Nestes dias de início de Setembro, por aqui, já não há muita gente. As tardes são longas, tranquilas, a temperatura amena. Para a tardinha, levanta-se uma aragem forte, arrefece.
Os jovens que estão de guarda à praia já não têm muito que fazer. Conversam, riem, brincam. Dois rapazes e uma rapariga. Gosto de vê-los. A amizade que parece uni-los torna-lhes, certamente, em prazer aquelas horas de fim de verão.
As brincadeiras por vezes passam das palavras aos actos. Correm, riem, seguram-se. Eles unem-se para a atirar ao mar. Ela luta, resiste. Mas depois, vendo que não conseguirá, despe o casaco e rende-se.
Doces memórias serão guardadas para mais tarde as recordarem. Entre sorrisos.
Saberão eles que os vi, jovens e felizes, brincando neste início de Setembro? Saberão eles que a sua alegria e os seus risos habitam agora este meu espaço que é o espaço de todos quantos o visitam?
Gostava que soubessem e que ficassem contentes de se saber aqui, eternamente felizes.
Há mulheres que transportam em si o perfume do pecado. Será a forma como olham, como sorriem, como deslizam, como se negam sem se negarem, como se oferecem sem se oferecerem, será qualquer coisa de indizível mas que olhos atentos facilmente reconhecem.
Algumas acrescentam uma outra camada, mostrando que são detentoras de uma densidade pouco usual. Ao que se vê, acrescentam o que nelas se pressente. E o que se pressente é que há nelas, algures -- e não se sabe se é no coração, se na mente, se em todo o corpo -- a tentação pelo abismo, a capacidade da paixão transcendente, a inocência irresistível, a loucura que enleia, o riso que seduz, a irreprimível liberdade que prende de forma irreversível.
E, outras, raras, somam a isso ainda o dom do uso inteligente da palavra. É sabido que as palavras viciam e que, se nascidas de uma mulher bela e sedutora, podem ser verdadeiramente afrodisíacas.
O que dizem mulheres assim enquanto olham, enquanto o corpo se entrega a quem as olha, torna-as um permanente motivo de fascínio e atracção. Podem os anos passar, pode o corpo envelhecer que, nelas, a graça e o encanto permanecem. Intactos, requintados, cativantes.
Estou a lembrar-me de algumas. Poucas. Muitos quererão tê-la como amante. Apenas alguns terão a sorte de ser escolhidos.
Mas, mais tarde, viria a arrepender-se de o ter dito daquela forma. Confessou que preferia ter dito : "J’ai vécu comme une femme libre. Mais cela veut dire que j’ai eu des aventures, des amants, que je peux partir quand j’en ai envie..."
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Sobre imagens de Les Amants (1958), realizado por Louis Malle, o sexteto de cordas de Brahms com Pablo Casals e Isaac Stern
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Jeanne Moreau diz "Cet amour" de Jacques Prévert
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E, por favor, tenham em atenção que o post abaixo trata de gente pouco recomendável, embora muito divertida. Perigosamente divertida. Ou talvez, antes, divertidamente perigosos, nem sei.
Elas querem a lealdade dos indulgentes, o vigor dos apaixonados e a canção dos poetas. Quem tiver o privilégio de encontrar uma remanescente de carne e osso, que não hesite em denunciá-la. Sem dúvida, les femmes fatales preferem ser cultuadas de perto e por muitos, simultaneamente.
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Algo no jeito de sorrir, de ousar acender o cigarro encarando o companheiro e pedir que ele feche o zíper da blusa, sei lá, uma personalidade surpreendente, formada de pequenos e elegantes gestos e geradora de grande excitação. Uma coisa é certa: essa especie de fêmea é sutil e deve ser cortejada nos detalhes.
Pode ser a nuca exposta pelo coque despretensioso, consequência do mau humor do dia, que dispensa um penteado mais elaborado; e ainda o sinuoso movimento do quadril, insistindo em pelear com o vestido ingênuo, de corte reto, enquanto caminha; ou simplesmente uma voz doce e meio infantil, que entoa palavras inteligentes, com a delicadeza de quem está cantando.
A verdade é que não há como resistir à femme fatale, uma realeza, adorada por machos que abdicaram em disputar o poder entre si, para simplesmente aproveitar o melhor das suas existências, compartilhando momentos com ela.Nesse mundo de completa entrega masculina, crianças são bem-vindas, vícios são consumados sem culpa, a transa é frequente e o campo intelectual filosófico, verdejante.
