Hoje soube da morte de uma pessoa que conhecia. Conhecia-a apenas de vista mas, de todas as vezes que estive com ela nos mesmos eventos, via-a sempre vibrante, cheia de alegria e de vida. O seu próprio rosto irradiava. Sempre alegre, entre amigos, rindo, na paródia, ela era daquelas pessoas que não passava despercebida. Soube há algum tempo que estava doente, mais recentemente soube que estava mesmo mal, ontem soube que estava por pouco e hoje soube que o seu sofrimento tinha acabado.
Fez-me muita impressão. Há pouco vi uma fotografia sua e a sua morte parece-me ainda mais impossível.
Até há uns anos quem morria eram avós, tios de idade, depois mais recentemente começaram a morrer alguns pais -- pessoas de outra geração. Mesmo fazendo-nos impressão e sentido a saudade e a dor da separação, inevitavelmente aceita-se. É a lei da vida, diz-se nestas ocasiões. E é verdade.
Lembro-me de andar no primeiro ano do liceu e de ter morrido uma colega, vizinha e amiga. Toda a gente sofreu imenso e a mim causou-me uma aflição muito grande. Contudo, desde pequena que eu ouvia dizer que ela sofria do coração e que havia nela uma bomba sempre prestes a explodir. Lembro-me de ouvir dizer que, antes de morrer, tinha tido muitas hemorragias e, para mim, pensei que tinha mesmo acontecido, o coração dela tinha mesmo explodido.
Mais tarde, mas ainda no liceu, foi um vizinho da minha avó, colega de escola desde a infantil e amigo que também morreu. Tinha asma e sempre o conheci com uma tremenda falta de ar, sempre com pieira e sempre arfante, sem poder brincar, por vezes quase sem poder falar ou mexer-se. Falava-se da bomba como se vivesse dependente dela. Quando morreu foi uma pena muito grande mas foi quase como se fosse uma morte anunciada, a fatalidade que todos receavam.
Foram mortes muito precoces mas, em ambos os casos, no meu mais íntimo foi quase como se a natureza tivesse feito a caridade de reparar um erro irreparável
Não vou falar das mortes da minha família e que muito me custaram. Mas vou falar de uma morte que me fez mesmo muita, muita impressão.
Volta e meia falo aqui dela. Quando no outro dia andei a limpar mails, passei várias vezes pelos dela e não fui capaz de apagar um único. Nenhum era de trabalho. Eram todos mails de anedotas, vídeos divertidos ou bonecada frequentemente maliciosa (muito maliciosa, muito mesmo, para dizer a verdade). Era uma pessoa que estava sempre de bem com a vida, que brincava com tudo e com todos. Ainda me lembro dela, uma vez, nos contar que uns dias antes tinha estado com um ministro e que ele a tinha olhado de alto a baixo. Mas logo acrescentou: 'Mas não era com ar de quem queria comer, era mais ar de 'onde é que ela terá comprado esta roupa?'. O meu marido desconcertado, o marido dela a rir, já mais que habituado, eu perdida de riso. Ou quando contava toda a espécie de safadezas entre colegas de trabalho, explicando: 'Sabem como é, há muitas camas...'. Até que um dia ele me contou, preocupadíssimo, que ela tinha pedido a um colega que lhe fizesse um exame e, nesse exame, o colega confirmou o que ela temia: um tumor. Depois foram os dias de expectativa em relação à biopsia. E depois o que se seguiu, ela sempre optimista, os tratamentos, ela optimista, o marido reticente mas, depois, o mal erradicado, já confiante. Os anos seguintes foram anos tranquilos, ela bem. Os filhos casaram, veio um neto, eles felizes. Por vezes, a medo, eu perguntava-lhe a ele: 'E ela, bem?'. E ele: 'Felizmente'. Há pouco tempo, andava eu e o meu marido a passear em Óbidos, entre o Natal e o Ano Novo, toca-me o telemóvel. Ele. Conversámos. O bebé dormia a sesta. Disse que a mulher estava 'aqui ao lado, manda-vos beijinhos. E um feliz ano novo'. Ouvi a voz dela. Retribuí. Não sei se no primeiro ou segundo dia do ano, eu a trabalhar, o telefone. Ele. Num fio de voz, se calhar ela tinha que ir para os paliativos. Não percebi. Ele disse que também não. Ela tinha escondido que estava muito mal. Tinha-se medicado. No hospital, os colegas contaram-lhe: sabiam, ela tinha dores mas tinha-lhes pedido para não dizerem nada. Intrigada, eu: 'Mas a semana passada disseste que estava bem... '. E ele: 'Estava cansada mas foram as festas, a miúda lá em casa, pensei que era normal, ela dizia que era normal'. Mas na véspera não se conseguia mexer, estava sem forças, levaram-na ao hospital, teve que ir ao colo. Estava no fim. Ele ainda incrédulo. No dia seguinte, em lágrimas, ligou-me de novo: ela tinha morrido. Não quis estragar as festas à família, não quis que a família e os amigos sofressem com o seu sofrimento. O que ela sofreu nem imagino. Da sua coragem nem encontro palavras para falar. Mas viveu até ao fim como sendo ela própria e não como uma doente terminal e acho isso extraordinário. No velório, o meu amigo estava inconsolável, destroçado. Ela era a sua força, ela era o motor da família. E a mim fez-me muita impressão. Quase como se não conseguisse assimilar, não conseguisse perceber, não conseguisse aceitar que tinha mesmo acontecido. Ainda hoje me espanto.
