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quinta-feira, junho 12, 2025

Neste nosso tempo em que os cidadãos regrediram à subtil designação de seguidores

 

Até não há muito -- talvez até antes de haver uma concorrência desmedida entre os canais de televisão, nomeadamente os de cabo que têm que manter as emissões em contínuo e deitam a mão a tudo o que é gato-sapato, ou até ao advento das redes sociais que vieram dar a voz a tudo e a todos por mais ignorantes e estúpidos que sejam -- só era dada oportunidade de se pronunciar em público a quem reunia um mínimo de características positivas que os fizessem distinguir do comum dos mortais. Tinha que se ser gente de cultura, com alguma coisa a acrescentar, para se poder chegar a um púlpito e falar para as massas.

Agora não. Veja-se Marcelo que, num dos seus momentos de deriva populista, chamou a discursar no 10 de Junho o João Miguel Tavares. Anedótico. E tal como a Assembleia da República é agora lugar em que um bando de grunhos tem assento, também as televisões se enxameiam com gente desqualificada. Vejam-se os Big Brothers desta vida, os programas de comentário do 'social' e muitos outros. E veja-se a cambada que invade os youtubes. 

Quando os meus netos cá estão, quando se póem a ver televisão, o que eles gostam de ver são youtubers ordinários a comentarem jogos ou parvoíces, a dizerem toda a espécie de disparates. Por mais que se tente impedi-los é por isso que eles se sentem atraídos. E imagino que os tiktoks desta vida estejam também pejados de porcarias idênticas. A mim, no instagram, não me aparece disso porque o algoritmo percebe que gosto de outras coisas e não me mostra grunhices mas, fosse eu de me interessar por maledicência, populices, racismos ou outras desconformidades e, certamente, seria alimentada com milhões de coisas dessas.

Não sei como se poderá parar estas enxurradas de desinformação, de superficialidade, de ordinarice, de aberração. Faz-me lembrar aquelas praias ultra-poluídas, como algumas dos países mais pobres de África, uma desgraça sem limite, as águas carregadas de lixo, as praias inundadas de detritos de toda a espécie e feitio, as pessoas, como animais, a esgravatar no meio da porcaria. Assim a comunicação nos dias de hoje. Lixo, lixo, lixo. E meio mundo a foçar no meio dessa imundície.

As instituições democráticas acabam por soçobrar perante a força da avalancha. Veja-se o que acontece com estes grupos ultra-nacionalistas, gente com aspecto troglodita, gente que nem sabe de que fala, sem conhecimentos de história, certamente gente com alguma perturbação mental, talvez traumas de infância, talvez gente mal-amada, gente que odeia os outros, gente que parece que tem prazer em fazer mal a pessoas indefesas, gente que odeia a decência, a democracia, a cultura, a inclusão, gente incapaz de gestos de bondade, de generosidade. E, no entanto, por aí andam e, estranhamente, conseguem que haja outros tantos que os apoiem. E ouvi que os serviços secretos sabem da existência destes grupos de gente má, de gente que incita e pratica a violência, e, pelos vistos, nada faz. Ouvi que há países em que estes grupos são proibidos. E acho bem. Mas não deve ser possível controlar verdadeiramente a sua existência pois este nosso mundo dispõe de alçapões e labirintos para toda a gente que gosta de se mover no mundo das trevas. A dark web, os chats e outros corredores sombrios permitem a movimentação desta gente maldosa que, em vez de se tratar, anda a espalhar o mal.

Ouço dizer que o populismo, o racismo, a xenofobia, o ultra-nacionalismo e coisas que tais se combatem com uma informação correcta, com educação, com pedagogia. Ajudará mas é lirismo pensar que isso é suficiente. Meio mundo não frequenta a aprendizagem rigorosa, não frequenta o conhecimento, não frequenta a comunicação social séria, não frequenta o mundo dos livros, não frequenta os espaços em que as pessoas falam sobre assuntos sérios e falam com vagar. 

Por isso, por muito que se queira educar os ignorantes, a pedagogia não chega até eles: uns porque trabalham e chegam tarde e cansados a casa, outros porque se desabituaram de ponderar, outros, os mais jovens, porque a realidade das redes sociais, dos whatsapps e dos youtubes é a única que conhecem.

E, no entanto, eis que, no meio disto, surge uma mulher que, vestida de branco, com voz pausada e serena, diz palavras sábias, límpidas, radiosas, inteligentes.

No dia 10 não ouvi o discurso de Lídia Jorge mas mão amiga fez-mo chegar. E, embora esteja a ser amplamente divulgado, faço questão de tê-lo também aqui. Uma maravilha. As escolas deveriam divulgar amplamente estas palavras. As televisões deveriam passá-las de vez em quando. De alguns excertos deveriam ser feitos cartazes para espalhar por todas as terras. 

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico.

Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto.

Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra.

A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.

O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade anfitriã em 1996.

Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.

O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.

É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.

A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.

A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.

Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu.

Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.

Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.