Qual seria então a essência desse ser tão provocador? A fêmea fatal se alimenta da sedução e é ávida por liberdade. A sua identidade não é ser apenas sexual, mas sensorial. Quer provar de tudo, de todo jeito e abundantemente. Quer fazer isso em comunhão. Para tanto, não abre mão de cúmplices, sempre seus parceiros apaixonados.
A história registra um elenco considerável de mulheres dessa estirpe. Temos desde Cleópatra, soberana do Egito - por quem o general romano Marco Antonio desistiu de um império e foi convencido a doar a vida - à intelectual russa Lou Andreas Salomé (1861 -1937), que reuniu em sua alcova, ao mesmo tempo e outrora, o marido e escritor francês Paul Rée, além de Freud e Nietzsche, num quadrilátero amoroso insuspeitável.
Tamanho poder não torna mulheres fatais arrogantes e soberbas, o que presumivelmente ocorreria a alguém ciente da sua grande capacidade de deslumbrar. É da natureza da fêmea fatal atrair, mas se é insaciável na persuasão, também é generosa no amor.
Infelizmente, as fêmeas fatais, se não foram extintas, hoje operam em petit comité.
Quem tiver o privilégio de encontrar uma remanescente de carne e osso por aí, que não hesite em denunciá-la. Sem dúvida, “les femmes fatales” preferem ser cultuadas de perto e por vários, simultaneamente. Se ninguém quer perder essa chance, o mundo também agradece.
Este domingo, depois de caminhada na praia, almoço até às tantas e uns quantos afazeres, regressei a casa por volta das seis da tarde. Estava com uma moleza em cima de mim que não vos digo nada. Mas, antes de poder descansar, ainda tive que arrumar roupa, arranjar umas calças, fazer sopa, preparar o jantar de hoje já a contar com o de amanhã, telefonar à minha mãe, separar umas compras que tinha feito já com presentes para mais uma leva de aniversários que aí vem e sei lá que mais. A essa hora já tudo indicava que os gregos tinham levantado bem alto a cabeça para afirmarem perante uma chusma de credores, avençados e vencidos da vida o seu orgulho e a sua dignidade. Mas eram os primeiros resultados, ainda faltavam as grandes províncias. Esperei para ver.
Não sei que horas seriam quando me deitei no sofá para ler um pequeno livro. Antes ainda liguei à minha filha e estivemos na palheta como é nosso costume. Mas eu já bocejava por todo o lado. Talvez já passasse das vinte, não sei. Claro está que, mal comecei a ler, adormeci. Não dormi muito, contudo.
Quando acordei já era claro que os gregos, uma vez mais, mandaram que os que os querem vergar se fossem catar.
Enquanto jantava uma refeição ligeira, na televisão, Varoufakis* -- numa tshirt cinzenta clara, físico vigoroso, belos braços ao léu, semblante grave de conquistador que sabe que nada mais melancólico do que uma derrota no campo de batalha do que uma vitória -- falava com ar convincente mas, ao mesmo tempo, com ar de quem já perdeu o gozo iniciático destes enganadores avanços.
Claro está que não percebi uma única palavra do que ele disse e o tradutor pouco ajudou. Mas percebi que estava orgulhoso mas certo de que o caminho que o espera está pejado de feras, de abutres, de minas, de pragas de toda a espécie. Mas tem com ele a legitimidade do voto do povo. E antes dele está Tsipras que tudo arriscou - e que ganhou o respeito dos outros.
Voltei então ao meu pequeno livro e fui lendo, ávida. Boa escrita, boa história. Gosto quando o enredo está suportado por uma escrita fluente e cuidada e por uma tradução inteligente.
O livro é A História Imortal de Isak Dinesen (de facto, Karen Blixen, 1885 - 1962) com tradução de José Miguel Silva, numa edição de bolso da Relógio d'Água.
Um homem de negócios ambicioso, rude, sem pruridos nenhuns em deixar na ruína quem lhe fizesse frente - uma vida inteira assim, ao serviço da conquista do sucesso no negócio. Solitário, inculto, insaciável nos negócios.
