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sexta-feira, outubro 20, 2023

Aline com folhas de outono, mar revolto, barcos em terra.
Cá em casa, depois da guerra, a paz.

 



A Aline deu-lhe com alguma força mas foi sobretudo perto da hora de almoço. Chuva, chuva a jorros.

O pior foi que a grande buganvília que cresceu para cima do telheiro sob o qual deixamos o carro, quase desabou. Deve ter sido da força da água ou do vento, não sei. O que sei é que, quando demos por ela, estava a nossa meia altura. Nem o carro passava nem nós. Felizmente o tronco não se partiu, apenas tudo vergou, pendeu. Tentámos, os dois, levantá-la para que uma parte se apoiasse no muro que separa dos vizinhos. Mas não conseguimos. Aliás, o peso daquilo, ainda por cima, ensopado, é brutal, Os dois a dar o máximo e aquilo nem se mexeu. A única hipótese foi ir buscar o podão e desbastar, desbastar. No fim, ficou um monte enorme de ramos cortados. 

Como para o fim da tarde a coisa tinha abrandado, fomos buscar um quadro que estava a emoldurar. 

O quadro é em tons azul, verde esmeralda, acinzentado, com uma mancha em branco. Abstracto, como quase tudo o que temos. 

Mas a tela veio da galeria esticada e presa a um passpartout. Quando na casa das molduras perguntaram se era para tirar o passpartout, resolvi deixar ficar e pôr, por cima, um vidro-museu que é invisível. 

A moldura que escolhemos (nestas coisas conto com a opinião do meu marido que chega lá, aponta e diz: 'Esta'. Fico sempre na dúvida se tem uma fantástica visão panorâmica e, num único olhar, vê tudo o que há para ver, aliada a extrema convicção, ou se é, apenas, vontade de não estar na loja mais do que quinze segundos). Como lhe reconheço bom gosto, apesar das dúvidas, gosto de contarcom  a sua opinião. Desta vez foi uma moldura larga, simples, num tom entre o prateado e o suavíssimo dourado, mais prateado do que dourado, mas pouco uniforme e quase sem brilho. Por dentro desta moldura, encaixado nela, escolhi uma outra fininha em azul claro alfazema, acinzentado, que puxa aos tons da tela. Fica como que um filet, entre a moldura propriamente dita e o passpartout branco. Acho que este apontamento valoriza a obra em si. Coisas minhas. 

Coloquei aqui a fotografia de pormenor para que percebam o que estou a dizer (a parte de fora que se vê em cima e à esquerda é a parede)

Fomos ainda comprar o livro 'Como mentem as sondagens' do Luís Paixão Martins, que o meu marido está desejando de ler. Estive a folheá-lo e parece-me que também eu vou gostar bastante de saber o que lá se diz.

Comprei também o 'O outro nome' do Jon Fosse. Também já o folheei. E, mais uma vez, torço o nariz. Não me parece que me convença. Não sei o que se passa comigo. Já no outro dia falei nisso. Estou de má boca, nada parece ser para o meu bico. Enjoadinha. Agora, ao escrever isto, para ver se me convenço a mim própria, fui ler o princípio do livro. Perdoem-me os puristas, os nobelistas, os entendidos mas a mim pareceu-me uma seca. 

Depois fomos ver o mar. Ficámos cá em cima. Mar bravo, bravo. Barcos em terra. 

Muito bonito. Andei a fotografar. Maravilha.

E, como dois pensionistas a preceito, preguiçosos e a apreciar a boa vida, a seguir fomos buscar um sushi bem apetitoso.

O pior, claro, foi, ao chegar a casa, conseguir que pendurasse o quadro até porque pensei que deveria fazer uma movimentação entre outros, obrigando a ajustar a altura do penduramento dos que mudaram de poiso. É sempre cegada das antigas quando tem que fazer um buraco na parede. E, se é mais do que um, aí é a guerra total. E eu que ando há anos a dizer que tenho que aprender a pegar no berbequim, a escolher buchas e parafusos, continuo na ignorância e, portanto, dependente dele.

Por fim, contrariado, quase furioso, lá o fez. Quando a obra foi dada por concluída, feita boa menina, agradeci. 

Depois pus-me de longe a contemplar. Fiquei contente.

A assinalar ainda que o nosso cão mais fofo hoje voltou a deitar-se na caminha dele que está aqui num cantinho da sala. Aninhou-se, enroscou-se. Há meses que dorme pelo chão, certamente onde se sentia mais à fresca. Hoje deve achar que o tempo mais frio já aconselha a algum aconchego. Cão mais lindo, mais querido.

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E agora estive aqui a ver uns vídeos e vou partilhar um, legendado, em que o dono de uma casa, um estilista bem simpático, mostra objectos bonitos que lá tem. 

Inside This Fashion Designer's Modern Belgian Home, Filled With Wonderful Objects | Vogue

Fashion designer Pieter Mulier, Maison Alaïa's creative director, takes us through his Belgian home and shares some of his most precious possessions. As the successor to the legendary Azzedine Alaïa at Maison Alaïa, Pieter's taste and passion for art come shining through as he tours his abode. 