O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.

Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.

O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois de morto.

Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.

Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.

Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.

Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos em que o próprio viveu.

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.

Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.

E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas.

Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos do dia a dia.

Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.

Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque.

Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência.

Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos”.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.

Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.

No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.

Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.

Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço.

Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque.

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.

É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.

No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.

Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.

Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.

Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.

É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade.

É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.

O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade.

E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso.

Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.

Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos e por quem.

Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante D. Henrique.

Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.

Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.

Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui, no dia de hoje.

Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos.

Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.

Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.

É uma luta nossa, contemporânea.

Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.

A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.

O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém responde: vimos da terra.

Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.

Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos.

O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.

Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.

Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.

A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial.

Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.

Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.

Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos.

Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.

A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.

Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.

Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.

Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

 

[Discurso de Lídia Jorge. Lagos, 10.Junho.2025] 

sexta-feira, julho 21, 2023

Uma questão de equilíbrio

 

Dia preenchido e bom mas com uma componente triste. 

Deste vez resolvemos encontrar uma solução para não estarmos dependentes dele e ele de nós. A experiência é de curta duração. Pesquisámos, fomos ver, e, para dizer a verdade, a única solução que nos agradou minimamente estava esgotadíssima. Esta foi a segunda escolha. Grande parte das outras vive, quase de certeza, no mais puro amadorismo (e, antecipo, no gostoso mundo paralelo em que não há facturas, não há ivas, não há irs, nadinha, ou seja, o glorioso muito da economia paralela). Alguém que tem um bocado de terreno, arranja umas coisas, alguém que tome conta e está feito, um hotel para cães.

Até fomos dar com uma espécie de Zoo privado, uma coisa que me pareceu inimaginável, desolada, para não dizer sinistra, com camelos, lamas, póneis, cabras, gansos e tudo o que se possa imaginar. E, num bocado, umas quantas jaulas que funcionam como 'hotel para pets'.

Outro, com umas instalações fantásticas, quase parecia uma aeronave asséptica e, na zona de 'hotel', umas jaulas, sobrepostas, ínfimas. Tudo limpo, imaculado. E os animais ali enjaulados.

Este, que escolhemos, está associado a uma clínica veterinária e, do mal o menos, pareceu-nos razoável.

E sabemos que temos que fazer este teste pois não podemos fazer com o ano passado em que o trouxemos para o Algarve e que foi cansativo e stressante para ele e para nós. Mas dói-me a alma deixá-lo, sendo ele tão apegado a nós e nós a ele. Aliás, quando estávamos em casa a preparar as coisas (levámos a cama dele, onde ele já não dorme há um ano pois anda pela casa e escolhe onde quer dormir, ultimamente junto a um cortinado e a uma janela no andar de cima, e levámos os dois brinquedos preferidos dele) já ele devia estar a desconfiar que não vinha dali boa coisa. Deitou-se no corredor, de barriga para baixo, o queixo encostado ao chão, ar infeliz, impotente.

Quando o deixámos lá, tive vontade de me abraçar a ele, arrependida da maldade. Mas disfarcei, disse-lhe só: 'Os donos já vêm, está bem?'. Mas só me apetecia arrepiar caminho. E chorar. Custa-me imenso fazer mal a um ser indefeso. A única coisa que me faz aceitar melhor é que penso que, às tantas, aceita bem, habitua-se, e, de resto, é coisa ultra breve. E, se correr bem, habituar-nos-emos a isso e poderemos ter mais liberdade.

É tudo uma questão de encontrarmos o ponto de equilíbrio.

Tirando isso, está tudo bem.

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Uma terra pode ser visitada com foco nas suas belezas naturais. Ou na arte sacra. Ou na gastronomia. Ou na arquitectura. Ou no comércio. Ou... Ou na arte de rua, nomeadamente nos graffitis. A fotografia lá de cima mostra uma porta pintada, numa rua, numa cidade. Acho-a uma beleza.

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E, porque de um correcto balanceamento e de tentar encontrar o ponto de equilíbrio, aqui partilho um vídeo Chanel

The J12 Series. Chapter 2: A Balancing Act – CHANEL Watches



terça-feira, setembro 10, 2019

Onde estará o meu amor?
[Há equações que ajudam a encontrar o par ideal?]






Ia falar no que fiz ao longo do dia mas tenho que me interromper: não fiz nada que valha a pena registar. Coisas simples num dia descansado. Também tinha em mente falar numas pessoas um bocado estranhas que estavam em mesas perto da nossa, ao almoço, quando saímos para fazer umas compras para uns arranjos. Mas também não vou falar. Pelo menos, hoje.

Também tinha pensado falar num livro e talvez transcrever um bocadinho. Comecei a ler a Menina a Caminho e gostei e até o fotografei não tanto por ele mas pela cadeira em que eu estava, ao sol brando e fresco da tarde. Mas também não vou falar hoje disso. 