Quando, já velho, fica incapaz de sair de casa, um casarão imenso, passa a receber a visita de um dos seus contabilistas de confiança, um homem sem ambição, um solitário também, que a única coisa que deseja na vida é poder chegar a casa, em segurança, e poder estar sozinho, a desfrutar dessa segurança. A vida que levou até então explica isso.
Durante dias e noites o contabilista lê os livros de contabilidade ao velho patrão. Recua no tempo, livros de contas com anos e anos. Até que o velho lhe pede que lhe leia livros sem ser de contas. Nenhum dos dois sabe que livros sejam esses.
E aí começa verdadeiramente a desenrolar-se a história. Não a vou contar para não estragar a graça.
[Em tempos, alguém (que, pelo estilo, logo reconheci) escreveu um comentário anónimo dizendo que eu me portava como uma nova-rica, exibindo livros como quem exibe euros. Tive pena que alguém pensasse isso pois nunca na vida me passou pela cabeça que, falando dos meus livros, alguém pudesse pensar que eu estava a exibir o dinheiro gasto e não apenas a divulgar os livros que despertam o meu interesse. Nunca sabemos quem nos lê e, de facto, pode acontecer que haja quem não nos veja como nós nos vemos a nós próprios.
Por isso, em especial a essa pessoa, informo que estou a falar de um livro de 5 euros que a mim, por ter cartão de cliente, me ficou por 4,5.
Os livros estão caros, sim, mas ainda os há a bom preço. Além disso, não sou exibicionista e, apesar de não ser pobre, longe disso, também não me considero rica.
Ainda há bocado cortei o cabelo a mim própria e, com este assunto em mente, pensei: com o que agora poupei, já posso comprar mais um livro.
Enfim, não interessa. Adiante]
Mas depois interrompi a leitura do livro para ouvir o que as virgens assarapantadas, os papagaios e algumas pessoas inteligentes diziam na televisão. Não cheguei a conclusão nenhuma. Acho que as coisas não vão ser fáceis mas é bom que muita gente ponha os olhos na lição de cidadania que os gregos deram ao mundo.
Governar é governar para o bem dos cidadãos e do seu futuro. Podem dar-se tropeções, podem cometer-se erros mas o mais importante é que se tenha sempre isso em mente: as pessoas, a vontade das pessoas.
Fariam bem os europeus em geral se percebessem que o que estão a fazer -- ao exigir austeridade, esforços infindáveis e sangue -- é um jogo de soma nula, que mais valia que se unissem para o bem de todos e não apenas para o que pensam ser o bem do seu próprio umbigo.
Era bom que, de repente, acontecesse um milagre e emergisse um ser lúcido, inteligente, bem intencionado, honesto, generosos, com visão - e desse um murro na mesa, pondo nos eixos do desenvolvimento e da verdadeira democracia esta Europa (que, agora, mais parece a casa da mãe Joana, uma bagunça, um bordel, um albergue de entra e sai, uma chafarica sem rei nem roque).
In Ilisia, a middle-class neighborhood, the poet Titos Patrikios, 87, voted at a school that was surrounded by pink and white oleander.
Mr. Patrikios seemed to embody much of his country’s modern history. As a teenager during World War II, he took part in the resistance against the German occupation. After the civil war, he was imprisoned for his leftist sympathies. And after the military seized power in 1967, he was forced into exile.
Mr. Patrikios said he was voting yes, but urged everyone to vote their own consciences. “I vote yes because the real dilemma is inside or outside of Europe,” Mr. Patrikios said. “In Europe, things are difficult sometimes, they are critical. But outside Europe is the catastrophe. So we have to choose between catastrophe and difficult.”
He added that the most important thing was to avoid pitting Greeks against Greeks, but that he was not too worried: “I suffer from one illness and that is incurable optimism.”
Athanasis Chryssochoidis, 76, a pensioner and a friend of Mr. Papantoniou’s, said Greece was being made an example in case other Southern European nations tried to challenge the dictates of the eurozone.
“Tsipras and all of them want to negotiate,” Mr. Chryssochoidis said. “But as soon as they said yes to something, the Europeans put up more demands. The issue is that Syriza is a left party and they don’t want such mischief.”
“We’ve reached our limit,” Mr. Chryssochoidis said. “This is not a society of beggars.”
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Já agora, voltando à História Imortal, um pequeno excerto do filme.
