meu amigo chegasse.


Também me lembro de odiar leite, aquele leite morno, que me sabia a leite gordo e que, se arrefecia, criava umas natas que me davam vómitos. De manhã, a minha mãe não sabia o que fazer para o meu pequeno-almoço. Juntava ovomaltine mas, apesar de mais suportável, não conseguia beber de seguida. Também não gostava de pão da véspera, seco, sem graça. Mais tarde, a minha mãe viria a descobrir que, se fizesse papas de aveia a que juntava ovo, casca de limão, e que decorava com canela, eu gostava. Mas, tirando isso, eu não gostava de nada. Só já adolescente percebi que se o leite fosse magro, sem açúcar e frio até gostava. Também adolescente percebi que, se a minha mãe me tivesse dado iogurte e fruta e frutos secos, eu comeria tudo. Mas não. Quando era pequena, ela queria que eu me despachasse e eu não conseguia. Então, combinava que, quando chegasse à escola infantil, a educadora me daria pão que a padeira ia levar ainda quente e eu gostava muito daquele cheiro a pão quente que era barrado com manteiga e a manteiga logo derretia e, para me convencer a beber leite, a educadora juntava-lhe uma pinga de café mas nem assim, só gostava mesmo do paozinho quente. Nunca gostei de garotos, galões ou essas coisas mornas e doces.


E lembro-me, também na infantil, de haver um menino terrível, que gostava muito de mim e eu dele. Portava-se sempre mal e eu gostava cada vez mais dele. Por exemplo, comia formigas. Os outros meninos e meninas ficavam escandalizados. Mas eu não queria ficar-lhe atrás e também as comia. As meninas, então, ficavam chocadas mas eu gostava de chocar as meninas bem comportadas. Tinham um sabor agudo, ácido, as formigas. Não gostava mas também não era completamente horrível. Soube mais tarde que era ácido fórmico. Quando a minha mãe soube, passou-se, proibiu-me. Mas as formigas que eu já tinha comido... Se tinham que fazer mal, já fizeram, paciência. Por essa altura, também nos davam lá na escola óleo de fígado de bacalhau. Não me lembro se o tomávamos todos pela mesma colher mas tenho ideia que sim. Fazíamos fila e havia um frasco grande. Sempre ouvi dizer mal do óleo de fígado de bacalhau mas eu nunca tive razão de queixa. Aliás, gostava. 

E lembro-me bem de tudo isto.

Também me lembro de entrar um menino mais novo que eu. Ele tinha quatro e eu cinco. E ele apaixonou-se por mim e, de vez em quando, saía da mesa dele e vinha ter comigo e punha-se de joelhos abraçado às minhas pernas, como que querendo fazer isso às escondidas. A educadora pegava nele por um braço e dizia: 'olha o maluco do rapaz, para o que lhe havia de dar'. Eu não ligava porque ele era dos pequenos e eu já era dos grandes.


E lembro-me do irmão mais novo daquela que viria a ser minha tia e que morava ao lado da escola ter tido um grande acidente e ter ficado muito mal, paralisado, e eu ficar tão impressionada, tão aflita, que não queria ir para aquele lado do recreio com medo de vê-lo. Acho que não suportaria a ideia de vê-lo tão diminuído, numa cadeira de rodas. Aliás, durante anos tive pavor, absoluto pavor, de pessoas com ferimentos ou doenças. Penso -- mas não sei se foi mesmo -- que tenha a ver com aquilo de que já aqui falei, do meu avô materno ter morrido num acidente e de terem tentado ocultar de mim, e de a minha mãe e a minha avó terem ficado muito perturbadas e de me terem mandado para casa da minha outra avó para tentarem preservar-me. Tal como nessa altura fiquei gaga (não sei durante quanto tempo, mas creio que uns meses), devo ter ficado de tal forma traumatizada que não apenas não me lembro de nada relacionado com isso como ficava aterrada quando via alguem ferido ou doente.


Mas tudo isto são memórias de bem novinha, tudo isto de que falei se passou antes de chegar à primária, ou seja, antes de fazer seis anos.

