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quarta-feira, janeiro 21, 2015

Porque o meu pai já está em casa, porque 'o humor é a liberdade', porque a vida é uma coisa extraordinária, e porque mil outras coisas: Light up your face with gladness, Hide every trace of sadness. Although a tear may be ever so near That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile - If you just smile.


Aos poucos talvez as coisas voltem ao normal - se é que antes eram normais. 

Quando fui vê-lo ao hospital, logo no sábado a seguir ao ano novo, ainda antes de ser operado, naqueles dias em que lhe retiraram o anticoagulante para o sangue espessar e diminuir o risco de hemorragia durante a cirurgia, estava choroso. Dizia 'estou em xeque com isto...'. A minha mãe questionou, 'Em xeque? Mas estás em xeque porquê?'. Ele olhou para nós com aquele seu olhar desfocado, 'Pois, não é em xeque'. E esforçou-se por encontrar a palavra, balbuciou, depois calou-se, não a achava.  A minha mãe perguntou, 'Chateado?' Ele confirmou, 'Pois, estou chateado com isto' e nós dissemos que era natural que estivesse chateado. Depois virou-se para mim e disse 'Tinha a minha vida lá em casa, fazíamos as nossas coisas e agora isto'. E eu disse que ia voltar a ser o que era, que era só o tempo de ser operado e que haveria de voltar. Mas ele, choroso, que não queria ser operado. E virou-se para a minha mãe, 'morrem todos'. A minha mãe repreendeu-o, 'mas morrem todos, quem?'. Ele disse o nome de um e disse que tinha sido operado e que, passado algum tempo, tinha morrido e, depois calou-se, pensou, e quando se lembrou, disse 'O Salvador também'. A minha mãe corrigiu. Que o primeiro ainda viveu muito tempo e morreu de outra coisa e que o Salvador morreu logo, caíu no jardim e bateu com a cabeça. Ele não disse nada, talvez tenha ficado mais animado.

Depois foi operado. Na manhã em que ia ser operado, às sete e picos da manhã tocou o telemóvel do meu marido. Fiquei petrificada. Àquela hora, alguém a ligar, não podiam ser boas notícias. O meu marido não chegou a tempo e o número era daqueles que não atendem quando se liga na volta, geralmente são cartões de centrais telefónicas. Fiquei com o coração a bater descompassado, pavor de que algo tivesse acontecido. Mas não voltaram a ligar.

Depois a operação correu bem, uma placa, uns parafusos, o colo do fémur aparafusado. Um grande alívio. o risco não era a cirurgia em si mas o estado debilitado dele.

Nessa noite, às dez e tal, novamente o  telemóvel. Mais um sobressalto. Mais uma vez não se foi a tempo, mais umas vez o coração disparado.

Na manhã seguinte, à mesma hora, a mesma coisa. O meu marido foi veloz. Era da Central de Alarmes. O meu filho pôs um alarme em casa e das duas vezes de manhã não se tinha lembrado de o desligar e à noite ligou-o e depois foi lá abaixo sem o desligar e aquilo disparou e accionou um alerta na central. Como a seguir eles não atenderam o telemóvel, ligaram para o terceiro número, o do meu marido. Menos mal. O meu único medo era que fosse do hospital. 

Depois as complicações, várias. Cada dia uma coisa. Uma pessoa já tinha medo de saber como é que o ia encontrar. A seguir à operação, e outros dias, quando estava pior das várias complicações, a minha mãe não tinha coragem de ligar, ligava eu. Assim, quando lá se chegasse, já não havia surpresas. Por vezes não atendiam logo do hospital e logo a minha mãe me ligava, assustada, 'Não dizias nada, já estava preocupada, aconteceu alguma coisa?'

Outras vezes, estava todo baralhado. Onde é que estou? Trouxeste os sapatos para eu me poder ir embora? Mas as operações agora não são coisa de um dia? Vá, dá-me lá o casaco para nos irmos embora. Como é que me descobriram aqui?

