É o que já aqui disse e que muitas vezes penso: eu devia era ter um diário a sério onde pudesse contar tudo. Assim, tudo o que é mais relevante eu que permitiria identificar alguém é omisso ou ocultado.
Se falo, tenho o cuidado de usar abstracções ou de passar ao lado de referências geográficas ou biográficas. Por exemplo, apetecia-me relatar ipsis verbis todo o meu dia. Mas, com muita pena minha, não posso.
Hoje saí e estive fora cerca de seis horas. E, durante essas seis horas, presenciei cenas indescritíveis. Presenciei não: participei. Vi-me dentro de um cenário que merecia ser filmado. À noite, ao falar com o meu filho, eu disse que gostava de conhecer um realizador que se predispusesse a filmar aquilo. Só visto. Que magnífico filme ali se faria. E teria de tudo: ambiente underground, vilões, desgraçados, disfarces, intriga. E o ambiente, a luz, a forma como os personagens se movimentam, os labirintos... tudo é incomum, surreal. Uns olham-me de lado, outros simulam normalidade, outros baixam a cabeça para me cumprimentar. Um, com ar descarado, perguntou-me: 'E você quem é?'. Disse o meu nome. Ele fez um sorriso e disse: 'Ah... já ouvi falar...'. Uns passos depois perguntei quem era, Disseram-me o nome. Nunca tinha ouvido falar. Mas o que soube a seguir ainda mais intrigada me deixou.
Quando ia a sair, um veio ter comigo, disse que queria falar comigo, que não seriam mais que uns minutos. Disse: 'Diga'. E ele: 'Aqui não, é melhor irmos falar lá para fora'. Tudo do além. Fui. Estava muito nervoso, muito estranho, parecia assustado. Ouvi-o mas sem perceber bem tudo o que me estava a dizer.
Outra pessoa, depois, perguntou-me. Disse-lhe por alto. Juntou os dedos várias vezes. 'O quê? Não percebo'. E ele: 'Está com medo'. Não disse nada. Também não percebi. Medo de quê?
Quando estava a visitar outro local, recebi uma chamada. Queria saber como tinha corrido. Disse que ligava depois. Liguei do carro. Contei-lhe mas não é possível contar tudo. Contei, por exemplo, a bizarra indumentária duma. E a forma como tinha falado, e a forma como outros tinham reagido. E tudo muito bizarro. Contei algumas coisas do resto. De vez em quando, ao relatar cenas mirabolantes, do lado de lá uma gargalhada. E eu, por fim, também a rir, parece que tinha assistido a um filme de Fellini ou a um teatro maluco.
Assim não dá para perceber porque, neste caso, eu deveria ser literal, descritiva. Um diário com todas as letras. Assim, tudo vago e abstracto, não dá para perceber.
Ao chegar ao computador, tarde, e ao ver o ror de mails que entretanto tinham chegado, vi uns quantos que voltaram a tirar-me do sério. Há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar, já lá dizia o outro (e eu concordo tantas vezes com ele).
E, com isto, já é sexta-feira e vai ser dia de festa na comunicação social. Vamos ver que rato a montanha vai parir. E não, Senhora Dona Kina, isto não tem a ver com o Sócrates ser o Sócrates mas com o Sócrates ser um cidadão do meu País que está a ser vítima da má Justiça do meu País. Nem tem a ver com o PS. Se há coisa que aqui tem a ver com partidos só se for por termos partidos cobardes que fecham os olhos à pouca vergonha a que, neste caso, talvez mais do que em qualquer outro, se assistiu com as fugas de informação, as perseguições ad hominem (digamos assim),a devassa em regime de vasos circulantes entre Justiça e Comunicação Social. A si nada disto a choca? Ou, por ser o Sócrates a ser vítima, a gente deve juntar-se aos cobardes e ficar calada? Not me, Kina, not me. Todas as pessoas são inocentes até prova em contrário -- e esse é um princípio do qual não abdico. E mesmo os condenados merecem ser tratados com a dignidade devida a todos os seres humanos. E é isto que penso, trate-se do Sócrates, trate-se de si, Caríssima Lady Kina.