Vou antes falar de casais e amores. Ou não isso mas qualquer coisa à volta disso. Tinha aqui as fotografias dos casais que fiz no Algarve enquanto, invisível, observava os casais que passeavam rente à água. Só fotografei os que eram casais a sério, de coração -- e é muito evidente quando o são. No entanto, creio que apenas casais de verdade (ou perto disso) passeiam na areia, rente à água. Casais que não são de verdade não se dão ao trabalho de andar de pés na areia ou na água, ao sol, conversando, partilhando o momento -- acharão que é desconfortável ou que têm mais que fazer.

Claro que também apenas mostro aqueles que consegui apanhar sem que os rostos sejam visíveis. E escolho, de entre os muitos que captei, aqueles cujo afecto perdura apesar dos anos que passam. E é com muita ternura que o faço. Gosto de ver amores fortes, verdadeiros, em que o afecto é a cola que une os interesses que convergem, o reforço das afinidades que são evidentes.


Já publico posts destes há algum tempo pois gosto de registar as afinidades que são notórias entre casais de facto: é a forma como se vestem (ou despem), é a forma como andam, é o que visivelmente os une. Há ali uma convergência que é notória. E é essa convergência que mantém as relações. Não há relações de verdade -- relações que tragam felicidade aos membros dos casais, que sejam sustentáveis -- se não houver afinidades de gostos. Se um gosta de ler e o outro não, se um gosta de passear e o outro não, se um gosta de praia e outro não, etc, etc, dificilmente a relação pode ser gratificante, pelo menos se um deles for abdicando do que gosta para tentar colar-se aos gostos do outro ou se, para fazer o que gosta, tiver que o fazer sem o outro. 


E vem isto também a propósito de um artigo do The Guardian que, só pelo título, me fez logo tocar todas as campainhas. All you need is maths? The man using equations to find love. 

Se gostam de matemática, equações ou algoritmos, vejam como um matemático que ainda não encontrou o amor da sua vida resolveu pôr o seu conhecimento ao serviço de um desígnio muito meritório. Foi programando as suas condições de eleição de modo a ir eliminando opções, restringindo possibilidades, reduzindo o vasto leque de potencias namoradas de modo a passar de um número infinito para um número comportável. 


E, até se chegar a um certo ponto, a coisa é fácil. Por exemplo, se fosse eu a fazer, poderia ser assim:
Sendo hetero, a população 'alvo' seriam homens e aí eliminava logo um pouco mais de metade da população. Depois, já agora, se era para um romance a sério, que fossem homens livres (que para trapalhadas mais vale estar sossegada). Depois, preferencialmente, os que vivem ou trabalham nas minhas redondezas (que para amores à distância não valia a pena tanto trabalho). Depois, poderia acrescentar que, a nível de idade, poderiam ser até vinte a tal anos anos mais novos que eu e ir até dois anos mais velhos. Depois, excluiria algumas ocupações que são incompatíveis comigo e até poderia definir algumas preferenciais (porque pessoas que se trabalham em certas áreas serão pessoas que naturalmente terão, à partida, mais afinidades comigo, e haver afinidade de interesses é vital). Depois, poderia ir refinando a escolha: a nível de altura, deveriam ser altos, seguramente bem mais altos que eu, talvez entre vinte a trinta centímetros mais. E note-se que tudo isto são dados objectivos. Poderia ainda juntar alguns condimentos: que tivessem alguns hobbies que acho interessantes. Mais: que lessem mais do que x livros por ano e que nem tocassem em livros do tipo x, y e z.  Mais: que fossem morenos.
Até aqui, tudo critérios objectivos, de caras para tratar matematicamente. E, ultrapassados os filtos destes critérios simples, já estaria com um número razoável, limitado, de possíveis 'candidatos' que me poderiam interessar.

Claro que, não sendo legalmente possível cruzar dados das bases de dados dos cartões de cidadão, do recenseamento, das diversas redes sociais, etc (que isso, aí, seria canja), se teria que passar para a obtenção directa destes dados através de um questionário disponibilizado por uma aplicação. Ai a base de partida nunca seria  'toda a gente' mas, apenas, os que se inscrevessem. De resto, penso que seja este o algoritmo do Tinder ou outras plataformas de acasalamento. 

Uma vez tendo posto de parte a grande maioria e obtido um leque restrito e razoável de candidatos, o passo seguinte teria que ser presencial. Entrevistas. Uma conversa tête a tête é fundamental. Não sei se é a isso que se chama a prova do algodão mas é seguramente a prova dos sentidos: a audição, a visão, o olfacto. Não falo em tacto e sabor porque, enfim, numa primeira entrevista não se pede tanto. O sexto sentido também é fundamental. A intuição deve ser levada muito em linha de conta. A primeira impressão é determinante. Se a primeira impressão não é grande coisa, então, é para esquecer.