Talvez fosse da anestesia, talvez do estado geral. Depois passava-lhe, voltava ao normal. Ao normal depois do AVC, quero eu dizer.

Um dia que eu não estava lá, perguntou à minha mãe, Tu tens uma filha? A minha mãe disse, Nós temos uma filha, nós. Ele ficou a olhar, Ah, e como é que se chama a tua filha? A minha mãe corrigiu outra vez, Minha filha não, a nossa filha. Diz lá tu como se chama a nossa filha. Pensou e disse o nome da minha mãe. A minha mãe disse, Então esse não é o meu nome? E depois disse-lhe o meu nome e perguntou Então não é? E ele disse, Ah pois é.

No domingo estava no cadeirão, ainda a soro (pois os níveis de potássio tinham baixado), e cheio de almofadas pois mal se aguentava direito, olhos muito abertos, desfocados, meio despenteado, olheiras enormes, agitado. Que já não se aguentava sentado, que não havia direito, que mais valia acabar com aquilo tudo. Estava numa impaciência, que nos fossemos embora, e já se zangava comigo e com a minha mãe, que queria ir para a cama, que os enfermeiros ainda se esqueciam dele ali. Eu e a minha mãe comentámos uma com a outra que ainda teria hospital para mais uma semana, tal o estado em que ainda estava.

Estávamos enganadas. Esta segunda, estive numa reunião toda a manhã. Perto da hora de almoço, enviei um sms à minha mãe a dizer que ainda não tinha ligado porque estava numa reunião. Respondeu-me por sms que o meu pai tinha tido alta. Respondi, Não acredito! mas, de seguida, saí logo da sala e fui ligar-lhe. Estava enervada, que lhe tinham ligado do hospital, que o iam mandar para casa, que estava a arranjar a cama, a preparar as coisas. Fiquei estupefacta. Disse-lhe que ia ver o que se passava. telefonei para lá. As enfermeiras estavam também admiradas, que o médico tinha lá chegado e dado alta a vários doentes e que ela também não estava à espera, que costumam preparar a alta e falar com a família mas que não tinha dado tempo. Disse-lhe que não aceitava que estivessem a tratar o meu pai dessa forma. Ela respondeu que o mundo ideal é um e o mundo real é outro e que cada vez mais é assim. Com muita dificuldade lá consegui falar com o médico.

Explicou a situação, que ele estava estável, que podia ir para casa, que se não fossem todas as complicações já teria tido alta há mais tempo, e lá me disse quais os tratamentos e consultas seguintes. Respondi-lhe que o meu pai não ia sair nesse dia porque queria que as enfermeiras falassem com a minha mãe para lhe explicarem tudo como deve ser, porque queria que as coisas não fossem precipitadas daquela forma. O médico disse que compreendia. 

Depois a enfermeira ligou-me a pedir desculpa e a dizer que, com a pressa nem tinha reparado mas que, para além de tudo, não estando o meu pai referenciado como carente do ponto de vista económico, teria que ser a família a fretar a ambulância para ele sair de lá.

Assim se fez.

Já está em casa. Esta quarta-feira vai lá a enfermeira do centro de Saúde para lhe dar uma injecção, para fazer o penso. Deve ir também uma fisioterapeuta (particular) para ver qual o programa recomendável, a ver se em casa consegue fazer alguns exercícios. Era bom que conseguisse voltar a dar uns passinhos dentro de casa. Tenho esperança. Já não é a primeira vez que está acamado, quase sem se conseguir mexer e depois, com muita fisioterapia, lá consegue dar os seus passinhos. Mas agora, para além das dificuldades todas, deve ter medo pois foi assim, a ir da sala para o quarto, que lhe escorregou a mão em que se apoiava e caíu, partindo a perna.

Supostamente deverá ir, dentro de pouco tempo, quando houver vaga, para uma clínica de reabilitação, para fazer recuperação como deve ser. O recomendável são 3 meses de internamento mas ele não deve querer ir e a minha mãe diz que, se ele não quiser, não o vai forçar. E eu também não forçarei.