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Lá em cima Eva Cassidy interpreta Autumn Leaves
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Desejo-vos um belo dia 
Saúde. Tranquilidade. Paz.
Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz.

sexta-feira, outubro 07, 2022

Annie Ernaux - Nobel de Literatura 2022

 

Não faço apostas, nem sobre os Nobel nem sobre o que quer que seja. Acho que nunca fiz uma única. Creio que, tal como não gosto de jogos -- nem de cartas nem de damas nem de máquinas nem de roleta -- também não gosto de apostar. Não estou interessada em perder em coisas para as quais tanto se me dá.

Nisto do Nobel nunca me deito a adivinhar. Tenho como certo que sempre haverei de ser surpreendida. Geralmente não conheço.

Este ano voltou a acontecer. Não conheço Annie Ernaux. Não faço ideia de quem seja, nunca tinha ouvido falar. 

A minha ignorância é infinita e isso é tranquilizante para mim pois, sabendo-a infinita, sei, de antemão, que jamais poderei derrubá-la e, portanto, sou condescendente para comigo quando tenho evidências da sua imensa amplitude.

Mas já vi uma fotografia dela e hei-de ler alguma coisa dela para tentar perceber a razão de ser do Nobel. Devo dizer que muitas vezes não percebo mas, na minha humildade, admito sempre que o problema é capaz de ser meu. Mas, seja ou não seja, também tanto faz.

Para já, vou ver uns vídeos só para ganhar algum contacto.

Annie Ernaux - Página Dos | La2

sexta-feira, outubro 08, 2021

Um novo normal - dias com um cão dentro

 



O dia foi quase normal. Aliás, se calhar, não foi 'quase', foi 'mesmo' normal porque o meu normal agora é o meu 'novo' normal. E botem aspas nisto tudo. É bem verdade, Leitor, um cão muda a nossa vida. Pior ainda se for um cachorro que, na volta, quando veio era ainda mais cachorro do que julgávamos. Diz a médica veterinária que provavelmente tinha sido tirado da mãe há pouco tempo, se não antes do tempo, e que pode ter acontecido que o aparelho digestivo ainda nem estivesse plenamente desenvolvido, adaptado à vida sem a mama da mãe. Não o saberemos. O pastor foi evasivo, disse que achava que, que talvez fosse..., ou seja, na volta, nem dois meses teria.

Conclusão: diarreias e mais diarreias, algumas (para não dizer muitas) dentro de casa. Duas em dois tapetes de arraiolos distintos. Coisa fina, portanto.

Idas ao veterinários várias, rações e latinhas de comida para experimentar o que funciona melhor várias. Medicamentos, análises, sei lá. E eu sempre a fazer figas para que não fique internado como, por três vezes, me disseram que era uma hipótese. Nem quero pensar. 

Uns dias murchinho, quase só a dormir. Depois arrebita e vira a casa do avesso. A casa -- disse bem. De cão de guarda para ficar na rua, em menos de uma semana estava um cachorrinho de casa, coisa mais fofa, bonequinho mais querido da sua dona. 

Agora está mais gordinho e eu fico toda contente quando faz menos cocó, quando o cocó é menos mole ou quando o vejo a portar-se mal. 

E se tem andado a portar-se mal. Como é possível? Esperto que só visto. Digo-lhe: 'anda, vem com a dona'. E ele olha para mim, certamente para ver se é para levar a sério e, depois, quando me vê a ir, lá vem também. Digo-lhe: 'anda beber agüinha' e ele vem e vai beber água.

Quando se apanha sozinho, age por conta própria. Arrasta o saco da ração para o meio da casa, vira a sua cama de pernas para o ar, destrói o caixote de cartão que tínhamos posto a separar a cozinha da sala e aparece-nos deitado ao lado da cama. O meu marido diz que o gajo é escapista. E eu acho que ele é, sem tirar nem pôr, o cão das minhas histórias, o terrível e maroto cão da Princesa Margaret que aparecia sempre onde menos se esperava.

O pior é que também é do caneco. Anda o tempo todo a esgaravatar a terra e a comer tudo o que encontra. Pode ser que as diarreias venham também daí. Ontem, estava no acesso à garagem que é de pedra. Então saltou-lhe mesmo à frente um pinhão, acabado de cair. Num acto reflexo, meteu-o na boca. Quando vi, dei-lhe um grito e ele, antes que eu tentasse impedi-lo, fez um movimento brusco com a cabeça para trás, como quem engole um comprimido sem água. E lá foi o pinhão. 

Quando alguém tenta tirar-lhe alguma coisa da boca, dá sapatadas, rosna, arreganha o dente, tenta morder. Toda a gente se assusta com aquela violência. Dois quilos e tal de cão em que metade é pelo e ali está, destemido e armado em leão. 

Pois bem, antes de ontem, apanhei-o a arrancar uma coisa do chão e a comê-la. 

Já o apanhei com caroços de nêspera, na casa da minha mãe tâmaras velhas, e raízes e toda a espécie de porcarias. 