Mas, então, no meu caso seria assim:
Homens que falassem pelos cotovelos e, pior, que falassem sobretudo deles próprios, seriam banidos de imediato, sem apelo nem agravo. Vermelho directo. São potenciais narcisistas. Distância. Depois os que pretendessem mostrar a sua sapiência e que revelassem muitas certezas: vermelho directo. São uns chatos de primeira. Não se aguentam. Depois os que não tivessem maneiras, que começassem a comer antes de mim, ou que não soubessem falar ou que falassem com presunção do que não sabem, dizendo disparates sem ponta por onde se pegue, ou que revelassem ser muito limitados, não conseguindo aguentar-se na conversa com um tema fora da sua zona de conforto: vermelho. Não é possível. Não se pode viver bem com alguém que nos cause vergonha alheia ou não consiga acompanhar-nos. Depois os que revelassem não ter sentido de humor, que não me desconcertassem com malícia inteligente ou com insólita e inesperada irreverência: vermelho. A vida é curta demais para ser desperdiçada para quem não alegra a nossa existência. Depois os que viessem a cheirar muito a perfume, ainda por cima a perfume vulgar: vermelho. Impossível estar com alguém que impõe o seu cheiro ou que nos corta a vontade de lhe tocar pois tememos que nos deixe a tresandar ao seu perfume, especialmente se vulgar. Detestável.

E, aí, presumo que, no fim, a lista de possíveis candidatos estaria restringida a uns dois ou três. 

Claro que, a partir de então, para a selecção final, a coisa fiaria mais fino. No meu caso, para começar, o eleito teria forçosamente que saber dizer alguns poemas by heart.
E o resto não digo aqui senão qualquer dia ainda me aparece algum jeitoso à porta a dizer, todo lampeiro, que passou por todos os crivos e que vem apresentar-se ao serviço. E isto não é assim, sou eu que escolho, ora essa. De resto, até ver, a escolha está feita.

[Claro que se algum dos que aqui aparece, incluindo as gaivotas, se reconhecer e não quiser cá estar, bastará que mo diga que eu logo retirarei a fotografia]

E a si que aí está desse lado desejo um dia feliz. 

E desejo também que tenha a sorte de ter ao seu lado aquele ou aquela que, de facto, faz a sua verdadeira felicidade. E se não tiver mas gostava de ter, então, não desista e siga mas é o conselho da mãe de Drake (citado no artigo acima referido) que on seeing his formula, she told him he was being ridiculous, and “to go out and meet people”. Nem mais.

sábado, setembro 07, 2019

Que não se pense que é fácil porque não é
~~ e a prova está à vista




De regresso e já a casa quase virada do avesso com tropazinha miúda de pernoita. 

Preparámos as camas no lugar delas, o lugar do costume, mas, vá lá saber-se porquê, hoje não quiseram ficar ali. E, se um não quer, o outro também não, e, depois, o sono já é muito e a rabujice também e, portanto, nestas coisas é preciso a gente perceber que se não os podemos vencer o melhor mesmo é juntarmo-nos a eles e, vai daí, tudo alterado e o acampamento mudado de sítio. Uma festa, a quererem ajudar, o bebé o mais activo. Vamos ver como corre a coisa. 


O que vejo é que crescem a olhos vistos, qualquer dia já não cabem nas camas. Depois quiseram que contasse uma história. Invento, claro, mas, a cada passo, intervêm, questionam, fazem observações, apanham-me em contradições. Por vezes desato a rir, outras fico sem resposta.

Mas, enfim, estão a dormir, lindos.



De novo, percebo que deve ter havido outro debate, não sei se hoje, se ontem ou se em ambos os dias. Continuo por fora. Agora passei pelo Expresso da Meia-Noite e uns quantos comentadores respondem a perguntas do Mano Costa e do amigo Ferrão e nada do que dizem me interessa. Conversas ditas, reditas, deglutidas, regurgitadas, reprocessadas, recicladas. Nada de nada de novo. E é o que se sabe: todos concluem que não existe nada à direita do PS, zero, o PSD e o CDS estão a ir pelo ralo, não têm nada para oferecer, nem já sabem o que são. So what? Ok, isso já sabemos.

Ninguém tem uma ideia nova para se discutir? Uma visão inesperada? Uma seca. Um déjà-vu pegado.

E isto por cá.


Lá fora foi o ex-rottweiler Schäuble que descobriu a pólvora. Infelizmente tarde demais, depois de muitos estragos feitos. Diz o estúpido: Deregulating Financial Markets Was 'Stupidity,' e eu volto a pensar que sobre gente que comete reiteradamente erros crassos e que depois vêm de fininho, como se nada fosse com eles, reconhecer que o que fizeram foi uma estupidez, só se pode concluir que é gente estúpida. E pessoas que, contra todas as evidências, apoiaram toda a porcaria que os estúpidos fizeram, são outras que tais, umas estúpidas. Ou seja, sendo que toda a política de Passos Coelho (e Portas!) -- ou seja, do PSD e CDS, as so-called direitas reunidas & encostadas -- foi seguidismo puro e duro da estúpida linha Schäuble, então o que dizer dos estúpidos que a aplicaram e dos estúpidos que bateram palminhas?
São os que andam agora, às rodas à volta do rabo, a ver onde se acoitar? E a equacionar se devem manter-se junto a Rio ou a Cristas ou se, pelo contrário, devem assobiar para o lado e, empolgadamente, ir apoiar o BE? Não sei, apenas pergunto.