Como de costume a minha mãe, depois da angústia natural de quando as coisas acontecem, volta à sua boa onda habitual. Já nem teme muito o que por aí vem pois há seis anos que está habituada a ser cuidadora a tempo inteiro. 

Pelo meio, depois de uma das visitas ao hospital, já a trouxemos a ver a casa do meu filho, já andei a passear com ela à beira mar, já lá teve os netos a lanchar e continua a fazer a manta de crochet para a cama de um dos bisnetos, nem sei bem para qual. Tentámos que não lhe custasse tanto o internamento do meu pai e que, ao menos, aproveitasse para passear um bocadinho, coisa que, com o meu pai em casa, nunca pode fazer.

Por tudo isto, pela preocupação, por algum cansaço, pela alteração na rotina, por ter tido menos tempo para estar com os mais pequeninos, por tudo, tenho andado menos inspirada. 

E agora não é que esteja muito mais descansada. Não estou. Por exemplo, não sei como vai ser esta noite e isso preocupa-me. No hospital, se ele chamava, se estava inquieto, estavam lá os enfermeiros. Lá em casa, se necessário, só terá a minha mãe. Queria que ela arranjasse apoio a tempo inteiro mas não quer, diz que já lhe basta esta situação quanto mais ainda andar a tropeçar numa outra mulher a viver lá dentro de casa, que era o que lhe faltava. Percebo-a e não posso nem quero forçar o que quer que seja. Mas, enfim, tudo se há-de ir resolvendo. 

Afinal, a vida continua. 




If you smile through your pain and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through
For you.


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O mais fácil de satirizar em nós é sempre o que nos torna surdos à realidade, prisioneiros da ficção de nós mesmos; é a nossa comédia de enganos, com os seus tiques e trejeitos, as suas atoardas que se pretendem o idioma da verdade; é o nosso caminho ostentado sem qualquer preocupação de contacto com os outros, que rapidamente se pontilha de automatismo e preconceito. Reconhecer o ridículo é a forma mais nobre e ágil de sair dele, mas essa não é uma decisão nem espontânea, nem indolor. O riso não é uma consolação, nem uma terapia fácil de seguir para ninguém. Exige uma grandeza interior que se conquista milímetro a milímetro, à maneira do alpinista que galga uma encosta árdua.

Um dos textos mais belos sobre isto mesmo é uma nota autobiográfica assinada pelo escritor Dinis Machado em 'Reduto quase Final'. Evoco-a com a devida vénia. 'Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer esta pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual o lado mais cómico disto? (...) Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoal olhavam para mim: - Qual é o lado mais cómico disto?




(...) Creio que os cómicos (...) me compreendiam melhor que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.


Extracto de 'O humor é a liberdade' de José Tolentino Mendonça em 'Que coisa são as nuvens' no Expresso


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  • As primeiras fotografias são da autoria de Jeffrey Vanhoutte, foram feitas no âmbito de uma campanha publicitária dinamarquesa e a bailarina é  Noi Pakon. Escolhi-as porque mostram aquilo que sinto nestas situações, vontade de soltar de cima de mim o peso da angústia, vontade de deixar de sentir o peso do medo, vontade de ser capaz de encarar tudo com maior leveza.
  • A fotografia das crianças é da autoria da mãe, a fotógrafa russa Elena Shumilova
  • O segundo grupo de fotografias faz parte de uma série intitulada People Reading Poorly-Chosen Books In Public que pode ser vista aqui e coloquei-as no meio deste post porque nada como o humor para enfrentar os momentos menos animados da nossa vida. Rir para mim é um poderoso antídoto para as agruras da vida, sempre foi e tomara que sempre assim seja.
  • O Smile é de Charlie Chaplin na interpretação de Nat King Cole (e, foi-me lembrado pela Leitora Rosa Pinto que, em boa hora, me deixou a tradução da letra da canção num comentário mais abaixo).
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Hoje vinha com ideia de falar dos muito pobres cada vez mais pobres e dos muito ricos cada vez mais ricos e do Paulo Portas a gabar-se do estado da economia depois de as notícias divulgarem que a já de si anémica economia continua a abrandar. Mas comecei a escrever sobre o meu pai, alonguei-me e, aqui chegada, já não me apetece pôr-me agora a falar de tão desagradáveis coisas. Por isso, hoje fico-me por aqui.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.
E, por favor, não se esqueçam:
Smile though your heart is aching
Smile even though it's breaking.
When there are clouds in the sky
you'll get by.