Mas, dizia eu, já é sexta-feira e vai ser um dia grande. Eu, pela parte que me toca, tenho a agenda preenchida e ainda quero arranjar tempo para, ao fim do dia, para tratar de umas coisas cá minhas.
Depois de me terem falado num funeral que teve que ser feito longe pois, na cidade, não havia 'vaga' tão cedo, alguém conta de um seu conhecido também com covid, mal, nos cuidados intensivos. No fim da reunião, um dos participantes tentou encurtar a reunião dizendo que tinha várias chamadas da mesma pessoa, estava preocupado. Ligou-me algum tempo depois: um amigo tinha caído inanimado, um enfarte fulminante. Os médicos batalharam e conseguiram reanimá-lo mas estava muito mal, nos intensivos. Um outro colega tinha-me contado, de manhã, que a mãe estava mal, nos intensivos, tudo nela a ir-se abaixo. Não covid: apenas tudo a correr mal.
Hoje uma pessoa perguntava sem esperar resposta: o que é isto? está tudo a desaparecer?
Também não saberia responder. A quantidade de pessoas a quem têm morrido o pai ou a mãe -- uma até, com pouco intervalo, ambos -- já nem sei dizer. Um bocado assustador.
Ouvi ao telefone o meu marido com um colega: tinha estado mal, em sofrimento. Tinha ido para o hospital, estava sem oxigénio, ficou lá. Agora está em casa mas mal, com oxigénio. Um homem novo a falar como um velho sem força.
Tento não pensar em nada disto, não ouvir noticiários que explorem a desgraça. Mas a desgraça chega até mim pela voz de colegas e amigos. Não sei se contei. No outro dia, ao telefone com um amigo, perguntei-lhe pela mãe. Sempre foi muito cuidadoso e preocupado com a mãe. Respondeu: morreu há poucos dias. Fiquei sem saber o que dizer. Perguntei se tinha sido covid. Disse que não. Apagou-se, disse ele. Estava sentada a ler, morreu.
Não sei explicar isto.
Só quero que venha o bom tempo. Hoje nem consegui ir ao jardim. Choveu todo o dia. Muito escuro, ventoso, frio. O tempo assim é uma tristeza.
No trabalho, os tempos não vão tranquilos. Gente doente, gente em isolamento, equipas reduzidas. Difícil traçar planos, difícil exigir alguma coisa. Apetece também dizer que façam o que puderem, apetece deixar toda a gente em paz.
Na televisão ouço falar no dia dos namorados e fico a pensar: coitados dos namorados que não vivem juntos. Depois penso que também não é extraordinário para os que vivem juntos. Algum espaço é bom. O confinamento não é bom para ninguém. E há o carnaval. Tantas vezes que me lembro do carnaval na Galiza. O que nos espantámos com o que aquela gente se divertia, famílias inteiras mascaradas da mesma maneira. Riam, andavam pela rua a cantar, a rir. No ano em que o descobrimos, os miúdos ainda adolescentes, connosco, ficámos num hotel por cima das rias. Víamos a água debaixo de nós, o chão era de vidro.
Tanto que me apetecia agora sair por aí, de carro, ouvindo música, descobrindo terras.
Agora não saio daqui e não sei quando poderei sair. Ainda bem que há cuidado, tem que ser. António Costa pede regras. São fáceis. Qualquer matemático sabe estabelecer as métricas: x infectados por dia quando os hospitais estiverem a y% da sua capacidade. A dificuldade está em saber a quantos internados correspondem a montante os x infectados uma vez que, se bem percebo, isso é variável consoante as estirpes. E são estas variantes e estirpes que baralham a equação. Então, é jogar pelo seguro. Mas, como não se pode confinar-desconfinar-confinar semana sim, semana não, o melhor é garantir que a sociedade funciona com um mínimo de perturbação e um mínimo de gente em circulação.
