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terça-feira, abril 13, 2021

Trabalhos, penteados e uma entrevista saborosa

 


Hoje comecei o dia, recebendo telefonemas atrás de telefonemas estando eu ainda na cama, a acordar. Não gosto. Gosto de acordar na minha hora, quando o meu corpo se sentir confortável com o despertar. Se acordo quando o meu marido se levanta, peço para abrir a janela. Abrir a janela é como quem diz, pô-la basculante. O estore em si fica apenas chegado até abaixo mas com os buraquinhos todos abertos para entrar luz e ar. O meu marido protesta com os meus pedidos, diz que não está tempo para abrir a janela, que entra ar frio. Eu gosto. O ar frio da manhã com canto de pássaros à mistura é muito bom. Daqui por algum tempo, poremos o sistema de rega a funcionar. E, portanto, acordarei com o frescor da aurora, o som da rega, o canto dos pássaros, o cheiro das flores do canteiro sob a janela. Geralmente volto a adormecer, tranquila, encantada, e acordo com o despertador.

Ao fim de semana, não havendo compromissos, acordo e fico um bom bocado no quentinho, no bem bom, curtindo o prazer de estar entre lençóis em pleno dia. 

A antítese de tudo isto é estar a dormir e acordar com o telefone. Uma neura. Pior ainda se, atendendo, estiver do lado de lá alguém cheio de problemas, alertas, ralações e que faz questão de os passar inteirinhos para mim. Detesto. A minha cabeça gosta de ter um tempo de setup generoso. 

Outra coisa que também me estraga o dia é ter que acordar à pressa, com aceleradas abluções e petit dejeuner sem um mínimo de vagar e qualidade e, sem tempo para me ver ao espelho, ajeitar cabelo ou passar um brilhozinho nos lábios, entrar em reunião e, de súbito, ter que me sintonizar num outro comprimento de onda. Não gosto. Nada.

E esta segunda-feira, dia já de si desagradável, acordei assim. Telefonemas, telefonemas. Depois, tantas as emergências, tive que marcar reunião e, de supetão, entrar nela. Estava a entrar na dita e a pensar: isto não vai correr bem. Penso que só os distraídos é que ainda não perceberam que não deveriam pôr-se a jeito, ainda por cima a uma segunda-feira de manhã. Não correu bem, claro. Dei por mim a falar devagarinho, baixinho, nitidamente a conter-me para não me portar mal. Depois, na seguinte, a que estava planeada, a que era para ter corrido rapidamente, atrasou-se. Um incómodo. 

Fomos caminhar à hora a que deveríamos estar a almoçar. Podia não ter ido e limitar-me a almoçar. Mas preferi andar. Como a seguir tinha outra para a qual tinha que ler um documento antes, almocei uma banana. Horas nisto. 

E assim fui até que terminei por volta das sete e tal, hora a que tive que ligar a um colega, depois à minha filha, depois à minha mãe. Felizmente, o jantar foi um resto que estava parqueado no frigorífico, senão daria para belas horas. A seguir estive à conversa com o meu filho. E mal me instalei, novo mail a pedir-me uma opinião antes da reunião de amanhã. Pensei: gaita, lá terá que ser, vou mas é despachar já senão amanhã, em vez de acordar com os passarinhos, acordo com um pedido de opinião. 

E é isto. Ainda me lembro de um dos meninos me ter perguntado: o que é que tu fazes? E eu ter ficado sem saber bem o que dizer. Como se explica a uma criança a vida que levo? Não curo doentes, não construo ou projecto casas ou pontes, não defendo prisioneiros, não sou professora, não sou cabeleireira ou polícia, não sou jardineira. Faço o quê? Só isto que aqui vos conto e que, espremido, não sei se dá algum sumo.

E, assim, neste comprimento de onda, os dias vão passando. À hora do almoço, o tempo estava razoável, havia raios de sol, a temperatura estava amena. Quando, ao fim da tarde, saí para o jardim para apanhar ar enquanto falava com a minha filha, estranhei: estava frio, o céu escuro, fechado, o chão molhado, alguma coisa tinha chovido. Cheguei a casa, tive que me agasalhar, parece que a própria casa tinha esfriado. Não percebi.

Usei hoje o poncho de lãzinha fininha que a minha mãe me fez e que, por causa do confinamento, só ontem recebi. Tem aquela cor de que tanto gosto, é solto e macio, e é quentinho. 