terça-feira, agosto 05, 2014

"agradecimento pelo carinho recebido"







Estou a começar hoje aqui mais tarde do que o costume. Ainda estou em período de trabalho e cheia dele, as férias ainda distam, e depois, quando cheguei a casa, ainda houve a caminhada diária, e depois jantar e arrumar a cozinha e, ainda, roupa a lavar e a estender, e arrumar roupas e demais afazeres domésticos.

Para além disto, tenho recebido um número de mails que me deixa admirada e aos quais vou tentando responder o mais brevemente possível para que não me tomem por mal educada ou mal agradecida mas que, apesar de não conseguir pôr as respostas em dia, me ocupam um tempo que me escasseia.

Tinha vontade de vos mostrar o bolo dos bombeiros do bebé que, imagine-se, já fez 2 anos mas não sei se tenho tempo de lá chegar. Aliás, de há um mês e picos a esta parte, já lá vão 6 aniversários no núcleo mais chegado da família e mais 3 estão na calha para os próximos dias. Entre compra de presentes, festas de anos e tudo o resto, incluindo este turno da noite que também me ocupa bastante, é toda uma azáfama que me ocupa e que, tenho que confessar, me deixa um bocado cansada. Felizmente tenho a sorte de, mal me deito, adormecer e ter um sono repousante; mas, não obstante, estou mesmo a precisar de férias. O que me vale é que agora até não está muito calor, senão andaria mais morta que viva.

Hoje ainda quero ver se consigo deixar mais uns apontamentos a propósito do BES e de toda a nebulosa que cerca o assunto (cada vez mais nebuloso à medida que mais pormenores vão chegando ao nosso conhecimento - PT, Goldman Sachs, etc) mas, ao entrar aqui no blogue, fui ver as estatísticas na parte das palavras de entrada pois, a partir das palavras que as pessoas escrevem nos motores de busca e as trazem até aqui, parece que me sinto mais próxima de quem me lê - e essa proximidade é-me muito necessária.
Um texto que escrevi (sobre o Expresso e o BES) teve já mais de 21.000 visitas e, a propósito do que tenho escrito sobre o banco, tenho recebido inúmeros mails, inúmeros, pedindo conselhos, dando opiniões, carreando informações. Uma coisa surpreendente, isto.

Contudo, não são esses mails que mais me impressionam apesar do número. O que mais me comove é quando abro o correio e tenho um mail de alguém que nunca comentou no blogue e que me conta a sua vida e me diz que me acompanha há muito e que tenho sido uma companhia preciosa, que tenho sido uma ajuda em momentos de solidão ou de angústia e que, ao ler o que aqui escrevo, é quase como se estivesse a receber uma visita amiga com quem pode conversar. Nessas alturas penso que quem espera ler umas palavras de conforto ou as palavras de alguém que fala do seu dia a dia ou de assuntos correntes, deve ficar desiludido quando me ponho a falar de política ou de assuntos económicos. Muitas vezes, até a pensar nisso, tento equilibrar os assuntos, tentando compensar a aridez da escrita sobre assuntos mais maçadores com alguns apontamentos diversos sobre quaisquer outros temas.