Mas, então, tentei tirar-lhe aquilo da boca. Supostamente, quando se porta mal, atina se lhe agarramos pelo cachaço como os pais lhes faziam. Então, zanguei-me e fui aplicar-lhe esse correctivo. Eis senão quando o pequeno capeta se virou e me ferrou a mão, de lado, abaixo do polegar. Senti uma dor e, instintivamente, tentei soltar a mão, elevando-a. Pois bem. Veio agarrado à mão. Ou seja, com os agudos dentinhos ferrados na minha incauta mão, voou a metro e tal do chão. Com a dor sacudi-o e ele, então, despenhou-se lá de cima, caindo redondo no chão. Como ali o piso é inclinado, rebolou. Pensei, assustada: não pode ser... matou-se. Afinal, levantou-se meio aturdido, sacudiu-se e ficou como novo. E eu com dois buracos na mão a escorrer sangue. Parece-vos normal? A mim não. Agora tenho aquela zona inchada, meio escura e com dois ferimentos. 

E a brincadeira preferida é mordiscar-me os pés. Salta e corre e eu acho que ri enquanto me mordisca e eu tento escapar, ou correndo, ou sentando-me numa cadeira e colocando os pés em cima de uma cadeira para ele não os alcançar. Hoje, para evitar o desacato, que aquilo arranha e dói, calcei umas meias e substituí as havaianas por uns chinelos que não são de enfiar no dedo. Pois, o safado, ao ver que não tinha a perna ao vivo para se divertir, desatou a latir, a dar gritinhos, todo num frenesim. E puxava e repuxava as meias, uma coisa de não dar descanso.

Estou a ensiná-lo a ficar na cozinha e terraço da cozinha para ver se me deixa trabalhar.

Agora à noite, vindo do veterinário, vim aqui à sala ver o computador, a ver se havia caso. Pois, o danadinho esgueirou-se, deitou-se no chão para receber festa, e, passado um segundo, estava a querer roer os pés do sofá e, pior, o cabo eléctrico. 

E ainda não contei qual a brincadeira preferida: tentar arrancar as franjas das carpetes de arraiolos. Passo-me. Tento convencê-lo a entreter-se com uma corda com franjas que vendem nas lojas para animais mas o brinquedo não oferece os mesmos desafios que dar conta de coisas a sério.

E, note-se, esta sexta-feira faz quinze dias, apenas quinze dias, que vive connosco e, no entanto, os ensarilhanços em que já nos meteu e as peripécias e gracinhas que faz. Acorda-me quase de madrugada, obriga-me a cuidados, faz-me rir, enternece-me.

Portanto, como poderão constatar, este é o meu novo normal. 

Ainda assim, deu-me um daqueles apetites. 
Acho que não estou grávida, que isto é mesmo só gula. Outro bebé agora não vinha a calhar, já basta este mais novo que por aqui anda a dar-me cabo do juízo. 
Então, desviámo-nos -- no meio de uma Lisboa com um trânsito bem assanhado -- para eu ir comer um geladão. Ainda por cima não havia kumquat nem gianduja, os meus preferidos: foi arroz doce e rum com passas, mistura que veio a revelar-se bem virtuosa.

Chegámos de noite. E, porque esta sexta-feira vai ser uma friday à maneira, estive até há pouco a recuperar objectos e ornamentos indispensáveis à minha existência em certos ambientes e contextos. Uma dessas coisas foi a minha aliança. Desde meados de Março do ano passado que não a usava. O relógio também. Sempre que saio, quando dou por mim estou de mãos e braços nus. E gosto assim. São outros tempos pelo que é natural que haja outros hábitos. Mas esta sexta-feira é um dia dos velhos tempos. E eu, nestas coisas, dou muita atenção aos pormenores.

Tirando isso, neste meu dia, pouco mais digno de registo. O que houve foi, para falar curto e grosso, mais do mesmo.

O nobel da literatura foi, de novo, para alguém em quem nunca antes tinha ouvido falar pelo que agora aqui também nada posso dizer. Gostei de vê-lo e ouvi-lo, na televisão, a contar como soube da notícia. É bom quando a gente vê alguém que forçosamente há-de ter algum valor a agir na plena consciência da sua condição efémera e insignificante. Se há coisa chata nesta vida é ter que aturar gente que se acha importante e que se revela inconsciente da sua condição de passageira acidental.

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De Asaf Avidan, Les bal des folles. Peças de cerâmica de Keiko Masumoto

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Peço desculpa por andar a não responder a comentários mas vocês sabem lá o que isto tem sido...

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Desejo-vos uma happy sexta-feira

Tudo de bom: saúde, vida nova, esperança e alegria

sexta-feira, outubro 09, 2020

Quem é Louise Glück?

 


Tenho algumas coisas a dizer sobre Louise Glück, Nobel 2020 da Literatura. Não serei a mais habilitada para o fazer pois, sabido é, os meus conhecimentos não são de alma antiga, é tudo coisa de cabeça no ar, tudo apanhado a vol d'oiseau.

Mas, com vossa licença, vou ousar. Why not?

E o que tenho a dizer sobre Louise Glück é que:

1. Gosto do porte

2. Gosto do penteado

3. Gosto do tom de voz

4. Gosto do aspecto sereno

5. Gosto da forma como se veste, em especial de um vestido preto com transparências, deliciosamente elegante e ousado, que usou quando foi receber o National Book Awards em 2014.

E gosto desde que, agora mesmo, fui à procura de saber quem é. 