Coisas tristes de tão parvas. A natureza humana tem o seu lado mau, imprestável.

E o que posso dizer é que de tudo o que vejo, no meu olhar a vol d'oiseau, a única coisa que me desperta atenção é o que se relaciona com as palhaçadas dos maiores palhaços da actualidade. Quando se diz que a ficção, por vezes, ultrapassa a realidade nunca se pensa que a ultrapassagem pode ser tão aparatosa.  Um Boris a fazer discursos que não passam de meras patacoadas, sem eira nem beira, ou com tiradas parvas, um Trump a alterar mapas para justificar tweets parvos, Bolsonaro com comportamentos abaixo de anta -- tudo abaixo de mau, tudo inqualificável.


E eu, talvez por andar com a cabeça de férias, não me apetece perder tempo com coisas dessas. Por isso, que me desculpem os que aqui vêm à procura de temáticas bem afiambradas porque, por estas bandas, agora, tudo o que é política me parece fruta do chão, nada de primeira água (nem de segunda, nem de terceira, nem de...). Portanto, se me permitem, dou meia volta e regresso às tépidas águas algarvias.

O tema hoje é mesmo paddle. Há quem passe sobre as águas, na maior limpeza. Direitinhos, passando sobre as ondas, aí vão eles, sem pestanejar. Parece coisa de nada, Coisa simples. Coisa que qualquer um se monta nela e upa-lá-lá, é só cavalgá-la -- mesmo de pé, na maior bravura, enfrentando corrida, ventania a vergastar a garupa do animal, seja o que for. 


Mas não é fácil, não. Não mesmo.

O jovem e garboso cavaleiro que aqui mostro a fazer a sua primeira tentativa é bem a prova de que montar o animal requer mais do que perícia, requer prática, muita prática.
Claro que, se ele vier, um dia, a ver-se aqui espero bem que ache graça -- mas, se não achar, é só dizer-me que eu, logo, logo, retiro as imagens. Contudo, como habitualmente, escolhi fotografias em que não dá para identificar o interveniente. Na volta é o o Clive Owen.


E, já agora, reparem bem na dificuldade acrescida: enquanto o valente tentava dominar a besta, as duas mulheres, a dele e a do amigo-instrutor, divertidamente gozavam o pratinho. Não se faz. Era muita pressão.


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E, por ora, só isto. Daqui a nada os meus galinhos e pintainhos estão a pé, como sempre cheios de fomeca. Portanto, hoje nem comento comentários nem me alongo mais.

Um belo sábado a todos. Saúde, alegria, sorte e trocos para os gastos -- pelo menos isso. 

sexta-feira, setembro 06, 2019

A encantadora de gaivotas





No outro dia, os meninos perguntavam: porque é que há pessoas que querem domesticar tigres? Ou hipopótamos? Não percebi a questão, 'Em circos?'. 'Não. Em geral', esclareceram. Não soube responder. Disse que achava que não domesticavam. Disseram que sim, que há pessoas muito ricas que gostam de domesticar animais da floresta mas não percebiam qual a razão. Falhei a explicação, não conheço essa realidade, não sei.

Falei-lhes, então, noutro género de pessoas, as que sabem lidar com animais problemáticos e referi-lhes, como exemplo, aquele filme tão bonito, 'O encantador de cavalos'. Contei-lhes.


Encanta-me a vocação das pessoas que sabem lidar com animais, que os percebem a ponto de conseguirem estender-lhes a sua empatia, entendendo os seus sentimentos, os seus sofrimentos. 


Tenho total respeito por animais. A sua inteligência e a sua sensibilidade parecem-me inegáveis e cativantes. Já falei aqui muitas vezes da minha cãzinha mais linda, uma boxer doce como mel que viveu connosco durante quase treze anos, companheira alegre e dedicada, uma querida cheia de quereres e que nos amava do mais fundo do seu grande coração. Tal o desgosto que tive com o seu fim e tanto me custou a sua decadência e sofrimento finais que nunca recuperei. Não voltei a admitir sequer a hipótese de voltar a ter um animal por me ter sido tão insuportável despedir-me dela. Não consigo falar dela mais do que isto porque ainda me comovo, é desgosto de que não me refiz, e não quero estar aqui a desfiar tristezas. 

Tenho um amigo que virou vegetariano e que de súbito se tornou quase fundamentalista: diz que isso se deve a que pensa nos animais vivos e não consegue pensar que têm que ser mortos e que os iria comer assim, mortos. E eu, quando ele diz isso, nem quero ouvir pois sei que, se me deixar contagiar por tão tétrico pensamento, também ficarei incomodada. Portanto, bloqueio o pensamento nesse particular e continuo airosamente a comer carne e peixe (embora cada vez mais peixe do que carne e cada vez mais legumes e saladas).