E agora aqui estou. Do que me apercebo, continua o fuzuê em torno de Sócrates e de Ivo Rosa, com as vizinhas comentadeiras a comentarem-se umas às outras. A coisa já deve ir na quinquagésima derivada, com o gato e o cão a desfiarem palpites sobre a relevância das provas indirectas e sobre se há razão ponderosa para que o grande Perna, afinal, não seja tratado como o DDT mas apenas como um pindérico portador de um canivete suiço. E, aproveitando o descaso, o coroninha dos pink totós, agora todo feito prosa, a dar-se ares de primo da rainha, todo posh, vai pulando toda a cerca que pode, deslizando do verdinho para o amareladinho, já com tonzinho laranja, a namorar o encarnadinho. Blink, blink.


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As fotografias mostram uns penteados que me deixam roída de inveja. E não é da branca, é mesmo da tinhosa. Gostava mesmo que o Alexis Ferrer me fizesse um penteado assim, com pinturas a preceito.

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E, já agora, deixem que partilhe uma entrevista gostosa. Gente inteligente e desprendida é outra coisa.

Fernanda Montenegro - Conversa com Bial 

No ano em que comemorou seus 90 anos, a atriz lançou seu livro de memórias, "Prólogo, Ato, Epílogo". A obra foi o assunto do Conversa com Bial de 03/10/2019, que celebrou a grande dama do cinema e da dramaturgia do Brasil. Marta Góes, a biógrafa, também estava na conversa e é definida por Fernanda como "uma excelente parteira". O livro é fruto de 18 entrevistas transcritas e editadas por Marta e a conversa foi uma aula de vida e de atuação.


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Desejo-vos um dia bom

sexta-feira, março 06, 2020

Mulher/es





Nisto do COVID-19 dá para ver a diferença entre homens e mulheres. Os homens gostam de se mostrar superiores a tretas, paranóias não é com eles, medo não têm de nada. Se alguma mulher diz que tem que se acabar com os apertos de mão ou com os beijinhos, eles riem, fazem chalaça, trocadilho ou graçola, como se ter cuidado fosse coisa de mulher, fosse mariquice, caguinchice, e, para anular o cuidado, há quem, jocosamente, pergunte se beijo na boca também faz mal. As mulheres, pelo contrário, preocupam-se com todos, querem prevenir, alertam, explicam, sujeitam-se às chacotas palermas deles.

Claro que há mais diferenças, mil diferenças. Por exemplo, nisto dos refugiados até dói. O que aqueles estúpidos homens, todos homens, fazem é de vómito. A humilhação, a indignidade, a falta de respeito com que aqueles milhares de pessoas são tratadas é de partir a alma. Homens sem cabeça, sem alma, sem coração, homens que se esquecem que são efémeros, homens que destroem a vida de milhares de pessoas. Homens.

São também maioritariamente homens os que dão gás à especulação financeira, são homens que, recebendo multimilionários bónus, levam os bancos à falência, são homens os reguladores que nunca detectam qualquer irregularidade, são homens que alimentam a indústria de armamento, são homens que inalam petróleo e se marimbam para o planeta, são homens que abrem e fecham fronteiras como se fosse despique de extremas entre vizinhos, são homens que fazem tiro ao alvo, sendo os alvos os refugiados. Não vejo mulheres aos comandos nessas situações. Não digo que as não haja, digo apenas que não as vejo.


Haverá excepções. Há homens que não são parvalhões, há homens que não são estúpidos, há homens que não são marialvas de meia tigela. Há homens que merecem o mundo. Que merecem o céu. Que merecem todo o amor do mundo.

Há pouco, a falar com a minha filha sobre isto e queixando-se ela do mesmo, dos valentões de plástico, dizia ela: 'Mas, se ficam doentes, é vê-los na mariquice'. E é. Conheço um que gosta muito de se armar em macho man. Quem o veja parece ele que não tem medo de nada e que é superior, mas superior lá muito em cima, a qualquer um (ou uma) que se mostre humano mostrando por vezes algum medo. Pois bem, se tem uma indisposição de caca fica para morrer, parece que está em risco de vida, liga para todos os médicos que conhece, faz mil exames, durante dias não fala de outra coisa. 

Muitos dos erros deste mundo devem-se a disparates masculinos: têm medo de dar parte de fracos, fazem de tudo para não arriscarem uma nega, não arriscam um gesto mais temerário com medo de que corra mal e, sobretudo, têm medo de ser confrontados ou gozados, medo que a sua imagem saia beliscada. Uns cobardolas sob a fina capa de campeões.

As mulheres são mais ousadas, arriscam mais, marimbam-se mais para a censura alheia, genuinamente preocupam-se mais com os outros.