Também já aqui o referi: os motores de busca - e o google que é o que uso mais - têm batalhões de cientistas, muitos deles especializados em neurociências, filosofia, psicologia, física, (para além das informáticas, claro) para aperfeiçoarem o algoritmo que, a partir do que as pessoas procuram, coloca por ordem aquilo que teoricamente melhor responde ao que é procurado, dispondo os muitos locais onde a resposta pode estar contida.
A ordenação do que aparece não é aleatória, obedece a critérios de que nem fazemos ideia. Por isso, por vezes admiro-me como é que, tendo alguém escrito o que escreveu, veio parar ao 'Um Jeito Manso'. Mas depois penso que o algoritmo, que segue a lógica da inteligência artificial, lá deve saber e foco-me noutro aspecto: tendo a pessoa chegado até aqui, interrogo-me sobre se o que encontrou terá correspondido às suas expectativas.

Vem isto a propósito de uma expressão que hoje aqui me aparece nas estatísticas: "agradecimento pelo carinho recebido".

Alguém escreveu isto e veio ter até mim e isso deixou-me um bocado impressionada. Provavelmente essa pessoa não encontrou o que procurava e foi-se embora. Mas eu gostava que voltasse para que soubesse que fui sensível a essas palavras e que gostava de saber escrever palavras de conforto.

Pergunto-me: quem escreve aquilo, espera encontrar o quê? Palavras de carinho? Palavras de compreensão? Palavras para si próprio ou para usar junto de outras pessoas?

Lembrei-me de uma revista que folheei enquanto estava na caixa do supermercado: Judite de Sousa vendeu a casa, Judite de Sousa luta para reagir à morte do filho, Judite de Sousa passa muito tempo no computador


Penso muitas vezes nela. Penso muitas vezes no vazio que deve existir agora na vida daquela mulher. Numa outra revista, Pedro Bessa, o pai do André, diz que sente, sobretudo, muitas saudades do filho. As revistas vão tentando encher as capas com o sorriso sereno do pai ou com o rosto devastado de Judite de Sousa ou com notícias que não são notícias (porque a dor de uma mãe que perde um filho não é notícia para os outros, deve ser uma dor demasiado íntima para poder ser partilhada). Mas que sabemos nós do que se passa no coração daquela mulher que nos entrava em casa quase todos os dias, e que sorria e que estava confiante no seu futuro e, sobretudo, no futuro do seu filho?


Que sentido encontrará ela no que se passou? Não pode encontrar sentido porque não há. Que sentido pode haver no desaparecimento de um filho? Nenhum. Por muitas razões que se procurem para o justificar, nunca passarão de uma ténue atenuante.

Mas o tempo trará a doçura das recordações, e nascerão outros interesses, e, aos poucos, o corpo habituar-se-á à dor da amputação. Estou em crer que nunca desaparecerá o vazio nem a saudade nem a dor pela injustiça. Mas o coração e a cabeça saberão viver com isso e a vida continuará.

Porque a vida continua, saberá Judite de Sousa que os seus espectadores sentem a sua falta e que a acompanham no luto que ela está  a fazer? Acho que sabe. 


Eu, que tantas vezes aqui me diverti com as suas botas ou com a sua pintura exuberante ou com as interjeições no trato com o Dr. Medina, penso tanto nela. Nenhuma mãe merece tamanha dor. E ela, que tantas vezes aparecia em público amparada no seu filho, a quem tanto queria e de quem tanto precisava, ainda deve sentir mais a sua ausência. Tem uma vida exposta aos olhos alheios e isso deve torná-la ainda mais vulnerável. Em que braço se apoiará ela quando tiver que aparecer em público? As fotografias mostram o seu ar ausente, o seu rosto sem maquilhagem, e é uma mulher nua, emoções e tristeza à flor da pele. Como poderemos nós, a quem ela tanto deu ao longo de tantos anos, ajudá-la a superar a sua dor? E como poderemos agradecer-lhe o carinho que dela recebemos? E como poderemos fazer que sinta o carinho que sentimos por ela?