De resto, nada sei e provavelmente pouco vou alguma vez saber, pelo menos através de traduções em língua portuguesa. Não sei de nenhum tradutor de poesia que seja ao mesmo tempo fiel e inteligente, criativo e rigoroso, cuja poesia vertida para português tenha a toada e a emoção com que nasceu na língua original. 

Bem, talvez conheça. Um. Mas é pessoa que não pode ser levada muito a sério, é uma pessoa bissexta, escalena, que vive atrás dos espelhos com que reveste a sua existência. Portanto, a menos que vá vendo vídeos e me deixe convencer, acho que será mais um Nobel daqueles que me passam ao lado. Aliás, do que tenho percebido é daqueles de que ninguém ouviu falar ou de quem nem sequer o nome se consegue pronunciar. No caso de Louise Glück por acaso até consigo dizer o nome. Não consigo é dizer muito mais que isso. Mas, olha, paciência.

 



sábado, setembro 15, 2018

António Lobo Antunes, a Pléiade e, finalmente, um Nobel*


Tal como os antigos comentadores biblícos, Borges e Scholem debateram a questão fundamental: 
A que sucesso pode aspirar um artista? 
Como pode um escritor alcançar o seu propósito, quando tudo o que tem à disposição é a ferramenta imperfeita da linguagem? 
E, acima de tudo, o que é criado quando um artista parte para a criação? 
Será que surge um mundo novo e proibido, ou será que um espelho negro deste mundo é erguido para nos vermos reflectidos nele? 
Será uma obra de arte uma realidade duradoura ou uma mentira imperfeita?

in "Embalando a minha biblioteca", Alberto Manguel

[O excerto acima vem mais ou menos a despropósito da mais recente parvoíce de António Lobos Antunes: 
Para Lobo Antunes esta publicação numa coleção tão especial, desde a encadernação ao papel bíblia, tem um valor comparável ao prémio da Academia Sueca: "Estar na Pléiade é como receber um Nobel." Acrescenta: "É uma biblioteca onde se encontram vários Nobel da Literatura."
António Lobo Antunes garante que este era o seu sonho de adolescente "porque é o maior reconhecimento que algum escritor pode ter". ]

* Um Nobel à medida dele, claro. Só me pergunto: teria ele necessidade de dizer estas parvoíces? Ficar contente e orgulhoso é normal -- mas não consegue sentir o reconhecimento sem se sair com a parvoíce do Nobel? Que raio de ego ele tem, senhores.

sexta-feira, outubro 14, 2016

Bob Dylan - Prémio Nobel da Literatura
[Ao menos, desta vez sei quem é. De resto, não posso pronunciar-me]




Claro que antes não me dá para me pôr com palpites, para mostrar listas com os meus gostos pessoais, para enunciar short lists com nobelizáveis. Nada disso. 

Só me chego à frente quando, pela estatistica, reconheço nos factos alguma previsibilidade. Caso contrário, fico calada e calada tenho vontade de ficar quando sai o resultado. Tenho ideia que, nas últimas vezes, ouvi o nome da pessoa laureada e nem sei de que terra é ou se a especialidade é fazer romances de fôlego, contos miúdos, poemas ou bolos. Por isso, ouço sempre a notícia sem entusiasmo e com uma muito vaga curiosidade; e, se quiser dizer alguma coisa, terei muita dificuldade. Por isso, que falem os que sabem.

Desta vez, ouvi o nome e pensei ok, está certo, os bacanos do júri da literatura gostam do efeito surpresa. 


Posto isto, conheço-o desde que, ao fazer anos e tendo um namorado perguntado se havia alguma coisa que eu gostasse de ter, e confiando eu nos conhecimentos e gostos dele (tanto mais que era -- e e -- poeta, compositor, intérprete), lhe disse que gostava de ter um LP de alguém que eu não conhecesse ou mal conhecesse ou não ligasse e que ele achasse que eu, se prestasse atenção, ia gostar. Ou seja, que me surpreendesse e agradasse.

Apareceu-me com um LP do Bob Dylan. Não me era desconhecido mas não era músico que me dissesse grande coisa. Fiquei um bocado atrapalhada. Não queria ser indelicada mas achava que tinha sido ao lado. Ele percebeu e disse que, se eu não quisesse, se podia trocar. Respondi que não. Ele disse que tinha hesitado muito, que aquela era uma aposta de risco mas que depois de muito pensar tinha optado por Dylan naquele álbum. Pediu-me que ouvisse. Aquela voz nasalada não me agradava muito. Pediu que prestasse atenção à letra. Depois cantou ele algumas, acompanhando com a sua guitarra. Parece que, na voz dele, eu percebi melhor as palavras. Ao fim de algum tempo, já eu gostava muito. 

Mas depois mandei o namorado embora e, com ele, muito do que lhe estava associado. Não voltei a prestar grande atenção a Bob Dylan. Andei à procura desse LP e não encontrei. Mais que certo, deixei-o em casa dos meus pais.

Agora, ao escolher uma fotografia para aqui colocar, vejo que o tempo não passou só por mim -- em algumas ele de óculos escuros e sempre com aquele cabelo despenteado e o ar amarrotado de cantor de intervenção a quem a idade começa a pesar. Além do mais, a idade não o pôs mais bonito -- o que é uma pena.