Digo sempre que não sou feminista mas acho que o digo sobretudo porque detesto rótulos e não consigo encaixar-me em agremiações, sejam de que tipo forem. Mas, rótulos ou agrupamentos à parte, a verdade é que acredito no valor e no poder das mulheres e acredito que muitos dos males do mundo se devem ao excesso de homens em lugares de poder.

É certo que as coisas começam a ganhar outro rumo: há mais mulheres em lugar de comando e mais mulheres a rebelarem-se contras as desigualdades.
[Mas, tenho que dizer, também não suporto ver as mulheres a armarem-se em vítimas puritanas, a acusarem de tudo e mais alguma coisa homens junto dos quais antes se derretiam, a tomarem por assédio qualquer graçola masculina ou a fazerem-se de coitadinhas por qualquer insignificante porcariazeca. Mas adiante].

E isto dito passo ao vídeo abaixo, um trailer de um documentário que é pena que não chegue cá pois deve ser muito bom.

Woman

Woman répond à l’envie de regarder le monde avec les yeux d’une femme. Ce film nous amène aux quatre coins du monde à la rencontre des premières concernées : toutes ces femmes aux parcours de vie différents, façonnées par leur culture, leur foi ou encore leur histoire familiale.C’est aussi le reflet du monde actuel. Un reflet parfois sombre face à toutes les injustices subies par les femmes. Mais avant tout, ce film est un message d’amour et d’espoir envoyé à toutes les femmes du monde. Une tentative de comprendre leur vie, de mesurer le chemin parcouru mais aussi tout ce qui reste à faire. Comment y parvenir ?
Ensemble, elles font émerger une autre vision du monde, indispensable pour construire l’avenir de notre #planète. Après « Human » en 2015, Anastasia Mikova et Yann Arthus-Bertrand proposent « Woman » en abordant plusieurs thèmes forts comme l’éducation, la pauvreté, la justice et le courage. Parce que faire entendre la voix des femmes est une priorité, la Fondation ENGIE a décidé de soutenir Woman et plusieurs associations mises en avant dans le film : http://bit.ly/Woman-FondationENGIE
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As esculturas são de Camille Claudel e enlaçam-se ao som da música de Clara Schumann

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domingo, julho 02, 2017

Do mundo antigo e do mundo futuro permanecerá apenas a beleza





De entre o bravio tojo, de entre as mais simples flores, nos mais sombrios recantos, surgem vestígios da mais pura e requintada beleza. Baixo-me para melhor contemplar. Quanta perfeição, quanta graça que daqui irradia. Folhas que parecem finas agulhas que se curvam como anéis, flores que se desfazem em plumagem que irradia luz, restos de raízes que se enovelam e de onde agora despontam novas vidas. Sem mão humana que macule a inocência da primordial criação, a natureza tece as suas maravilhas para que olhares atentos as descubram. Um bordado feito de fios verdes e dourados, uma tela entretecida com flores e vagares num mundo habitado pela quietude, pela pureza mais luminosa, pela mais intocável paz.


Assim a natureza boa de algumas pessoas, a entrega mais genuína, a devoção mais docemente cantada, assim o afecto mais puro: invisíveis aos desatentos, preciosos para quem deles se abeira.

Tece com transparentes e amorosos fios de palavras aquele que, em silêncio, pensa na sua amada e a ela quer fazer chegar o seu mais puro anelo, a sua mais doce nostalgia.

Podem os dias de ruído e poluição imiscuir-se na vida de quem preferiria caminhar em idílicos carreiros, podem os passos ser levados para longe das abrigadas clareiras onde a luz se aninha, que nunca a alma se deixará aprisionar ou moldar: sempre ela seguirá o seu voo, livre, livre como um pássaro dos rios e dos mares ou como uma árvore que se eleva procurando o azul, deixando que a sua ramagem dance segundo os humores da natureza.

Do mundo antigo e do mundo futuro nada mais ficará senão a beleza, a beleza que nasce efémera e, sem querer, se torna eterna.


Talvez também por isso, caminho por entre as árvores mais humildes, em veredas atapetadas por simples caruma, venero pedras e folhas, detenho-me, rendida, perante as mais pequenas flores ou perante as mais sentidas rugas ou caídas peles que as árvores deixam perceber nos seus troncos -- e de tudo tento que em mim se inscreva toda a beleza, a eterna beleza que há no mais fundo das coisas, no mais secreto dos gentis corações, no mais silencioso dos doces olhares de quem nos quer bem.