Não sei se todos os animais têm inteligências no sentido em que egoisticamente lhe atribuímos, a de interagirem connosco. Mas têm inteligência para sobreviver, para se adaptar, para escolherem parceiros, para escolherem onde viver, para se reproduzirem e tratarem das suas crias e isso sem danificar o planeta o que, por vezes, é mais do que alguns humanos fazem. Não tenho, por isso, pretensão a ter uma inteligência superior à deles.

Veja-se as gaivotas. No terraço do hotel onde se pode também tomar o pequeno-almoço, por vezes há gaivotas. O meu marido não quer ficar lá pois irrita-se um bocado com elas: 'Putas das gaivotas. Cagam tudo', diz ele. É verdade mas isso só revela a sua capacidade de adaptação. Saem do mar, sabem que ali há croissants, ovos escalfados, crepes, coisa fina que o seu bico aprecia. Em vez de apenas peixes, comem o que encontram. E, terminando o horário da refeição, abrem as suas grandes asas e procuram os barcos de pesca ou o rasto de pescado que os pescadores deixam no areal.


Outras vezes ficam apenas ali, ao sol, contemplando o mar, sentindo a aragem a sacudir o muito calor. Gosto de observá-las. Acho um bicho muito bonito. Naquelas coisas meio parvas de nos perguntarem que animal gostaríamos de ser, hesito muito entre o cavalo e a gaivota. Acho que há em ambos aquele sentido intrínseco de liberdade, de elegância, de visão a la longue.

Fiz estas fotografias salvo erro ontem ou antes de ontem. Em algumas fotografias a encantadora de gaivotas vê-se mais de perto, apanhei-a a andar cuidadosamente para não as espantar e sorrindo enquanto assim caminha entre elas. Não as publico apenas porque daria para se perceber melhor quem é do que nestas que aqui partilho convosco. Claro que se essa mulher aqui se vir e não quiser aqui ser vista bastará que mo diga que logo a retirarei. Mas acho tão bonita a sua imagem entre as gaivotas que arrisco.


Também eu me pus a andar entre elas. Devagar, invisível, silenciosa. As gaivotas indiferentes. Seres superiores. Deixei que me sobrevoassem, baixo, falei com elas, e elas, talvez por não quererem saber de aprender a minha linguagem, dançavam, corriam e falavam lá na voz delas.

Ou talvez me percebam, talvez transportem as minhas palavras até longe, até outras paragens, até onde alguém por elas espere. Nunca se sabe, O que sabemos é uma insignificante parte do que há para saber,

Por isso, quem me diz que eu, tal como a encantadora de gaivotas, não fui escutada e as minhas palavras levadas sobre as suas longas asas até lá, longe, a outros mares e rios, onde alguém em silêncio espera reencontrar a luz que um dia se evadiu do meu olhar, quem me diz que todas estas belas gaivotas que dançam ao sabor da sua própria liberdade não ensaiam novos passos, belos como eternos abraços, belos como palavras escondidas em segredos expostos à luz do sol. Quem me diz.


E desejo-lhe a si que aí está a receber estas minhas palavras uma bela sexta-feira. 
Be happy.

quinta-feira, setembro 05, 2019

A gata ensimesmada não foi à praia, não sabe os belos banhos que perdeu






Depois de ter escrito sobre mais uma big palhaçada em terras de Sua disfarçada e distraída Majestade e de ter estado a responder aos mais recentes comentários, já são quase duas da manhã. Não posso, pois, alongar-me. 

O dia hoje foi tranquilo. Junto à piscina, na esplanada, vimos o japonês. Estava sozinho, a ler. Tentei perceber que livro era. Na capa, só consegui ler Sartre. O outro, o que anda vestido de igual, só vimos ao pequeno almoço, tisnado como um tunisino, e também sozinho -- e incompreensivelmente de chapéu posto.

Ontem surpreendemo-nos com um jovem casal, tal a desproporção: ele deve medir quase dois metros, todo ele amplo. Ela deve medir metro e meio e toda ela uma bonequinha miudinha. De costas percebe-se que o volume dele deve ser o dobro do dela. A falar, ela vai o tempo todo de cabeça virada para o alto e ele quase como que a olhar para o chão. Pois bem, hoje ao pequeno almoço quase a mesma coisa mas em mais velhos. Ingleses. Aliás, não sei se já o escrevi: muitos ingleses, creio que mais do que é costume. Numa mesa, ao pequeno-almoço, um senhor muito inglês, muito grande, muito forte. Em frente, a sua senhora, muito pequenina, muito sorridente, talvez de origem indiana. Quando se levantaram, ele muito cortês, ela muito querida, era a mesma desproporção. A diferença estava, pois, na idade: estes andariam pelos quase setenta. Mas a forma afectuosa como se olhavam e falavam era a mesma do jovem casal.