E há ainda uma coisa de que eu acho que me lembro mas essa, a ter acontecido mesmo, teria sido anterior a ter feito um ano e, por isso, admito que seja apenas memória do que os meus pais contavam. E, no entanto, aquilo de que me lembro é da parede, do candeeiro, de uma senhora vestida de escuro e de uma casa muito sombria. 

Já contei: fui fenómeno. Comecei a falar aos seis meses. A primeira palavra foi cão e dizia-a quando, na rua, o cão ladrava. A minha mãe assustou-se. Chamou a vizinha. O meu pai chegou e encontrou as duas assombradas. Mas a seguir a cão vieram outras palavras. Uma vez, contam, foram a casa da madrinha do meu pai. E, quando a madrinha acendeu a luz, eu disse luz e preguei um susto à senhora. E eu acho que me lembro desse dia pois lembro-me de estar ao colo da minha mãe e de não gostar daquela casa nem daquela senhora mal encarada e lembro-me de todos a quererem tirar a limpo e que eu repetisse luz mas eu não dizer porque não queria estar ali. Mas, se calhar, é efabulação minha em volta da descrição dos meus pais.

Não sei.


Penso que se me puser a recordar, as memórias, como cerejas, começam a surgir.

Por exemplo, lembro-me de que, quando o meu primo estava para nascer, teria eu uns cinco anos ou quatro, já que ele tem cinco anos de diferença para mim, fui com os meus tios e com a minha avó convidar essa madrinha do meu pai para madrinha também do meu primo. Deve ter sido numa altura de férias e eu devia estar em casa da minha avó. E essa madrinha disse que, se fosse menino, gostava que fosse Luís e a minha avó disse que gostava que, se fosse menino,  tivesse o nome do meu avô que tinha morrido uns dois ou três anos antes, e, ao dizer isso, desatou a chorar. E os meus tios ficaram comovidos mas disseram 'Então, agora o que é isso...?' mas ela chorava sem parar. Lembro-me muito bem disso. Era de noite e estávamos numas cadeiras debaixo de um caramanchão de flores. E o primeiro nome do meu primo é mesmo o nome desse meu avô.

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Já escrevi demais. É tardíssimo. O meu marido dorme a sono solto. Daqui a nada levanta-se e vai desbastar árvores. Hoje esteve a cortar pés de azinheira ou aroeira que estavam a crescer na barreira. É madrugador e eu sou noctívaga. Quando me levanto ao fim de semana já ele está a pé há horas. Ele lastima eu não ver o nascer do sol e eu também lastimo não ouvir o despertar dos pássaros. Mas nada a fazer, sou assim, bicho da noite e do silêncio.

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As fotografias foram feitas esta tarde aqui, in heaven, e Nelson Freire interpreta 'Melodía de Orfeo y Eurídice' de Gluck

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quarta-feira, junho 13, 2018

Introspecções e outras visões





Mais um dia longe do mundo. Assim vão estes meus dias. Quando ia a sair, disse 'até amanhã' e umas que ainda lá ficaram olharam para mim a rir. Não percebi aquele sorriso. 'O que foi?' Entre sorrisos, elas explicaram, : 'Presume-se que amanhã não venha, não...? Amanhã é feriado'. Recentrei-me e sorri também, 'Ah, pois é... ' Tinha-me esquecido. Bolas, a desejar tanto ter tempo livre e, afinal, tinha-me esquecido. E, no entanto, Lisboa cheira a festas por todo o lado. Barraquinhas, esplanadas nos passeios, festões e balões, cheiro a sardinhas, turistas, turistas, turistas. E, apesar de tudo isso, tinha-me esquecido. Senti-me a mais palerma das palermas. E pensei: como será que me vêem? Despassarada? Aluada?