Del mondo antico e del mondo futuro
era rimasta solo la bellezza
Il mondo te l’ha insegnata,
Così la tua bellezza divenne sua.

-- La Rabbia --


[Poema dedicado por Pasolini a Marilyn Monroe]




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[E queiram, por favor, continuar a descer caso vos apeteça permanecer in heaven]

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quinta-feira, janeiro 05, 2017

Livros
- que bom lê-los, que bom vê-los, que bom tê-los





Preciso de ter livros por perto. Posso não ter tempo para os ler, posso não ter lugar para os arrumar, posso nem saber como arrumá-los. Mas tenho que os ter ao pé de mim. Tenho que poder vaguear por entre eles e escolher um, outro, outro.

Esta minha sala está dominada pelos livros. A mesa redonda ali ao pé da janela está cheia deles. No outro dia temi que quisessem usá-la para lanchar. Felizmente não. Nesta minha mesa os livros são os utilizadores, são os donos.

Ao meu lado, aqui no sofá, estão três livros. De quando em quando abro um, leio. No móvel ali ao lado, há pilhas deles. Nos móveis estão livros que me parecem antigos. No corredor que leva da sala ao hall, há uma estante. Cheia de livros. Por cima da porta há uma prateleira grande. Cheia de livros. No chão ao lado da estante há uma pilha. Ali mais ao fundo, há uma cesta larga. Cheia de livros. Ao lado da cesta há várias pilhas. Por baixo das janelas há estantes. Várias. Cheias de livros. À minha frente está um móvel baixo. De comprimento tem dois metros e quarenta. Em cima a televisão, molduras com fotografias. Lá dentro, livros. Atrás de mim está uma pequena secretária. Ao lado da secretária, uma estante. Cheia de livros. No canto, junto à janela, há uma estante muito alta e estreita, pregada à parede, feita à medida. Cheia de livros.

No hall há duas estantes. Cheias de livros. Na varanda há uma estante. Cheia de livros.

O que eu gosto de livros transcende o meu gosto por ler, que é imenso. 
Nos livros está todo o conhecimento do mundo, todo o pensamento, todos os sonhos. Os livros escrevem o mundo, inventam outros mundos. O mundo descrito e inventado numa infinita construção. 
Mas gosto também, e muito, do objecto livro, sou sensível ao toque do papel, ao tipo de letra, ao espaçamento da escrita na folha, às margens, ao cuidado na paginação, à capa, à própria dimensão do livro. Ao cheiro. Sou sensível a tudo, num livro. Sou sensível à elegância do objecto livro. E, não sei se por isso ou se por uma outra qualquer razão, tenho também o prazer da posse. Gosto de ter livros.

Não sei se é bom vender livros. Talvez quem venda livros se abstraia do que está a vender e venda livros como quem vende sabonetes (ou presidentes). Eu acho que não gostava de trabalhar numa livraria porque não suportaria perguntas estúpidas ou observações de gente armada em entendida. No máximo suportaria pedidos do tipo 'que livro me aconselha?' e eu olharia para a pessoa e, pela pinta, recomendaria um sendo que, a algumas, recomendaria livros do género 'como tirar a areia da cabeça de um burro' (ou burra). Ou adoraria, a um executivo de tipo 'cheguei, vi e venci', recomendar o último livro da Adília Lopes e dizer 'leve este, é a sua cara'. Ou a uma daquelas feministas empedernidas, daquelas de saia de malha cinzenta e pendona, cabelinho assimétrico, franja pelo alto da testa, sacola ao ombro, recomendar, com ar ternurento, um livro do Valtinho e dizer 'vai ver que vai apaixonar-se por ele, vai ver ainda acaba a querer ser a mamã do filhote que ele tanto quer...'

Também não sei se gostaria de trabalhar numa editora. Não suportaria ter que ler livros maçadores, mal escritos, banais, até que descobrisse, finalmente, uma pepita digna de ser publicada.

Mas não me importava de ter um trabalho que fosse fazer bibliotecas para gente que não soubesse escolher livros. Ou de arrumar livros alheios. Não me importava que me levassem a casa e me pedissem: arranje-me uma estante e livros lá dentro. Carta branca. Eu a imaginar os livros que fossem uma janela para um mundo novo, que os seus donos ficassem apaixonados pela leitura, que se tornassem viciados, sempre desejosos de abrir o livro seguinte.

De vez em quando gosto de ver sites de editoras. Ou da Folio Society ou da Juniper Books. Parece-me uma espécie de arca do tesouro, um mundo fascinante.