Portanto, para atalhar: Bob Dylan Nobel da Literatura...? Uma pessoa fica de pé atrás, claro. Mas, em vez de gozar ou insurgir-me, o que aqui publicamente faço é confessar a minha ignorância. 


E mesmo que leia alguns poemas dele, letras de canções, por exemplo, e ache que não é nada por aí além, vou, na mesma, ficar na minha. Com outros Nobel, em especial dos últimos, também li e fiquei admirada. Mas penso: problema meu, com certeza e, de resto, quero cá eu saber disso. Ora abóbora.

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E tenham, meus Caros Leitores, uma feliz sexta-feira.  Be happy...

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sexta-feira, outubro 10, 2014

Patrick Modiano, Nobel da Literatura 2014. Eu não disse que, na volta, ainda me ia sentir, outra vez, uma ursa? Pois senti e duplamente. Quando vinha aqui confessar que nunca tinha ouvido falar em tal pessoa, não é que, por descargo de consciência, fui à procura e aqui tinha um livro dele...? E lido. Bahhh. Que cabeça de alho chocho a minha, caraças.


Alerta laranja: este é o quarto post da noite e até aqui foram só raios e coriscos a caírem em cima da cabeça de marmanjões do PSD. 

Abaixo deste tenho um post dedicado ao esclarificador semântico C-rato, com vídeos e tudo; depois tenho um drone inconseguido que se foi afogar num aguiar branco e, para terminar, tenho a prova dos nove: o láparo nem escrever sabe.

Mas tudo isto é a seguir. Aqui, agora, a coisa vai para domínios dedicados a gente que escreve bem - pelo menos, assim o dizem.

Digo isto e vocês devem encolher os ombros: olha para ela armada em erudita.

Têm razão: não sou erudita. Mas, neste caso, só por um triz é que não sou. Só mesmo por um triz.



Triz-triz: Lulu!


Natalie Merchant



Eu conto.

Quando ia almoçar, no carro sintonizei logo nas notícias, queria saber quem tinha ganho o Nobel deste ano. De manhã, na Antena 2, apostava-se no Kundera. Pensei que só a mim, tão bronquinha, não me ocorria ninguém em quem apostar. Sabia lá. E, também, deitar os búzios a que propósito? Sabe-se lá que critérios aquelas nobeis almas seguem.

Ouvi, então, o nome do laureado e, uma vez mais, devo ter ficado com cara de tacho: tinha ganho o prémio mais um ilustre desconhecido para mim. Patrick Modiano. Nunca tinha ouvido falar. 

De tarde, quando me apanhei em frente do computador, fui logo espreitar a cara do homem, talvez se me fizesse luz. Mas nada, nunca o tinha visto mais gordo. No carro tinha ouvido dizer que a escrita dele é elegante e os livros pequenos, que se lêem bem, e que não sei quê da memória e mais não sei quê da guerra. Nada. Nada daquilo me dizia o que quer que fosse. Ouvi quais os livros do homem publicados em Portugal. Aquele Domingos de Agosto pareceu dizer-me qualquer coisa mas pensei que, às tantas, era confusão minha com algum nome de filme, Querido mês de Agosto, talvez. Arrumei o assunto. 

Depois, à noite, cheguei aqui para confessar que não tinha nada a dizer sobre o senhor mas derivei para o desgoverno desgovernado e, por isso, só agora voltei ao tema.

Comecei por escrever o título do post mas, a meio, pensei, Espera lá, deixa cá ver. E lá fui. P.D. James, Peter uns poucos e, às tantas,  ao conferir melhor, pequenino e enfiado lá no meio dos Ps, eis que me apareceu o tal Patrick Modiano, o dito Domingos de Agosto. Pensei, Caraças. Mesmo bruta, com um livro do homem cá em casa e sem ideia nenhuma dele.


A capa não me era estranha mas pensei, Bolas, lembro-me da capa mas não do conteúdo, não li. Pego nele para o fotografar e vejo que tem marcas de dobras, vejo que está lido. Estive a folhear. Não me lembro de nada do que lá está. Não ficou gravado. Está bem que deve ter sido há uns três séculos mas podia ter ficado alguma memória. Mas não, varreu-se-me tudo. E não é o tipo de livro que me parece que o meu marido tenha lido, e, além disso, tem um rabisco que foi feito por mim. Fui mesmo eu a lê-lo, com certeza, e nem uma vaca na ideia (que é como quem diz uma vaga ideia).

Por isso, a esta hora podia estar aqui a fazer um vistão, vir para aqui armada em erudita, que a escrita do senhor é elegante como uma diva, que a história deste livro é simples mas cheia de memórias - e, no fim de contas, cabeça de alho chocho, não consigo dizer nada. Tristeza.


E, assim sendo, a ver se consigo um déjà-vu ou para ver se percebo se as palavras são esbeltas e as frases uma passerelle, vou fazer uma cópia com uns excertos das duas últimas páginas.

