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terça-feira, junho 20, 2017

Numa noite sem palavras



Depois de muito escrever, um dia viu-se sem palavras. 

Não se assustou. Limitou-se a aceitar a triste condição. 

Fechou as janelas, apagou as luzes e deitou-se no chão. De olhos abertos, fixando a leve penumbra. Quase sem pensar.

Depois fechou os olhos. Sem palavras que acompanhassem a desistência.

E, no entanto, do chão, como que subindo da terra, chegavam-lhe sons, talvez súplicas, talvez preces, talvez apenas silenciosos lamentos. Silenciosos lamentos subindo da terra. Ou, talvez, descendo das estrelas.

Não tentou percebê-los pois bastava-lhe senti-los. Olhos fechados, os braços cruzados sobre os seios nus, um abraço imaginário que, de longe, lhe chegava, um sussurro longínquo que parecia tentar serená-la, a ela, abandonada, sem palavras.

Ouvia uma música mas não sabia se a ouvia, se a sonhava. Alheada, atenta apenas ao silêncio que adivinhava subindo do coração de quem, lá longe, abrindo as mãos, soltava na noite palavras transparentes, generosas como pássaros cantando na suave madrugada.

Mas nada a consolava porque ela estava como que sem vida. 

Tinha ouvido de estradas da morte, de vidas perdidas, de casas queimadas, sabia da cinza que tudo cobria, dos escombros onde as memórias se tinham desfeito, de um homem que sofridamente falava da mulher e das filhas perdidas para o fogo, da avó que quis salvar a neta e com ela se perdeu, sabia de todas essas aflições sem retorno. E, apesar de, nesse momento, lhe parecer que nada mais poderia haver no mundo, impedia as lágrimas, como se as suas lágrimas não fossem dignas da dor alheia, como se não pudesse sofrer por eles, sobretudo porque se sabia cobarde ao não perceber como poderiam aquelas pessoas voltar a viver depois de tamanho sofrimento. As palavras como que tinham sido sugadas por aquela desmesurada inclemência. A compaixão que sentia não era nada face à coragem dos que sabiam continuar de pé. Ela não. Ela caída, exangue, quase sem respirar. As palavras tinham desaparecido e as que, de longe, lhe chegavam em vão tentavam acordá-la. Em vão. Em vão. Um sono pesado parecia abater-se sobre o seu corpo derrotado. Ouvia-se dizer, como se o dissesse sem palavras, apenas com um olhar triste como nunca ninguém o tinha visto: deixa-me chorar.

Lascia Ch'io Pianga, ouvia como que num sonho emudecido, perdido entre pesadas nuvens. Lascia Ch'io Pianga. 

E, então, as súplicas pararam, a música estancou, a penumbra escureceu. E, como que perdida num imenso vazio, entre silêncio e sombras, deixou que as lágrimas corressem, sem palavras, inundando a desolada noite.

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Não sei se o texto que acabei de escrever vem na continuação de Um coração negro como a noite

E continua em Outros tempos. Sem pena, sem arrependimento

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quarta-feira, janeiro 08, 2014

Breves instantes de beleza. O pó, o som, o corpo. A imagem, a palavra.


A beleza sem norma, a beleza acidental, a beleza do movimento e dos corpos e dos corpos feitos pó e do pó ao pó, dust to dust.

Do pó ao pó, um movimento fugaz, a breve passagem do tempo sobre os corpos, ou os efémeros corpos que deslizam sobre a superfície do tempo antes de voltarem a ser o pó original. Ou palavras soltas sobre o nada. O silêncio, o vazio. E nós feitos pó no meio, no útero doce, doce, macio e encarnado, de sangue,seda e calor.

E do centro e do calor germina a inspiração que vem do centro do corpo, do voo, do vento, da luz, da sombra, da raiz do tempo. Volátil como o pó antes de ser corpo, ou eterna como o corpo depois de ser corpo.

Sem palavras.