Há ali bom gosto. Claro que têm edições mais comerciais ou, no caso da Juniper, admito que, de vez em quando terão que fazer a vontade ao freguês e saem obras que eu, naturalmente, não quereria. Mas é a excepção. Regra geral há originalidade, sobriedade e, até, bom humor.

Todas as fotografias que utilizo aqui provêm da Juniper.

E, se não me levam a mal, junto também um vídeo que mostra o prazer que deve ser trabalhar ali. E como deve ser bom ter uma casa muito grande com espaço para arrumar bem todos os livros... A propósito: lembrem-me, por favor, de fazer o euromilhões. Lembram?


What is Juniper Books?



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E agora perceberão, certamente, que, tendo eu a cabeça no mundo dos livros, não me tenha apetecido falar do mau romance entre o Domingues e o Centeno.


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domingo, novembro 06, 2016

Sem título




Escrevo sem saber o que vou escrever e, quando me parece que o quadro está pronto, páro de pintar e, logo que me parece que o tecido está todo bordado, remato as pontas e, assim que me parece que captei a luz, a cor e o movimento, desligo a câmara, ponho o tapete no chão, o quadro na parede e as palavras, essas, solto-as na noite escura.

O processo é sempre o mesmo. Começar. Tentar não pensar. Faço isso muito bem. Penso que a isso se chama meditar. Só o percebi há pouco tempo. Abstrair-me de tudo. Estar inteira em cada momento. Tudo o resto, influências, laços, medos, padrões -- tudo desaparecer. Entregar-me ao prazer do momento, da descoberta. Depois desapossar-me.
Escrevo e, mal acabo, solto de mim o que escrevi, esqueço-me do que escrevi. 
Assim com tudo. Nenhum papel. Nenhum caderno de apontamentos. Não aponto nada. Não me interessam registos do passado. Nem me interessam listas de objectivos a alcançar no futuro ou, sequer, tarefas a fazer. Deixo que o acaso me conduza. Faço escolhas de entre as que o acaso me reserva. Não forço nada. Se não me agrada nada do que me é dado escolher não escolho, aguardo que chegue o momento em que a escolha está feita por si.


Também não organizo nada. Não tenho pastas, nem físicas nem virtuais. Não me interessa a segmentação, apenas o todo. 

O meu passado são as memórias que transporto e as quais o tempo vai modelando, com suavidade.

O meu futuro é o que for. Não tenho ambições. Não quero saber tudo o que há para saber, não quero alcançar o topo, não quero atingir a perfeição.

Nos livros não leio anotações. Não quero saber o que os outros pensaram sobre um assunto tal como espero que ninguém se lembre de me citar sobre o que quer que seja.

Penso que não é assim que os outros me vêem e, por isso, não sei dizer se sou como me vejo ou como os outros me vêem mas isso não me interessa. Talvez também por isso, estou sempre bem como estou.
E não sei se já alguma vez disse alguma coisa diferente. E se disse, é porque mudei de ideias e ainda bem. Então aquilo de o homem ser o que é e mais as suas circunstâncias, não se aplica às mulheres, querem lá ver? Portanto, que ninguém me venha cobrar o que eu disse ou fiz. Também não o faço com ninguém: tento ser decente.

Mas chega de proseado e passemos a coisas concretas. A filosofia, a psicologia e outras vertentes do pensar e sentir é tudo muito bonito mas, no concreto, a vida não é senão a vidinha. E a vidinha é apenas uma sucessão de dias. E os dias uma sucessão de momentos.

E assim sendo -- venha ou não a propósito -- conto como foi o meu sábado.

Andei à chuva de manhã. Não foi de propósito mas aconteceu. E não me fiz rogada. Senti que o verão tinha acabado porque também estava mais frio. Gostei. Almocei num japonês. Também gostei. Trabalhei de tarde. Teve que ser. Visitei a família ao cair do dia. Gosto sempre. Falei ao telefone com aqueles com quem não estive. É uma necessidade e um prazer. Fui às compras já de noite. Tem que ser mas também não é mau de todo. Finalmente descobrimos uma caixa do pão decente. Fiquei contente. Tudo enfeitado para o natal. Acho que se tenta acelerar o tempo e isso incomoda-me um bocado. Vi um passarinho prateado muito bonito e tive vontade de o ter. Mas depois esqueci-me. Porém acho que não vou conseguir passar sem ele. Jantei um pastel de tofu e meio de seidan, que trouxe. E acompanhei com alface que fui roubando do prato do meu marido. Depois um diospiro doce e carnudo, tão maduro que quase me escorria da boca. E um bocado de queijo de cabra. Soube-me muito bem o meu jantar. A seguir sentei-me aqui. Li alguns blogues, ouvi música, vi vídeos. Televisão não. Escrevi o post abaixo, sobre felinos de todas as idades, e ri-me enquanto o escrevi. A seguir preguicei. Pensei que devia começar a escolher fotografias para oferecer pelo natal. Mas não me apeteceu. Ando, ando, e ainda deixo para a última hora. Como todos os natais. Ainda fui ali buscar a Odisseia. Uma pouca sorte, isto. Onde abro nunca detecto o tal golpe de asa. Ainda gostava que me mostrassem um excerto, coisa pouca, onde se sentisse o tal sopro divino.