Escrevo a pensar nela mas há outras mães que perderam também os filhos. E há mulheres que perderam os companheiros ou os irmãos, ou os que perderam um pai ou uma mãe.

Pouco tempo depois de eu começar a trabalhar, tinha uns vinte e poucos anos, o meu chefe da altura perdeu a mãe. Muitos colegas foram ao enterro mas eu não fui. Ainda mal o conhecia e não tenho à vontade nestas situações. Dois ou três dias depois, sem que nada o fizesse esperar, morreu-lhe o pai. Toda a gente ficou muito impressionada. Eu também fiquei mas, uma vez mais, não fui capaz de lá ir.

Quando ele regressou ao trabalho, fiquei numa aflição. Deveria lá ir dizer qualquer coisa mas não sabia o quê. Diziam-me: 'Dizes: os meus sentimentos'. Mas eu achava que dizer tamanha banalidade poderia parecer um insulto perante a dor de perder, de seguida, mãe e pai. Agora...? Que insulto...?, sossegavam-me os colegas, É o que toda a gente diz.

Fiquei uma manhã inteira a evitá-lo, num nervosismo. Depois enchi-me de coragem. Fui, corredor fora, sem saber o que iria dizer; talvez fosse a pensar que acabaria mesmo por dizer 'os meus sentimentos'. Mas, quando entrei no gabinete dele, para minha minha surpresa, o que me saíu foi: Os seus pais deviam ter muito orgulho em si, porque já é director. Ele, homem de quarenta e tal anos, ficou admirado, não estava nada à espera duma coisa daquelas, ficou calado a olhar para mim, depois vi que ficou comovido e eu, comovida, em frente dele. Depois ele disse, Acho que sim, e sorriu ao de leve, talvez um bocado espantado ou talvez a perceber a minha atrapalhação. E eu vim-me embora. Durante todos estes anos  tenho pensado que foi uma coisa ridícula de dizer. Mas agora já acho que não há palavras certas, que aquelas não foram mais desadequadas do que quaisquer outras. Todas as palavras são inúteis, acho que o melhor é nem dizer nada. Mas não sei.

Uma pessoa que escreve 'agradecimento pelo carinho recebido' espera encontrar que palavras? Tão difícil adivinhar.

Claro que também pode ser o contrário: alguém que esteja feliz, que tenha estado bem e que tenha recebido cumprimentos, felicitações, e que queira agradecer, não sabendo como.

Se for isso, então é uma pessoa feliz, duplamente feliz, alguém que se vê rodeado de carinho e que quer descobrir palavras apropriadas.

Nesse caso, bastará apenas um sorriso, um obrigada.

A vida é um dom incerto, breve, pode ser traiçoeira.

Por isso, enquanto dura, que seja vivida com alegria e em plenitude.

E, quando a vida dos que amamos se esgota, que saibamos nós honrar a sua memória. Talvez isso baste, viver como aquele que se foi gostaria de nos ver.

Da minha parte, meus Caros Leitores, resta-me apenas esperar que, quem aqui chegue buscando palavras de carinho ou de agradecimento pelo carinho recebido, encontre sempre palavras com que, de alguma forma, se sinta confortado. Não sei dizer abraço de forma a que, quem lê, se sinta abraçado mas vou continuar a tentar. Prometo.





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As imagens, deliberadamente envolvendo crianças porque a recordação de crianças é algo que vive sempre feliz em nós (mesmo quando, depois, um pano de tristeza apaga a alegria de viver), são fotografias de Elena Shumilova, uma jovem mulher russa que fotografa os filhos de uma forma quase mágica.


A música é 'Moonlight' Sonata: I. Adagio sostenuto' de Beethoven numa interpretação de HJ Lim.

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Acho que não vou ser capaz de escrever mais. Mas ainda vou tentar.

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Tentei. Não dá.
Não consigo agora por-me a falar nesse ninho de vespas que é a realidade que envolve o BES.

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Desejo-vos, meus Queridos Leitores, uma boa terça-feira.