Foi a partir desse momento da nossa vida que sentimos angústia, um sentimento difuso de culpabilidade e a certeza de que tínhamos de fugir de alguma coisa, sem muito bem sabermos de quê. Essa fuga ter-nos-á levado para lugares muito diferentes antes de acabar aqui, em Nice.
Quando Sylvia estava estendida a meu lado, eu não conseguia evitar tomar o diamante entre os dedos ou contemplá-lo brilhando sobre a sua pele e dizer para comigo mesmo que nos dava azar. Mas não. Outros, antes de nós, se tinham batido por ele, outros, depois de nós, o guardaram um momento no pescoço e no dedo e ele atravessaria os séculos, duro e indiferente ao tempo que passa e aos mortos que deixava atrás de si. Não. A nossa angústia não vinha do contacto com essa pedra fria com reflexos azuis mas, sem dúvida, da própria vida. 
(...)
Nesse verão estava muito calor e nós tínhamos a certeza de que nunca nos encontrariam aqui. De tarde, seguíamos o aterro e avistávamos o ponto da praia onde a multidão era mais densa. Então, descíamos até essa praia, à procura de um pequenino espaço livre para nos estendermos nas nossas toalhas de banho. Nunca fomos tão felizes como nesses momentos, perdidos no meio da multidão com perfume de ambre solaire. À nossa volta, as crianças construíam os seus castelos de areia e os vendedores ambulantes passavam por cima dos corpos e apregoavam os seus gelados. Éramos como toda a gente, nada nos distinguia dos outros, nesses domingos de Agosto.


Bem. Depois disto, estou a ver que tenho mesmo que reler o livro. Pela conversa, ali tem coisa. Deve ter havido bernarda por causa do dito diamante. Tenho que ir averiguar.

E até me fez lembrar Nice, a praia de Nice, nada de jeito como praia, por sinal. Mas a cidade, com a praia e o mar azul, tem pinta.

Leio no fim de semana, o livro é pequeno.



Patrick Modiano, Nobel da Literatura 2014: um prémio irreal e abstracto





Tem um ar simpático, o senhor. Gosto da forma como fala e como sorri.
Não admira que os seus conterrâneos gostem dele. 
E, se calhar, escreve mesmo bem. Sem erudições mas com uma simplicidade empática.
Na volta, foi por isso que ganhou o Nobel e, na volta, essa é razão mais do que suficiente.


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Relembro: sobre o desclarificado Crato, sobre o Aguiar Tinto e sobre o Pedro é descerem, por favor, até aos três posts que se seguem.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. E boas leituras.

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sexta-feira, março 28, 2014

Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, defende profunda reestruturação da Dívida Pública portuguesa. Interessante também é a opinião de J. Rentes de Carvalho sobre a ostentação bacoca do Governo-Topo-de-Gama-da-Austeridade que alicia os contribuintes com carros de luxo, cujos custos mensais, segundo o Expresso, ultrapassarão os 300 euros


Depois de, no post abaixo, ter falado da reeleição de António Saraiva à frente da CIP, agora falo de um outro assunto.


Transcrevo parte de um artigo do Expresso: Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia em 2001, defendeu hoje, em Macau, uma reestruturação "profunda" da dívida de Portugal e teceu duras críticas às políticas de austeridade impostas pela 'troika' na Europa.


Um crescimento que, em países europeus como Portugal, pode figurar como ilusão, segundo Joseph Stiglitz: "Quando falo com pessoas de governos de países como Espanha ou Portugal eles dizem: 'As coisas estão a melhorar. A crise acabou'. E, em certo sentido [estão]: Eles estavam a cair de um precipício e deixaram de cair e começaram a crescer".

Contudo, como sustentou o Nobel da Economia, "o crescimento é tão lento que, a este ritmo, nunca mais vão voltar à normalidade. Mas, mesmo se começassem a crescer rapidamente ia demorar anos e anos". "Penso que as políticas que têm sido impostas pela 'troika' são contrárias às políticas sustentáveis. São políticas que farão com que o crescimento seja mais difícil no futuro", defendeu. "O preço que estes países estão a pagar, particularmente os jovens, é enorme", defendeu o economista que, na intervenção que proferiu na abertura do MIECF, já tinha estabelecido um paralelismo entre a atual crise na Europa e a Grande Depressão.


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Permito-me, em contraponto, transcrever o post intitulado Topo de Gama do blogue Tempo Contado de J. Rentes de Carvalho:



Um governo digno, consciente dos seus deveres, respeita e educa os cidadãos, não os insulta nem alicia com brindes. É falta de vergonha tratá-los como débeis mentais, querer  agradar-lhes com lotarias, acenar-lhes com luxo quando a realidade em que o povo vive é a da miséria. 

Infelizmente, e para mal de todos, na nossa desgraçada pátria não o são apenas os carros do burlesco sorteio, topo de gama é também a bacoquice governamental.


Nem mais.


O Expresso fez as contas aos gastos com os carros que o Governo vai sortear e diz:

O Expresso pediu uma estimativa dos custos mensais de utilização dos modelos em causa (52 modelos A4 2.0 TDI 136cv e dois modelos A6 2.0 TDI 177cv, ambos com caixa manual, pintura metalizada e nível de equipamento base) à consultora 4Fleet, que representa a FleetData no mercado nacional e elabora análises de custos de utilização dos diferentes modelos à venda em Portugal.