E depois a felicidade da música, sons felizes, os céus como lençóis macios, e a voz que se ergue sobre os corpos, e a felicidade é tanta, tanta. E não sabemos o que é a felicidade, nem precisamos de saber, só querermos estar felizes, abraçados e nem precisamos de saber a que corpos pertencem os braços, são braços de deuses, de anjos, nuvens, sonhos, voos, segredos. Para quê querer desvendar os mistérios felizes? A alegria da brancura? As palavras que descem dos céus. Ou que sobem do centro da terra, da poeira do tempo. 

Feitos poeira perdida no tempo, vamos mergulhar, vamos, vamos mergulhar na beleza, na música, no movimento. Sem perceber. Sem querer perceber. Deixando-nos apenas ser. Ser. Ser devagar. Muito devagar.






Devagar. Devagar os corpos enleiam-se, e disputam-se e desejam-se e nada faz sentido e é tão boa a inocente falta de sentido. E o suor mistura-se e as lágrimas fundem-se e um dia, uma noite, o sémen de um entrará no corpo de um outro e a vida prosseguirá, solta, sem sentido, apenas um breve instante, um fluir, um movimento luminoso. 

A beleza. A beleza. A felicidade da beleza. A beleza do que é breve e sem sentido. 





O voo dos corpos, a cumplicidade das palavras inventadas, em silêncio, coração com coração, pele com pele, sonho com sonho, sexo com sexo. Um rumor. Uma poeira vogando no infinito. Um ponto de luz e um outro. Dois pontos de luz brilhando no meio da mais solitária escuridão.

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E depois há as imagens improváveis, belas, a cor e a luz em dias de chuva. E os risos das crianças, e o carinho, e o contacto puro com todas as formas de arte e beleza.




E a alegria de um amor que começa, a beleza da sua pele, o seu cheiro, o conhecer o seu interior, as suas palavras, as primeiras.  Novos livros. As saudades que eu já tinha de me passear por uma livraria, a emoção de trazer os livros, de os sentir, a alegria animal da posse. A contemplação inocente. 




Livros novos, palavras por descobrir. Pudesse eu confessar-vos o quanto me apetece beijá-los, trazê-los junto ao peito, poder sentar-me num banco de jardim num dia de chuva e, sozinha, lê-los sem querer saber da chuva nem de nada. Ou sentar-me à lareira, um bule, uma chávena de chá bem quente, tostas com queijo e mel, nozes, uma música por perto, um abraço doce. E poder passar as mãos pelas páginas, beijar secretamente quem nas páginas pousou as palavras ou as imagens que os meus olhos beijam.

Devaneios. Um pouco de paz num mundo tomado pela insanidade. 


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1. Os instantes de beleza nos vídeos respeitam a:



2. Sobre a pintura que faz parte de uma exposição que visitei no outro dia vos falarei outro dia, amanhã talvez. Alguém adivinha de que se trata?

3. E os livros vieram hoje cá para casa. Entre eles, Há um muito especial, uma peça para guardar num cofre, numa vitrina, para ter aqui à minha beira. A ver se depois vos falo melhor sobre ele. Agora tenho-o aqui, quase ao meu colo, e cheiro-o, já o cheirei tantas vezes, ainda cheira a bebé acabado de nascer, a tintas, a palavras e imagens impressas. Como é o que se vê pior na fotografia, eu conto-vos. É uma edição da Relógio d'Água. Antigo Testamento (Génesis, Êxodo e Cântico dos Cânticos) com ilustrações de Marc Chagall. Tradução de Herculano Alves, D. António da Rocha Couto e José Tolentino de Mendonça. Parece um missal, sabem?



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Muito gostaria ainda que visitassem o meu Ginjal e Lisboa. Hoje, por lá, tenho palavras de Adélia Prado, alguém de quem, como sabem, tanto gosto. Ex-Votos

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quarta feira muito feliz. 
E procurem a beleza, está bem?