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segunda-feira, outubro 10, 2016

A voz interior


Tal como contei no post abaixo, em que falei de mulheres que gostam de mar, tenho estado a ler A voz interior, excertos do diário de Hein Semke. Gosto de ler diários.


Leio-os com curiosidade, estranheza, alguma inquietação.





Quando vejo uma obra de arte, não quero saber da vida do seu autor. Não quero saber nada. E se acontece ler o diário de um escritor, pintor, músico é, como no outro dia já o referi, porque me interessa perceber de que universo de aleatoriedade nasce a obra, porque quero perceber se há génese e logo abandono ou se há carpintaria cuidada, ou se a ideia nasce de outra ideia ou se não há ideia nenhuma. Tal como há pedras parideiras, gosto de pensar que as palavras também o podem ser ou que acordes podem gerar acordes ou traços gerar formas. Ou serão factos que geram arte? É para questões deste tipo que gosto de procurar respostas. Como Miró que salpicava as telas com os pintéis que tinha deixado de molho e que se deixava guiar pelo desenho que assim se formava. Isto já para não falar de Pollack que construía camadas de acasos, num frenesim, como se uma pulsão o conduzisse na direcção de um desconhecido caos. Ou Picasso que, com uma fenomenal energia, copiava dos outros, inventava, distraía-se, divertia-se e, por vezes, apurava-se. 

Eu, apesar de aqui escrever todos os dias como se não houvesse amanhã, poucas vezes me deixo levar pelo lado diarístico. Posso contar um ou outra coisa, por vezes a posteriori falo de alguns acontecimentos mas, em cima do acontecimento, relatar factos puramente pessoais como, por exemplo: Hoje estou cheia de dores, custa-me andar. Vou fazer uma ressonância magnética. Estou preocupada, ou: Tenho um problema com o meu chefe, já não sei o que fazer para me entender com ele ou: Aborreci o meu marido ao falar desabridamente do primo dele e agora não sei como me reaproximar dele sem dar o dito por não dito -- ou outras coisas do género -- isso a mim não me tenta.

No entanto, encontro palavras nesse registo nos diários que leio. E leio-os muitas vezes com uma pena enorme, acompanhando as suas angústias, sofrendo com eles. Sei que não faz sentido mas é o que me acontece. É quase como se tivesse preferido não saber do seu lado humano, dos seus problemas pequenos e vulgares, quase como se tivesse preferido que deles apenas houvesse o lado de criadores.

Hein Semke, que teve uma vida longa, viveu, pelo menos durante parte do tempo percorrido por este diáro, com dificuldades económicas que o atormentavam. E tantas vezes quase sucumbia aos problemas que daí advinham. E preocupava-se por viver com uma mulher com cerca de metade da sua idade, mulher essa que por vezes garantia o sustento da casa. E vivia com a angústia de não comprarem o seu trabalho, de quase ninguém aparecer nas suas exposições. E eu leio essas aflições que causaram sofrimento a alguém há décadas e inquieto-me pela injustiça que todos cometemos para com tantos e tantos artistas, com tantas e tantas pessoas. Não sabemos nem queremos saber o que vai no coração das pessoas nem as dificuldades por que passam.
[Por exemplo, assusta-me pensar que sou lida por pessoas que têm a generosidade de me ler enquanto eu ignoro as dificuldades por que passam. Custa-me pensar que não têm dinheiro para passear ou para ir a restaurantes ou comprar livros e que, em silêncio e alguma tristeza, lêem a minha alegria ao falar do mar, das árvores, dos meus constantes arroubos. Ou por pessoas solitárias que não têm a quem dar um abraço ou em quem nenhuma mão pousa num afago amigo. Como posso eu chegar até essas pessoas? Ignoramos sempre o que é invisível e não sabemos como ver para além da camada superficial. Não sabemos chegar a quem, apesar de estar próximo de nós, se mantém invisível e em silêncio.]
Hein Semke, A dor, 1934
Nos jardins da Gulbenkian
O diário de Hein Semke não fala só dos seus problemas quotidianos. Fala das suas ideias, dos seus projectos, das suas esperanças, expectativas, entusiasmos. A vida das pessoas faz-se de uma sucessão de pequenos factos. Mesmo quando há grandeza na sua obra ou na sua vida, essa grandeza não é um somatório de apenas grandes factos. É, a maior parte das vezes, uma sucessão de pequenos nadas, desencontros, desentendimentos, equívocos, breves gestos de ternura, raros momentos de genuíno reconhecimento, e febres, desconfortos, e alegrias e zangas e recomeços. 

Como de uma vida normal ou onde pontuam depressões podem nascer magníficas obras é o que não percebo. Se eu vir um deus, desligado de mundanidades e acima de minudências, com um intangível corpo, alimentando-se de brisas e acordes divinos, eu, vendo obras de arte que nasçam de si,  percebo. Agora de pessoas tão irremediavelmente normais a mim custa-me perceber que tenham, algures, escondido dentro da sua aviltante normalidade, o dom da criação.

E tudo isto me vai inquietando enquanto leio um diário como este. Vou levada pela mão da escrita, dia após dia partilhando o quotidiano de Hein Semke. E, de vez em quando, tento imaginá-lo a construir a maravilhosa escultura A dor'' que tantas e tantas vezes vejo sem me ocorrer pensar que quem a concebeu viveu uma vida tão humana.

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Hein Semke, Autorretrato, 1934-35

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Uma vez mais, talvez não tenha nada a ver com nada disto mas deixem que partilhe convosco:

Leonard Cohen diz Since You Asked de Judy Collins


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E, caso estejam com vontade de ver mulheres que gostam de mar, queiram, por favor, descer até ao post já aqui abaixo.

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