The Immortal Story de Orson Welles, numa adaptação do autor dinamarquês Isak Dinesen (= Karen Blixen), com Jeanne Moreau
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* Escrevi o texto no domingo à noite. Esta segunda, de manhã, soube que Varoufakis tinha escrito no seu blog: Minister No More!
(...) Soon after the announcement of the referendum results, I was made aware of a certain preference by some Eurogroup participants, and assorted ‘partners’, for my… ‘absence’ from its meetings; an idea that the Prime Minister judged to be potentially helpful to him in reaching an agreement. For this reason I am leaving the Ministry of Finance today. (...)
Não fiquei especialmente admirada com a demissão de Varoufakis, confesso.
Qualquer coisa na expressão dele me pareceu conter o orgulho melancólico da despedida. A história grega, agora como sempre, é feita de momentos de tragédia (tragédia grande, pequena, definitiva, provisória, e tantas vezes servida em conjunto com actos de paixão, polvilhada com momentos de desespero, de orgulho, de loucura ou de transcendência).
A ver, pois, quais os próximos actos, quais os próximos actores e, sobretudo, se algum se destaca na resolução do grande imbróglio que está armado nesta caldeirada europeia de que ninguém parece conhecer a receita ou ter mão para o tempero.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma excelente semana a começar já esta segunda-feira.
Passa das duas da manhã, chove vertiginosamente, a chuva enche de brilhos a vista nocturna a partir da minha janela, mas - vendo bem - as luzes que avisto são as luzes da sala misturadas com as da cidade adormecida. Mundos misturados. Estou aqui sozinha na minha sala, escolho as imagens e as palavras que vos vou mostrar e o meu pensamento mistura-se com o pensamento de quem escreveu as palavras que estou a ouvir..
Estas são as horas mais íntimas, as horas cheias de noite, silêncio, as horas em que as ideias e as palavras voam sem obstáculos, sem lógica, estas são as horas de todas as liberdades.
Não tenho motivo nem pretensão, nem explicação. Nem propósito. Nem malícia ou pudor. Nada.
Só tenho palavras soltas, perdidas. Pura vagabundagem nocturna.
E, depois, as palavras de amor, o som das palavras, palavras caindo como água numa janela iluminada. Os pássaros ausentes, os sorrisos adormecidos, os barcos recolhidos, apenas silêncio. E eu, aqui, delirando numa sala embalada pela chuva forte na janela, o rio enegrecido, o farol sem luz, a cidade longínqua, dormente. E eu aqui.
Chamaram-me Artemes. Artemisa. Escreveu-me o poeta poemas de amor em que eu era Artemes. Deusa eu, inacessível.
Natália também escreveu sobre ela, assim.
Quando a lua se envolve em túnica ligeira
e um alado segredo no ar fragrante ondeia,
de Artemisa é a noite virgem e alta. Suave.
serenamente cheia de intacta novidade.
...
Alta e branca Artemisa entra no mar e desata
a trança. Boiam na água seus cabelos de prata;
e a sombra num odor branco por jasmins a brotar
escorre para os brilhos silenciosos do mar.
Mergulho, pois, na noite, nesta noite que escorre doida de chuva. O silêncio que me envolve escorre na janela. E uma pequena luz aqui ao meu lado, companhia suave, um calor muito doce. E vocês aí.
E eu, meus Caros Leitores - nesta noite sonhada e leve, cheia de chuva, a alma lavada, as flores esmagadas que perfumam o ar que respiro - penso em vós, aí desse lado sem que eu vos possa ver os olhos ou sentir o calor das vossas mãos. E eu aqui, secreta, nocturna, escrevendo-vos palavras soltas, sem tino ou preceito, tão perto de vós, quase vos tocando com a minha respiração, com os meus dedos vadios que escrevem palavras que voam sem dono, que vão sair daqui voando até vós.
*
As fotografias a preto e branco são de Jeanloup Sieff.
O poema de Jacques Prévert Cet Amour é dito por Jeanne Moreau.
O poema Pour Toi mon amour, também de Jacques Prévert, é dito por Gilles-Claude Thériault, ouvindo-se Chopin interpretado por John Michel, violoncelista, e Lisa Bergman, pianista.
*
E penso em vós, agora, para vos desejar, meus Caros leitores, um domingo muito bom.
Saúde, afecto e alguma loucura é o que hoje vos desejo.