Depois comecei a escrever isto que não sei sobre o que é. Ou melhor, sei. Mas não digo. Contudo acredito que alguém vai descobrir.

E pronto. Nada mais. Vou carregar no botão de Publicar e vou atirar fora as minhas palavras. E espero que elas não voltem atrás. Ou, se vierem, que venham de mansinho.

(Palavra, palavrinha, maçã, maçãzinha, vai, não queiras ser mais minha.)


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Ou seja: fazer e desfazer, depois recomeçar.
Amanhã é outro dia.

O instável equilíbrio de tudo isto

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Sanddornbalance  - Miyoko Shida 
Música: Edyard Artemiev - Dream Of The Eagle

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E queiram descer, por favor, para verem um belo gatarrão de 80 anos

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domingo, abril 19, 2015

Assim dizia Wilde







  • Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.
  • A verdade raramente é pura e jamais é simples.
  • Não quero ir para o céu: nenhum dos meus amigos está lá.
  • Não sou jovem o suficiente para saber tudo.
  • Dinheiro é como adubo: só serve quando espalhado.
  • Desculpe-me, não reconheci você: eu mudei muito.
  • Ser natural é a mais difícil das poses.
  • É absurdo dividir as pessoas em boas e más. Elas são apenas encantadoras ou tediosas.
  • A única diferença que existe entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura um pouco mais.
  • Se for dizer a verdade aos outros, faça-os rir, do contrário eles o matarão.
  • Quando me acontece pensar à noite em meus defeitos, adormeço imediatamente.
  • Adoro os prazeres simples. Eles são o último refúgio dos homens complicados.
  • A vantagem de brincar com fogo é aprender a não se queimar.
  • Tenho gostos extremamente simples: só o melhor me satisfaz.
  • Às vezes podemos passar anos sem realmente viver, e de repente toda a nossa vida se concentra em um só instante.
  • Convém ser moderado em tudo, até na moderação.
  • Dêem-me o supérfluo, pois o necessário qualquer um pode ter.
  • A melhor maneira de livrar-se da tentação é ceder a ela.
  • Nada pode curar a alma, excepto os sentidos.
  • Para a maioria de nós, a verdadeira vida é a que não levamos.
  • É muito difícil não ser injusto com quem amamos.
  • Quando as pessoas concordam comigo, tenho sempre a impressão de que devo estar enganado.
  • Só podemos dar uma opinião imparcial sobre as coisas que não nos interessam; sem dúvida, por isso mesmo, as opiniões imparciais carecem de valor.
  • As desventuras são suportáveis porque vêm de fora, são meros acidentes. É no sofrimento causado pelas nossas próprias faltas que sentimos a ferroada da vida.
  • Quando a pessoa está apaixonada, começa por enganar a si mesma e acaba enganando os outros. Isso é o que o mundo chama de romance.
  • O que nos absolve é a confissão, não o padre.
  • A educação é algo admirável, mas é bom recordar que nada que valha a pena saber pode ser ensinado.
  • Amar a si mesmo é o começo de um romance que vai durar a vida inteira.
  • A cada boa impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular, é preciso ser medíocre.
  • O pessimista é aquele que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta.
  • A ilusão é o primeiro dos prazeres.
  • Qualquer um pode ter empatia com o sofrimento de um amigo. É simpatizar com o sucesso dele que exige uma natureza delicada.
  • Ela se comporta como se fosse bela. Esse é o segredo do seu encanto.
  • A sensação mais agradável do mundo é fazer uma boa acção anonimamente e ela ser descoberta.
  • Dê uma máscara ao homem e ele dirá a verdade.
  • Cada um de nós é seu próprio demónio e faz deste mundo um inferno.
  • A arte nunca deve tentar ser popular. O público é que deve tentar ser artístico.
  • A vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos.

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Publicado no Brasil pela editora Sextante, “Oscar Wilde Para Inquietos” é um pequeno manual que reúne 99 aforismos do dramaturgo, escritor e poeta irlandês. 