No outro dia aconselharam-me: devia prestar mais atenção à forma como as pessoas a vêem. Não quer dizer que a visão dos outros seja mais correcta do que a sua própria mas, se prestar atenção, terá uma outra visão e isso é sempre enriquecedor. Contestei: presto atenção. Sei ver quando alguém não está bem, interesso-me, as pessoas procuram-me para desabafar ou para se aconselhar. Disseram-me: quem a conhece melhor, sabe que é diferente da imagem que passa nas primeiras impressões mas não é isso, é prestar atenção à forma como as pessoas a olham. Não argumentei. Se é isso, então, é isso. Depois continuaram: não planifica a sua vida, parece não ter ambição. Confirmei. Mas foram mais longe: não é normal, na sua posição, ter tal desinteresse pela sua 'carreira'. Encolhi os ombros e disse: não vou mudar, isso é muito intrínseco em mim. Mostraram-me um gráfico. A seta estava no encarnado, perto do zero numa escala que ia até ao cem. Perguntaram: porquê? Pensei um pouco porque estava a pensar nisso pela primeira vez. Expliquei que a minha vida tem muitas parcelas e não quero que nenhuma delas devore as outras. Se me focasse demais numa das vertentes da minha vida, no trabalho, por exemplo, faltava espaço para as outras. E se me concentrasse muito em atingir um determinado objectivo, deixaria de estar alerta a factores inesperados que talvez seja melhores do que aquele que eu desejava atingir. Disseram: as suas opiniões são sustentadas, alicerçam a sua maneira de ser. Na sua óptica tem razão e, se calhar, faz sentido mas estas análises são feitas contrastando a maneira de ser de uma pessoa com a média de muitas outras pessoas que desempenham funções idênticas. Encolhi os ombros. Pensei: o que é que eu tenho a ver com isso? Como se adivinhando, disseram-me: não quer saber de nada disto, pois não? Confirmei: não quero. Concluíram: é uma pessoa desalinhada. Também me disseram que sou fora da caixa. E outras coisas. Quando cheguei a casa contei e mostrei o relatório. O meu marido riu-se e disse: 'E achas bem seres assim maluca?'. Respondi-lhe: 'Não sei se sou ou se deixo de ser, nem acho bem nem deixo de achar'. Ele rematou: 'É o que eu digo e agora está confirmado: és maluca'. Hoje, ao jantar, a propósito não sei do quê, gozou comigo, e, quando eu não percebi, explicou e, depois, concluiu que eu devia prestar atenção aos conselhos que recebo. E perguntou-me: 'Não reconheces que só um santo podia viver com uma pessoa tão atípica como tu?' Eu disse que ele deveria estar agradecido por lhe ter saído o brinde e não a fava. E ele riu-se e desvalorizou: qual brinde qual carapuça.


Hoje, à tarde, uma pessoa perguntou-me como tinha sido, o que me tinham dito. Omiti as coisas positivas e disse: que devo prestar atenção à forma como os outros me vêem. Ele sorriu. Continuei: que muitas vezes a imagem que passo é a de que me estou nas tintas para o que os outros pensam de mim. Ele riu. Perguntei: 'É?'. E ele, rindo: 'É'.


Lembro-me da minha mãe: 'Não chegues tarde, não faças isto, não faças aquilo, vê lá o que vão dizer de ti ou o que vão as tuas tias dizer ou as vizinhas reparam e comentam'. Ficava aborrecida com a maneira de ser da minha mãe por se preocupar com a opinião dos outros. Nunca liguei a tal coisa e achava que a minha mãe se menorizava por se condicionar para não despertar opiniões menos abonatórias. Dizia-lhe: 'Sou como sou, faço o que quero e estou-me nas tintas para as opiniões dos outros'. Era a grande, e creio que única, razão das minhas divergências com a minha mãe. Ainda hoje, se sabe que vou estar com alguém da família, olha para mim, examina-me, diz que me penteie, pergunta se não podia ter vestido nada melhor. Já não respondo. Mas, apesar de tudo, está bem melhor agora do que quando era mais nova.

Só agora aos oitenta e tal é que ela começou a libertar-se: no outro dia estava com umas calças justas em cor de pérola, uma blusa justinha às risquinhas e tinha um colete que eu lhe tinha dado e que ela não usava porque é fúcsia e justo e ela achava que não tinha idade para coisas daquelas. Agora gosta de se ver. Quando começou a ser ela mesma, parece que lhe tiraram vinte anos de cima.


No meio da outra tal conversa, disseram-ne: não guarda ressentimentos, pois não? Confirmei: zero. Ponho para trás das costas. E, como sou muito primária, mal ponho para trás das costas, esqueço-me. Às vezes até penso que devo ser anormal. Disseram: mas isso é bom. Há muita gente que faz terapia durante anos para conseguir ser assim. 