E agora foi esta... (ia dizer esta rapariga). Está a meio caminho entre a idade da minha filha e da minha. Tão jovial, tão saudável. Parece que não se pode acreditar.
Há situações em que parece que, ao desaparecer uma pessoa, se abre um buraco negro que jamais será ocupado. Pessoas luminosas. Deixam um rasto que perdura na nossa memória, que continua a brilhar.
Não há ninguém que cá fique pelo que, racionalmente, deveríamos encarar estas situações com alguma naturalidade, aprendendo a aceitá-las melhor. Mas nisto das emoções nem sempre se consegue ser racional.
Caetano Veloso e Maria Bethânia falam sobre Gal Costa: 'Nossa história é amor'
A voz de Gal, apesar de única, sempre esteve perto de outras três vozes: as de Gil, Bethânia e Caetano. Juntos, eles transformaram a amizade em arte. A repórter Renata Ceribelli ouviu duas dessas vozes. Elas falam de lembranças doces e de uma bárbara saudade.
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A primeira pintura é Death on a pale horse, J. M. W. Turner. A segunda e a última são algumas das fantásticas mulheres de Armanda Passos. A terceira é da autoria de Gary Hume.
Tarde em família. O sol bom, a temperatura amena, o ambiente tranquilo. Os meninos sempre felizes por estarem juntos. Aliás, primeiro chegou a turma da minha filha e os meninos, em especial o mais novo, estavam numa inquietação, só a querer que ligássemos ao tio, já inquietos com receio que se atrasassem ou não viessem. Por fim, apesar de insistirmos para se deixar estar quieto, acabou ele ligando ao tio. Para eles, quaisquer deles, quando sabem que vão estar todos, parece que a tarde não se concretiza enquanto não estão todos.
De manhã, depois da nossa caminhada e antes de almoço, fomos os dois ao supermercado. Não sabíamos bem o que fazer para o lanche e, por isso, indo os dois, íamos validando as opções. Gosto de fazer lanches reforçados pois, como a tarde dá sempre para tarde, na prática, se quiserem, podem ir daqui quase jantados. Além disso, como felizmente apetite não lhes falta, mais vale jogarmos pelo seguro.
Começámos por escolher dois pães grandes com aspecto de pão de forma, um de Rio Maior e outro, salvo erro, de centeio da Baviera. Coloquei-os logo na máquina de fatiar, fatias finas. Para a próxima será mais prudente fatiar mais um daqueles pães. É que, apesar de nos parecer muitas fatias, voaram todas.
Para uma espécie de sobremesa, trouxemos também bolas de Berlim, por acaso sem creme, e uns muffins de chocolate. E também gelados.
Vieram também nectarinas e uvas. Gosto sempre que comam fruta. Apesar da fruta se dever comer depois da sobremesa, eu inverto a ordem dos factores para os motivar a comer fruta e gosto de dizer que sobremesa apenas para quem come primeiro a fruta.
Comprei um frango assado. Comprei batatas fritas.
Comprei tomate maduro.
E queijo fresco de barrar, guacamole, presunto e salmão fumado.
E, portanto, quando à tarde vi que estavam já a ficar com apetite, dirigi-me à cozinha onde o meu partner já me esperava para a preparação.