Dentro da grelha habitual de análise da referida consultora (horizonte de 48 meses, 2.500 quilómetros percorridos em média por mês, manutenção/revisões, gasto de dois jogos completos de pneus e consumos de combustível segundo os valores do fabricante), chega-se a valores de 315 euros por mês para o Audi A4 e de 365 euros para o modelo superior. Estes valores incluem IVA e têm em conta o custo mensal do seguro obrigatório contra terceiros. Se em vez deste seguro básico o proprietário optar por um seguro contra todos os riscos, os encargos respetivos aumentarão pelo menos quatro vezes.


Há muitos contribuintes que, nos tempos que correm, possam dispor de verbas desta ordem para suportar um carro? De quem foi esta estúpida ideia? Que gente parva, inconsciente, irresponsável, insensível, desprezível é esta, senhores?!

A Caritas alerta para a alimentação cada vez mais deficiente de grande parte da população, todas as estatísticas apontam para um empobrecimento assustador, e esta gentinha descerebrada - ao mesmo tempo que continua com a conversa parola e desinformada de que antes vivíamos acima das nossa possibilidades -vai sortear carros topo de gama? E ninguém consegue pôr cobro a estes atentados à inteligência de um povo?


sexta-feira, outubro 11, 2013

Alice Munro, Nobel da Literatura 2013. "Uma boa mulher" que escreve livros à sua "amada vida". Contos. Palavras simples. O que se esconde por baixo da fina capa da realidade. O prazer de desvendar segredos comuns. O prazer de trabalhar com palavras. Os livros.


Abaixo destes, poderão ver um post barra pesada, daqueles que até dói a escrever e ainda mais a ver as imagens.

Mas isso é a seguir. Agora, aqui, a conversa é outra. É gostosa. Pelo menos para mim é pois vou falar de uma coisa de que muito gosto: livros.


A música é a condizer com a leveza com que me apetece escrever: 
Jardim de Inverno pela Susana Félix com Pierre Aderne
com participação especial de Mário Laginha




*

Estive a escrever sobre isto num mail para um escritor. Eu acho que é porque, para mim, os sentidos vêm em primeiro lugar mas talvez haja quem ache que é porque eu seja fútil. Seja. Tal como nas coisas que têm a ver com a orientação sexual ou com a minha preferência por morenos, há coisas que são porque são, não carecendo de explicação.

Falo agora, então, de livros. Não é a primeira vez. É um tema que muito me agrada. E já verão onde quero chegar.

Livros, portanto. Começo logo pela capa. De alguns nem me aproximo. Nem me ocorre qualquer dúvida. Se aparecem fotografiazinhas de carinhas larocas, céuzinho azul-cueca, nuvenzinhas para adorno, castelos misteriosos, sangue no canto da boca, punhais, anjos vaporosos ou vampiros com ar sexy, ou invólucros em tule e salpiquinhos de brilhantes ou pozinhos prelimpimpim, é como se tivessem sarna, passo ao largo.


Admito que possa acontecer que, por um acto isolado de mau gosto do editor, do próprio escritor ou de algum designer ou departamento gráfico mais pimba, a coisa tenha saído assim por um infeliz acaso. Azarinho. Vejo as capas e passo tão longe que nem faço ideia de quem se trata.

É, pois, a capa que começa por me atrair ou afastar. Depois, se a capa chamou por mim, vejo o autor. Se o autor for um Valtinho qualquer desta vida, ou passo à frente ou, receando estar a ser preconceituosa, dou uma oportunidade. Geralmente não a agarram.

Detenhamo-nos, então, naqueles cuja capa me atraíu e cujo autor não me afastou. Pego logo no livro. Tenho que o ter na não. Não consigo decidir-me sem o sentir. Sinto o peso do livro, o toque do papel, a textura. Leio a contracapa, as badanas, espreito. 

A paginação é importante. Se a letra é garrafal, meia dúzia de linhas com margens de lés a lés, só se for um objecto artístico é que tolero. Caso contrário cheira-me a barrete. Muita parra e pouca uva.

O mesmo acontece com o oposto: se a letra é miudinha, compacta, páginas densas, opacas, desisto também. Ainda não preciso de óculos para ver ao perto mas para lá caminho. Ler tem que ser um acto de prazer não de esforço. É como escrever. Escreve-se por prazer ou por necessidade, não por punição, não por sacrifício ou dever.

Estão a ver como é que eu sou. Imaginem: se sou assim com os livros, o que não será com os homens. Aquela coisa de que o que conta é o íntimo, ter bom coração, ser um bom companheiro, etc, comigo não dá. Pode ser música celestial para os meus ouvidos se estiver com disposição para irmãzinha da caridade – mas infelizmente, nunca é o caso.

Por isso mesmo, comigo é assim: primeiro o exterior, depois os interiores e, só depois destes muito bem avaliados, é que passo à fase do íntimo. Homens bonitos, alegres, inteligentes, malandros, que saibam estar, que tenham um andar que me agrade, que isto aquilo e o outro e, só depois então, depois de terem passado por todos esses crivos, é que passo à avaliação dos atributos subjectivos. Aí costumo ser mais tolerante. Excepto, claro, se forem patifes encartados.

Adiante. Livros.

Tendo passado então nas provas anteriores, passo à fase da leitura ad hoc. Folheio, leio aqui e ali. Se me cheira a historieta de cacaracá, pouso o livro e sigo viagem. Se for uma conversa avulsa, sem ponta por onde se pegue, idem. 