Por exemplo: teletrabalho obrigatório para todas as funções que o permitam. Não é ao gosto do freguês, como era. É mesmo obrigatório. Quanto às escolas, é, pelo menos, fazer secundário e universidades remotos até ao fim do ano lectivo. E é inspeccionar os sistemas de ar condicionado e obrigar a ter injecção de ar exterior. É impedir que várias pessoas estejam em espaços fechados não ventilados com ar do exterior. Obrigar a que as janelas e portas estejam abertas, caso não haja garantia que o espaço está a ter extração de ar e injecçção de ar limpo. É fazer anúncios, anúncios, anúncios. É substituir as notícias e as reportagens catastrofistas por reportagens didácticas, facilmente perceptíveis. Por exemplo: como fazer exercício em casa, como fazer uma alimentação racional em confinamento. Reportagens agradáveis, bem feitas, que saibam bem ver. No outro dia vi uma da BBC. Um gosto.
Bem. Estou cansada.
Ontem, quando fui apanhar uma laranja, vi uma coisinha branca no chão. Não percebi o que era. Baixei-me. Era metade de uma casquinha de ovo. Pequenina. Olhei para o lado. Se calhar, dali nasceu um passarinho. Tentei fotografar mas estava a chover, as fotografias saíram-me desfocadas.
Gostava ainda de contar que ontem tinha para o jantar lombos altos de atum congelado. Não bifes: não, mesmo lombos altos. Então fiz assim. Deixei a descongelar. Quando andava a fotografar o ovinho, reparei que estava uma lima caída. Muito madura. Então, numa taça de vidro transparente (e isto é relevante pois fica bonito e deve ser visto em toda a sua transparência) juntei o sumo da lima que, por sinal, era muito sumarenta, azeite, um pouco de sal, um pouco de orégãos e... claro... mel, uma colher de chá de mel. Com um garfo, bati até que virou uma bela emulsão dourada. A importância da tacinha ser de vidro incolor e transparente está aqui: a cor e a textura da emulsão ficaram lindas.
Despejei-a sobre os lombos do atum, já descongelado, que tinha colocado numa taça funda. Ficaram mergulhados. De vez em quando, virava-os. Com um garfinho de plástico, daqueles de criança do ikea, piquei-os grosseiramente, apenas para que a emulsão melhor os atravessasse. De cada vez que fiz isso, mergulhei um dedo e lambi-o. Estava deliciosa.
Umas horas depois, hesitei se não deveriam ficar assim, crus. O meu marido disse que não. Eu preferia cru mas tudo bem. Claro que poderia ter deixado um lombo cru para mim mas tenho destas coisas meio parvas, gosto que tenhamos a mesma coisa para comer.
Entretanto, num tacho, juntei água, um pouco de sal, umas cenouras, feijões verdes, batata normal e batata doce cor-de-laranja, tudo aos bocados. Cozi. Depois temperei um azeite.
Então, numa frigideira, deitei a emulsão e deixei que aquecesse. Juntei os lombos e selei vagamente em cada lado, baixo, cima, dos lados.
Acompanhámos com salada de alface e rúcula.
Perdoem-me a imodéstia mas acreditem: estava mesmo bom. Mesmo bom.
Mas tudo tem um lado mau. Tinha aquecido pão. Então, para além da comida que tinha no prato, comi uma bolinha molhada no molho. Aos bocadinhos, aos bocadinhos, sempre a desejar parar. Não sei quantos quilos terei a mais no fim disto tudo. A ver se consigo fazer umas refeições só de chá e fruta para ver se perco o que ganho nestes exageros.
É que, ainda por cima, descobri umas bolachas de chá e aveia cobertas de sementes que estavam quase a perder a validade. São simplesmente deliciosas. Mas imagino as calorias. Melhor nem pensar.
Portanto, é isto que tenho a reportar. A seca do costume.
Que venha o sol e os dias grandes a ver se consigo sair desta invernia que me envolve a escrita.