Filho de um médico e de uma escritora, Oscar Wilde nasceu em Dublin, Irlanda, em 16 de outubro de 1854. Adepto do esteticismo — arte pela arte —, suas principais obras são o romance “O Retrato de Dorian Gray”, considerado uma das obras-primas da literatura inglesa, e a peça “A Importância de ser Prudente”, que reúne alguns dos melhores aforismos de Wilde e faz uma contraposição a ideologia da sociedade vitoriana.

Por sua homossexualidade, Oscar Wilde foi alvo de um célebre processo — “por cometer atos imorais com diversos rapazes” — que o levou a cumprir dois anos de prisão com trabalhos forçados entre 1895 e 1897. Durante o cárcere, o autor de “O Príncipe Feliz”, “O Rouxinol e a Rosa” e “Salomé” escreveu algumas das obras que ajudaria a imortaliza-lo, entre elas, “De Profundis”, uma longa carta de recriminações a seu ex-amante, na qual Wilde explica sua conduta sem tentar defendê-la; o ensaio anarquista “A Alma do Homem sob o Socialismo”; e a célebre “Balada do Cárcere de Reading”, revelando as condições inumanas da vida na prisão.

Depois de ser libertado, Oscar Wilde foi morar na França e adotou o pseudônimo de Sebastian Melmoth. Passou seus últimos anos de vida em Paris. Morreu em dia 30 de novembro de 1900, vitimado por uma meningite, agravada pelo álcool e pela sífilis.




Este texto e os aforismos que escolhi de entre os 99 foram extraídos do artigo da Bula que, uma vez mais, me foi dada a conhecer por Leitor a quem volto a agradecer.

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E, a propósito de Wilde:

The Harlot's House de Oscar Wilde (lido por Tom O'Bedlam)



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"The Arrest of Oscar Wilde at the Cadogan Hotel" de John Betjeman (lido por Tom O'Bedlam)

 

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E, ainda. Wilde.



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Permitam que vos informe: no post seguinte poderão assistir a situações divertidas, algumas das quais poderão ser replicadas em casa.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.


segunda-feira, junho 30, 2014

Morreu o filho de Judite de Sousa, o único homem que nunca a tinha desiludido. "A palavra aqui é uma: André.", pediu a mãe nas palavras que dirigiu aos colegas de profissão.


No sábado à noite, quando cheguei a casa, escrevi sobre a notícia do acidente de André Sousa Bessa de que tive conhecimento depois de ver, nas estatísticas do Um Jeito Manso, várias entradas a partir de expressões que o referiam. Mas não contei tudo.

Não contei que logo a primeira expressão que me aparecia era 'faleceu filho de Judite de Sousa'. 


Fiquei gelada ao ler aquilo. Apareciam também as expressões de que no post a seguir a este vos dei conta e que referiam acidente numa piscina, internado em estado crítico, ligado à máquina, etc, mas foi a primeira expressão que me deixou francamente abalada. Não quis falar disso quando aqui escrevi porque, não sendo verdade, não quis que isso pudesse soar como um mau presságio. Além disso, tantas notícias há de doentes que depois de semanas em coma voltam a si, que mesmo os mais reservados prognósticos devem ser encarados com alguma esperança. Apesar de cheia de medo, fiquei a esperar que o domingo nos trouxesse boas notícias sobre André Bessa.


Contudo, isso não aconteceu. No domingo de tarde, tinha lido que estava em morte cerebral e que teriam que ser os pais a autorizar que se desligassem as máquinas. Apesar de não ser nada comigo, senti o terror indescritível pelo qual ela deveria estar a passar: não há mãe que mereça passar por tão medonho suplício. Uma mãe quer saber de boas notícias dos filhos, que arranjaram trabalho, que estão felizes com o que andam a fazer, que têm uma vida afectiva feliz, que têm filhos ou planos para os ter, que gostam da casa onde vivem, que têm bons amigos. Coisas assim, boas, e boas novas, bons augúrios. 

Ao fim da tarde, a minha filha, com quem tinha estado a conversar pouco tempo antes e que tinha lido o que eu tinha escrito na véspera à noite, mandou-me um sms: se eu já sabia, o filho de Judite tinha morrido e acrescentava que era um horror. Eu não sabia, mas temia que isso não tardasse a acontecer. E é: é mesmo um horror. Uma notícia triste que a jornalista Judite de Sousa nunca quereria dar sobre o filho de uma outra mãe, uma notícia que nenhuma mãe suporta ouvir.