Na mesa ao lado da nossa, uma coisa estranhíssima, daquelas em que o meu marido está a controlar-me o tempo todo não vá eu distrair-me e pôr-me a olhar, à descarada. Um homem que, diria eu, deve andar pelos cinquenta. Sotaque acentuado de irlandês. Alto, magro, cabelo um pouco comprido, ar boémio. Em frente uma miúda talvez tailandesa, pequenina, cabelo curtinho, calções muito curtos, tshirt justinha e curtinha. Quando ele se levantou para ir buscar chá para ambos, perguntei ao meu marido: 'Mas o que é isto, percebes? A miúda já terá dezoito? Não me parece'. O meu marido disse-me: 'Não sei, não dá para perceber, pode ser que tenha. Ou pode ser filha. O gajo tem ar de maluco'. Não me pareceu que fosse filha pois ele derretia-se com ela, ia buscar-lhe a comida, dizia graças, coisas que não me pareciam ter nada a ver com instinto paternal Eu diria que a miúda teria uns catorze ou quinze anos. Mas é daquelas situações em que não se sabe, não se percebe e em que, civilizadamente, achamos que não temos nada a ver. Espero bem que não.


Na praia fiz muitas fotografias e gostaria de divulgar algumas aqui, fazendo como que umas séries. Uma é a habitual série de casais, demonstrando aquela minha teoria de que os membros do casal, quando são casais de verdade, acabam por ter muitas afinidades na forma como andam, como se vestem, como se articulam entre si. Outra sobre gaivotas, em especial uma que fiz com gaivotas e uma mulher. Poderia chamar-lhe 'a encantadora de gaivotas'. O problema é que se vê o rosto. Se eu tivesse tido coragem, teria ido ter com ela e ter-lhe-ia pedido autorização para publicar as fotografias. Mas temo sempre que as pessoas se assustem, achem que sou pirada da cabeça. E outra série com a tentativa frustrada de um senhor caminhar sobre as águas. Tão engraçado. Neste caso penso que o apanhei algumas vezes de costas pelo que não dará para ser identificado.


No meio das fotografias, a melhor parte: 'fui ao banho' prolongada e repetidamente. A água boa, boa, boa, daquela de não se conseguir sair dela. Fui várias vezes. E estava aquela ondulação boa, que dá para andar feita pata, a flutuar sobre as ondinhas. Tão bom. E os mergulhos, tão bons. Gosto imenso de me meter debaixo de água.

Também consegui ter hoje o jacuzzi só para mim. O meu marido, já nem me lembro porquê, não quis. Ah, já sei, disse que estava muito quente, custa-lhe suportar aquela água fumegante e aquele vapor tão quente. Eu, bicho de água -- lá está --, não me faz diferença nenhuma. E dali fui para a piscina nadar. Com tanta caminhada e tanta natação até poderia ser que estivesse mais elegante. Infelizmente as tartes de alfarroba, de figo ou a torta de amêndoa estragam tudo. Também fui comer gelado àquela casa de gelados recomendada por quem sabe e foi do de figo, claro, figo e amêndoa. À maneira, portanto.

Ainda se eu fosse aplicada e fizesse exercício a sério... De manhã acompanho, mal e porcamente, o meu marido na caminhada na praia. Cerca de quatro ou cinco quilómetros. Só que, enquanto ele não pára e mantém o ritmo eu, volta e meia, sou forçada a parar para fotografar alguma coisa. Portanto, ele leva sempre avanço e acaba sempre por fazer um bocadão a mais que eu. Depois, quando volta para trás, apanha-me e lá vamos mais ou menos a par porque ele, no regresso, já não vai a tanta velocidade.


Hoje vi uma senhora, a da primeira fotografia, aquela lá em cima, que fazia flexões a sério, à beira de água. E dobrava-se que era uma limpeza. Uma energia e uma força e elasticidade que me deixaram a olhar para ela, cheia de pena de não ser assim.

Ou seja, para abreviar: quando regressar à torre de vidro, talvez leve um ligeiro tom de pêssego sobre a pele mas quilos a menos nem pensar.


E, por falar em tom de pêssego, vou ponderar se mostro também as fotografias que o meu fotógrafo particular me fez. Quando estou a ler ou a dormitar ou a olhar o mar, é ele que caça a caçadora. Parece-me difícil pois talvez sejam demasiado explícitas, tenho que avaliar. Mais depressa, se calhar, mostro algumas que fiz com ele, à sua revelia. Logo vejo.

Se calhar fico-me só por esta em que até parece que estou com bolhas na pele. Mas não, está um bocado marcada é de ter estado deitada antes de me pôr sentada, a tentar ler, e as manchinhas claras são entradas de luz através do chapéu que é de palha. Ou melhor, de papel entrançado. Embora, agora que reparo, tenha também uma mancha mais clara a meio, de protector solar (50!, que eu, com a minha pele, se não me cuido, apanho escaldões que até fervem). Por isso, ou estou à sombra, ou escondida debaixo do chapéu ou, então, espero que o sol comece a querer amansar, lá mais para o fim da tarde.