TOSTAS
Pus o forno a aquecer e, enquanto isso, o meu marido encheu as grelhas com fatias de pão. Quando o forno estava quente, deu-se início à operação. Só foram retirados quando o pão já estava não apenas quentinho mas, sobretudo, mais sequinho, mais tostadinho.
Entretanto, numa tigela coloquei um tomate grande, maduro, sem pele, cortado aos bocados. Juntei um bom bocado de azeite e um pouco de orégãos. Com a varinha mágica, triturei até estar uma pastinha quase macia. Num prato, colocámos tostas, com o pão de Rio Maior, barrado com essa pasta de tomate.
Outro prato ficou com tostas barradas com guacamole e com presunto por cima.
Outro com tostas barradas com queijo e com salmão por cima.
E mais dois pratos mistos.
Quando perguntei ao meu novo o que gostava mais no pão, respondeu: 'ovos mexidos' e eu pensei cá para mim: 'oh caraças... e era mesmo para ter feito também tostas com ovo mexido em cima... e, caneco, esqueci-me...!'. Já combinei com o meu marido que, para a próxima, não podemos esquecer-nos. Foi uma gaffe e tanto.
Fiz ainda um tabuleiro de ursa. Creio que já aqui expliquei como faço mas, just in case, aqui vai de novo.
URSA
Desossei e cortei aos bocadinhos o frango assado e coloquei-os no tabuleiro. Por cima, cortei uma meia dúzia de tomates maduros aos cubinhos. Por cima, coloquei batatas fritas. Temperei com um pouco de maionese e um bocado de ketchup. Envolvi. Antes tinha cozido meia dúzia de ovos que depois coloquei em água fria mas mais facilmente descascar e para os arrefecer. Piquei-os por cima e polvilhei com orégãos.
Era para ter comprado azeitonas pretas descaroçadas mas esqueci-me. Originalmente, deverá levar um pouco de cebola picada mas, para nenhum menino embirrar, não pus. Ainda pensei colocar uma maçã cortada aos cubinhos pois a maçã fica sempre lindamente, refresca, mas também me esqueci. Mas, ainda assim, ficou boa. Pelo menos, gostaram.
Para beber, água e a bebida preferida dos meninos: bongos. Os mais crescidos também gostam.
Eu só provei um pouco da tosta com tomate. Não costume lanchar, não tenho fome a esta hora. O meu marido também apenas tasquinhou. Para ele, preparou um gin. Mas, para mim, preparou um copo com bongo, rum, gelo, raspa de lima e dois bagos de uva. Bem bom.
Depois da turma do meu filho sair, eu e o meu marido e a minha filha fomos caminhar. O resto do pessoal ficou em casa pois estavam a ver um jogo de futebol que devia ser importante.
E é isto. Um dia muito bom. Daqui a nada começa o outono e estas tardes longas em que podemos estar na rua até ao cair da noite já apenas serão possíveis com um casaquinho. Mas no problem, todos os dias são bons para estarmos juntos.
As pinturas são da autoria de J. M. W. Turner e vêm na companhia de On the Nature of Daylight de Max Richter por Sophie e Josie Davis, violino, Colin Wheatley, viola, Ju Young Lee, violoncelo
Pensava que não ia ser capaz. Fui fugindo e escrevendo outrascoisas. Ainda não sei se vou ser capaz. Não me sinto à-vontade para escrever quando ainda estou sob a emoção de uma perda ou quando sinto que o motivo da escrita ultrapassa a minha capacidade para escolher as palavras certas.
Mas, por tudo o que devo a Pedro Tamen, acho que devo tentar mostrar o agradecimento e a pena que sinto pela sua partida.
De vez em quando há mortes que são duras. Pensei isso, por exemplo, quando soube que tinha morrido o Bernardo Sassetti. Já foi há nove anos e continua a custar-me. Continuo a pensar que há um lugar que ficou e ficará para sempre vazio. Diz-se que o tempo tudo cura. Mas há ausências que o tempo não cura.
Gosto de dizer, porque o penso, que há pessoas que não morrem porque vivem em nós não pela sua presença física mas pelo rasto que deixam. Quem escreve, existe pelas suas palavras e elas sobrevivem quando os seus autores perecem.
Tenho aqui ao meu lado os livros de poesia de Pedro Tamen. De todas as vezes que os li, li independentemente da pessoa física que os escreveu. Mas eu sabia que era alguém que ainda estava vivo e de quem eu podia esperar mais poemas.