Judite de Sousa e André Sousa Bessa,
o filho (para) sempre presente


(Ficam as memórias,
os sorrisos, a mão carinhosa, o apoio)



Sinto muita pena, muita. Penso nela. Coitada da Judite. A vida não lhe tem corrido muito bem. Foi o divórcio, as notícias da infidelidade do Seara, rivalidades na TVI - e sempre tudo ampliado pelas capas das revistas. A tristeza dela, a magreza dela. E ela, triste e magra, a prosseguir a sua vida à frente das câmaras. Contava ela que lhe valia o apoio do filho, o carinho do filho, as boas notícias que o filho lhe trazia.

As fotografias mostram-nos aos dois sorrindo, o sorriso igual, cúmplice. 

Uma vida que se interrompe antes dos 30 anos é uma vida que fica por se cumprir. André foi poupado a muitas das agruras com que a vida vai marcando as pessoas e, por isso, da vida leva o lado esperançoso já que não teve tempo para visitar o futuro. Mas a mãe, que fica cá, fica a sofrer uma ausência que é impossível de assimilar, impossível de ultrapassar. O tempo atenuará a revolta, mas há dores que são de certeza absoluta terríveis, infinitas. Todas as outras dificuldades pelas quais Judite de Sousa passou são nada quando comparadas com a dor maior que agora estará a sentir.


No noticiário da noite, na TVI, um José Alberto de Carvalho emocionado deu a notícia, a notícia que nenhum jornalista quereria de dar, a da morte do filho de uma colega. Depois mostrou-se a si próprio, à frente do Hospital Garcia da Horta, a ler o comunicado de Judite de Sousa (que aqui transcrevo). 


Neste momento de dor, peço a todos os colegas jornalistas que se lembrem do valor das palavras.
A palavra aqui é uma: André.
o filho que sempre quis e que sempre me quis; um homem maravilhoso, irradiante de alegria; de vontade de viver; de exemplo de empenho; estudo; trabalho e força de vontade. E sempre atento, sempre disponível, sempre carinhoso.
Já não irá iniciar em Setembro a desafiante etapa profissional que tinha conquistado por direito próprio numa empresa multinacional. Mas deixa-nos o seu testemunho. E esse testemunho só pode ser traduzido por palavras. Por isso, como sabemos nesta profissão, as palavras são a nossa vida e, neste momento, aquilo que nos resta.
O André merece ser lembrado pela forma como tocou as pessoas com quem se cruzou; e sempre e para sempre a minha.

André faleceu prematuramente aos 29 anos
André Bessa (para sempre) com a mãe, Judite de Sousa


A dor de uma mãe jornalista. Como conseguiu ela, arrasada como devia estar, escrever as palavras doridas que escreveu? O meu marido disse, é jornalista. Sim, uma jornalista habituada a dar notícias em cenário de guerra. 

José Alberto Carvalho que, por causa do que se passou, substituíu Judite de Sousa no noticiário da TVI, deu outras notícias e disse que há dias em que parece que as estrelas desapareceram do céu. Morreu mais uma criança do acidente da moto 4 em Penela e uma outra criança, num incêndio da Damaia.

Notícias tristes, tragédias individuais, dores que não se curam.

Mas, talvez porque há tantos anos tenho a Judite de Sousa aqui comigo, na minha sala, é a morte do seu filho que me custa mais. Coitada, que pena sinto.

Tomara que ela consiga, uma vez mais, arranjar força para seguir em frente e voltar a aparecer-me aqui, em minha casa, dando notícias, fazendo entrevistas.

E que venha colorida, de saia curta, bota alta, tanto faz. Que venha é o que importa - e que volte a conseguir sorrir. Apesar de tudo, a vida continua.




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As folhas que o vento rejeitou
ora guardadas onde, nem donde vindas,
ninguém, nem tu nem eu, o sabe,
nem virá a saber: essas, as folhas
são porém emissárias do que um anjo disse
quando pisou o adro de outra vida.
E nas folhas revives
e assim me revives,
nessas folhas embarco para nenhum lugar.





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A música é de Clara Schumann - Nocturne in F major, op. 6 no. 2 (Erard-Piano,1837) numa interpretação do pianista holandês Bart van Oort.

O poema é de Pedro Tamen in Rua de Nenhures.


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E, sem vontade de escrever sobre outros temas, por aqui me fico por hoje.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda feira. 

A vida é tão curta e por vezes tão traiçoeira que cada vez mais penso que a devemos saber aproveitar em cada pequeno momento em que ela se mostre benevolente.