Por exemplo. Acho que já sou capaz de ter comprado um livro do Gonçalo M. Tavares porque estava em saldo ou coisa do género e achei que, pela bagatela que era, valia o esforço de um dia destes me dar ao trabalho de tentar perceber porque é que é tão conceituado. Mas todos os outros livros dele parecem-me intragáveis, charadas para quem gostar do género. Faz-me lembrar aqueles espectáculos de dança ou teatros em que os actores se rebolam pelo chão, dão gritos e fazem parvoíces sem propósito ou interesse.


Adiante.

Tudo isto vem a propósito do que escrevi nesse tal mail e vem também a propósito do último livro da Alice Munro.



Alice Munro, Prémio Nobel da Literatura 2013
Amada Viva



Aquela capa chamou-me logo a atenção. Um lettering simples, umas cores sóbrias e, ao mesmo tempo, luminosas. E depois a vinha virgem ao rubro, as suas belas cores de outono, sobre vedação de madeira. Tanto que eu gosto da vinha virgem. A minha ainda está verde. A beleza das coisas simples, já aqui o tenho referido: uma atracção irresistível para mim. Quando vi que era de Alice Munro ainda mais me agradou.

Hoje, mal soube do Nobel, pensei logo que, quando chegasse a casa, iria fotografar o livro, transcrever um excerto. Mas qual quê? Que é feito dele? Já revirei os livros todos que aqui estão em montes à minha volta, já revirei os que estão numa pilha tripla ao lado de um cadeirão, já espreitei entre o sofá e a parede, não tivesse ele caído. Nada. Não aparece. Posso tê-lo levado para ler in heaven e por lá ter ficado mas não me lembro. Na estante não está que é recente e ainda não foi registado e, logo, ainda não foi arrumado no sítio devido. Que maçada, o tempo que eu já aqui gastei às voltas.

Mas paciência. Não encontro esse, mas tenho aqui 'O amor de uma boa mulher'. Vou fotografá-lo entre as minhas almofadas.



Alice Munro, O amor de uma boa mulher

da Relógio D'Água numa tradução de José Miguel Silva



Vou transcrever, ao acaso, um excerto para que, quem não a conhece, fique com um cheirinho - apenas para poder formar uma ideia do género (ainda que muito ao de leve, claro).

(...)

Poderia alguém inventar algo tão diabólico, e com tantos pormenores? A resposta é sim. A imaginação de uma pessoa doente, a imaginação de um moribundo, pode acolher todo o tipo de lixo e organizar esse lixo da forma mais convincente. A própria Enid se viu, enquanto dormiu naquela sala, invadida pelas mais imundas e repugnantes fantasias. Qualquer pessoa pode albergar nos recessos da sua mente este tipo de mentiras, quais morcegos pendurados nas esquinas, à espera de poder tirar partido de uma qualquer escuridão. Ninguém pode dizer, 'É impossível alguém inventar tal coisa'. Repare-se como os sonhos são elaborados, camada sobre camada, de tal modo que a parte de que nos conseguimos lembrar é apenas a ponta do icebergue.

Aos quatro ou cinco anos, Enid disse à mãe que tinha entrado no escritório do pai e o vira atrás da secretária com uma mulher sentada no colo. Tudo o que conseguia recordar dessa mulher, agora como então, era que usava um chapéu com muitas flores e um véu (um tipo de chapéu já na época antiquado), e que a sua blusa estava desabotoada, mostrando um dos seios, cujo mamilo desaparecia dentro da boca do pai de Enid. Contou à mãe isto, estando perfeitamente certa de o ter testemunhado. Disse-lhe, 'E o Papá tinha metida na boca uma das frentes dela'. Ainda não sabia a palavra para seios, embora soubesse que vinham aos pares.

A sua mãe disse, 'Enid, que estás para aí a dizer? O que é isso, uma frente?'

'É como um gelado de cone', disse Enid.


(...)


Alice Munro 

nasceu em Ontário, no Canadá, a 10 de Julho de 1931. 

Publicou a sua primeira história, The dimensions of a shadow, em 1950, quando era ainda estudante universitária.
Tem publicadas doze antologias de contos, incluindo Fugas (publicada pelo Relógio D'Água), e um romance,
Lives of Girls and Women

Recebeu inúmeros prémios literários, incluindo o Governor General's Literary Award, o Giller Prize, o Rea Award for the Short Story, o Lanna Literary Award, o W.H. Smith Literary Award e o National Book Critics Circle Award. os seus contos foram publicados no The New Yorker, The Atlantic Monthly e The Paris Review.


A esta lista junta-se agora o Nobel da Literatura 2013


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Relembro que o que, mais abaixo, poderão ver, é um murro no estômago, um aperto no coração. Se estiverem preparados, desçam, por favor, até ao post seguinte.

Entretanto, relembro que, no meu Ginjal e Lisboa, recebi a visita das palavras de Luiza Neto Jorge. Com ela trouxe um arcanjo que debica onde não deve mas, claro, isso já são devaneios meus. A música que se lhe segue é um outro grande momento: Kate Aldrich e Daniela Dessì interpretam a Norma.


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E, por hoje, por aqui me fico. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta feira. 
Thanks God, it's Friday!!!!!!