Também várias vezes aqui o disse: na era pre-covid em que eu andava pelas livrarias, se via algum livro traduzido por ele, não hesitava. Livros traduzidos por Pedro Tamen eram garantia de ser do meu agrado. Não era apenas a escrita na tradução, era também a intrínseca qualidade literária das obras que ele traduzia.
Ninguém é eterno embora sejam eternas as palavras dos (bons) poetas. Mas há um lugar que fica eternamente vazio quando alguém como Pedro Tamen morre.
(Mas não vale a pena continuar a tentar. Não sou capaz. Não sei o que dizer. Sei o que sinto mas não dizer o que sinto.)
Há pessoas que, quando me recomendam um livro, me deixam logo com a certeza de que jamais o procurarei. Tenho um colega que, volta e meia, vem perguntar-me se já li um livro que lhe recomendaram como sendo imperdível, coisa do melhor que há. Nunca sei do que fala e só fico é com a certeza de que é coisa com a qual os meus olhos nunca perderão tempo.
Há, contudo, outras pessoas que, mal me recomendam um livro, logo fico numa inquietação para o ter. Inquietação mesmo. Urgência. Só descanso quando os tenho. Como medicamento sem o qual não conseguirei a cura.
Por exemplo, li o Ensaio sobre a Cegueira porque um amigo me disse: vai ter que ler, vai gostar. Cumpri a ordem, gostei muito. E de Leitores daqui, pessoas que não conheço senão daqui, também já fui atrás de conselhos, numa urgência -- e foi tiro certeiro. Não sei que afinidade é esta, que pontaria é esta que se desenha através de caminhos tão etéreos e indecifráveis.
É curioso isto dos livros, da escrita, da leitura. Para quem gosta é coisa sem a qual não se pode passar. É uma porta aberta que tem, porque tem, que ser transposta.
Por exemplo, eu agora. Ando numa daquelas alturas em que trabalho a dobrar e a triplicar. Ainda há bocado, eu aqui no sofá, a minha princesa mais linda encostadinha a mim (e não, não acabou o covid, mas temos cuidados e eles, depois de férias, foram fazer testes e estão todos 'limpos'), vendo-me a escrever um mail, por sinal em inglês, e percebendo que era assunto de trabalho, me perguntou porque é que eu estava a trabalhar àquela hora. Expliquei-lhe que, com o estado em que está a casa e com tanto que tenho que fazer, tenho que aproveitar todos os bocadinhos para despachar algumas das muitas pendências que vão aparecendo ao longo do dia. Ela encolheu os ombros, fez um ar meio desconsolado, como se não percebesse. Mas não tinha de que se queixar: antes já tínhamos estado ambas a maquilhar-nos mutuamente, ela a experimentar vestidos meus, eu a fazer-lhe penteados, etc. Mas, àquela hora, já o soninho a pedir-lhe miminho, estranhou que eu, em vez de me deixar estar, simplesmente, encostada a ela, estivesse a trabalhar.
E, de facto, caraças, cansada como chego a esta hora, não poderia eu agora estar quieta, já deitada? Mas, não senhora, para aqui estou a jogar conversa fora. Parece que os dedos precisam de para aqui estar neste sapateio inconsequente sobre o teclado. Vício de escrever. Dantes era vício de ler. Lia até quase madrugar. Agora não é a ler, é a escrever. Certo que também já foi misto: fazer tapete de arraiolos e ler. Ou pintar e ler. Parece que os meus dedos têm sempre que se agitar ao cair da noite. Mas agora, com tanto trabalho, só chego ao sofá muito tarde e ocupo o tempo a escrever, não sobra tempo para mais nada, quanto muito para visitar outros blogs e espreitar as notícias. Mas espreitar as notícias não é ler.
Mas tenho esperança de que um dia destes, a casa arrumadinha, consiga chegar ao fim do dia e sentar-me sossegadinha da vida a ler. Ou a escrever um romance. Ou uma história doida, doida varrida. Anseio por escrever histórias malucas. Ou um romance erótico. Qualquer coisa nessa base. Ou, então, volto aos arraiolos. Sempre era mais seguro. De mulheres que lêem ou escrevem diz-se que são perigosas. Das que fazem tapetes de arraiolos acho que não se diz nada disso.