Mas sei lá. Nem sei nem quero saber. Mas um dia que tenha tempo, a ver se consigo ler o relatório todo. Tem para aí uma dúzia de folhas e parece-me muita folha para me desconstruir. Não sei se terei paciência para ler tanta coisa sobre matéria tão pouco sexy. A parte dos conselhos, então, deve ser uma seca.


O que me chateia no meio disto tudo é não ter tempo para fazer tudo o que quero. No congresso do PS não falaram que iam fazer com que as pessoas tivessem mais tempo para si próprias ou que as pessoas trabalhassem menos horas à medida que vão tendo mais anos de antiguidade? Tenho ideia que sim. Espero bem que sim. Por exemplo, se pudesse trabalhar para aí só umas seis horas por dia era bom. Podia ficar livre a meio da tarde para poder caminhar à beira rio, depois ler, quiçá tentar descobrir como se faz meditação, estar tranquila, sem pressas. 


Também já estive a fazer o euromilhões e desta vez até fiz o totoloto. Se fosse contemplada, ficava a viver só de rendimentos até atingir a idade da reforma. Claro que ocuparia parte do meu tempo a cortar mato, a desramar árvores, a varrer o chão e outras daquelas actividades que tanto me motivam e realizam. No fundo, conseguir isso é a minha verdadeira ambição. E, por muito que isto possa parecer uma maluqueira, juro que estou a falar a sério.

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Um bailado líndissimo para enlevar a alma

Orphée et Eurydice de Gluck / Ópera dansada por Pina Bausch



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Ilustrações de Toni Hamel

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terça-feira, setembro 24, 2013

António Ramos Rosa - os poetas não morrem. Por ele, festejo aqui 'a luminosa corola dos sorrisos' e 'a lentidão clara do sossegado desejo de não ser nada'.










                                                              Agrípia, foi a partir de ti que eu renasci
                                                              na luminosa corola de um sorriso
                                                              e os meus navios cinzentos e perdidos
                                                              seguiram a bondade do teu rumo.
                                                              Esta casa não seria a minha casa
                                                              se não fosse a tua branca arquitectura
                                                              e o teu hálito límpido que me guarda
                                                              nas suas tranquilas coordenadas.
                                                              Por ti o horizonte está em casa
                                                              e nele eu vivo contigo a ondulada
                                                              permanência da alma iluminada.




(...)

a lentidão clara
do sossegado desejo
de não ser nada


*

Gosto de festejar a vida e gosto de trazer aqui os poetas sempre que me apetece a transparência das palavras puras.

Por isso, trago hoje aqui o poema Agrípia de António Ramos Rosa, casado com Agripina Costa Marques, poetisa a quem ele dedicou tantos poemas. Para António Ramos Rosa, Poeta Maior, habitante frequente de Um Jeito Manso e do Ginjal e Lisboa, sempre haverá lugar nestas minhas e vossas casas. Que aqui chegue, curvado, etéreo, luminoso, e nos deixe as suas palavras pausadas.


É certo que já alcançou o seu desejo de lentidão clara e que avança agora, voando, a caminho do sossegado desejo de não ser nada. Mas nós, os que por aqui ficamos por mais algum tempo, iremos continuando a desfazer os nós dos nomes e aceitando a oferta nua da sua abolição, vendo as aves de sombra, sentindo o tempo a fluir sem ecos.

*

As imagens são fotografias de Steve McCurry do post Two of Us. A música é Nelson Freire interpretando Gluck / Sgambatti Melodia de Orfeo e Eurydice.


Para além do poema Agrípia, o pequeno excerto bem como as expressões em itálico são também de António Ramos Rosa e fazem parte do poema Passa uma Ave de Sombra e podem ser lidos na sua Antologia Poética (selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes).


*

Apenas para espairecerem ou para esparveirarem, ou, então, para acentuar o contraste entre um Poeta Escritor e um Valtinho, permito-me referir que, se descerem um pouco mais, poderão perceber, com provas documentais, o que é um livro muito plástico e uma utopia de purificar a experiência difícil. Admito: reincidi na desumanização. É já a seguir.

*

Resta-me desejar-vos, meus Caros Leitores, uma terça feira muito simpática 
(agora que já estamos no Outono, tempo de gentilezas e suavidades)