Nota: eu sou a da fotografia de cima, não esta felpuda e maldisposta branquelas aqui abaixo que, em vez de ir à praia, ficou à porta de uma loja a roer-se de inveja.


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Lá em cima, o extraordinário Kodi Lee volta a ter uma actuação emocionante e, ainda por cima, cantou uma canção que me enche as medidas, You are the reason. E a mãe, comovida, sempre presente, é outra coisa que me toca especialmente. Ser mãe é isto, estar presente em qualquer circunstância em que a gente sinta -- ou pressinta -- que um filho precisa de nós.

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E uma quinta-feira feliz para si que está aí desse lado.

quarta-feira, setembro 04, 2019

Esqueletos a fugirem do armário, bichos encarnados de seu nome 'esponjas' e outros cujo nome apenas mais abaixo desvendo, mãos cada vez mais quentes à medida que vão massajando, TPC por fazer e etc.
Isto, com vossa licença, em dia de 'cus dentais'







O senhor é magro, levemente encurvado, cabelo grisalho um pouco comprido. Tem um ar apagado. A mulher é grande, entroncada, usa saia relativamente curta, blusa justa de alças, não se importando por não disfarçar a gordura. Usa cabelo liso, pelo meio das costas. Não pinta o cabelo, usa-o grisalho. Fala muito com a filha. No primeiro dia que os vi, de longe, parecia-me que a filha estava vestida da cabeça aos pés, talvez com uma lycra bastamente colorida. Quando ela passou junto à minha mesa percebi que é tudo tatuagem. É grande como a mãe mas mais gorda. Usa o cabelo comprido e, a partir do meio, pintado de verde. Falam muito, riem. O pai é como se não estivesse ali: não fala, não ri. As tatuagens são de todas as cores. Hoje estavam na mesa em frente à minha e, para ir buscar mantimentos, levantou-se várias vezes (e que pratadas acaguladas ela trouxe de cada vez que lá foi, senhores), dando-me a possibilidade de observar a obra. Uma das pernas está cheias de gatos, alguns quase em tamanho natural. Na outra tem um cão sentado à frente de uma casota. Na parte de trás tem flores, cachos de flores, tudo às cores, e, pelo meio, dizeres diversos. Num dos braços, rotundo braço, tem um armário do qual fogem, como que espavoridos, vários esqueletos. Como usa saia ainda mais curta e justa que a mãe, reparei que apareciam vários raios como se a vagina estivesse a cuspir raios e coriscos.

E eu, vendo todo aquele pano de cena, só me ocorreu aquela minha dúvida metódica: um dia que resolva fazer dieta e que reduza a superfície de exposição, onde será que ela vai conseguir meter todos aqueles cães, gatos e esqueletos fugitivos?


Tirando isso, pouco mais tenho a reportar.

Só se for que, atrás de nós no passadiço de acesso à praia, iam duas beldades com pronúncia do norte. Olhei-as à sorrelfa e, intimamente, gabei o vestido comprido de uma e o belo cabelo que tinha e o ar elegante e moderno da outra. Poderia ser uma pintora e outra galerista. O pior foi o resto. Dizia uma: 'A ver se hoje ainda cá há daqueles bichos que ontem havia por todo o lado...'. 'Que bichos?', perguntou a outra, muito admirada. 'Umas esponjas encarnadas. Sei que não fazem mal mas não gosto.', esclareceu a que tinha ar de pintora. A outra, a beldade com ar sofisticado e modermo, disse: 'Ah, espero que não. No outro dia, para aqui, tiveram que fechar uma praia por causa de uns bichos que parece que faziam mal. Não me lembro do nome.'. Mas a artista estava ao corrente: 'Ah, isso não foi aqui, foi na Praia do Alemão. Aí, sim, é que havia uns bichos que faziam mal, tinham bactérias'. Nessa altura, o meu marido aproximou-se de mim e disse-me baixinho: 'Diz à senhora que aqueles bichos se chamam cagalhões'. 


E posso ainda acrescentar que fui levar a minha massagem das férias, full body, relaxante e terapêutica, com óleo quente. Perguntei à massagista se o óleo estava a ser aquecido e ela esclareceu que não, que as suas mãos é que aquecem cada vez mais à medida que dá a massagem. Uma coisa extraordinária. Diria que estava a pôr-me óleo quente. Não é que não fosse agradável, estava era a estranhar o óleo cada vez mais quente, isto num dia de verão. Seja como for: foi bom, soube-me bem. Uma hora inteirinha, cabeça incluída e pés, então, nem se fala.


Devo ainda dizer que os e-book parece que estão a cair em desuso já que a maioria da malta lê livros é de papel. À volta da piscina ou nas espreguiçadeiras do hotel quase toda a gente lê. Eu é que continuo sem atinar. Levei um livro que um colega me ofereceu, achando que eu ia gostar e, inclusivamente, arranjando maneira de mo fazer chegar antes de eu encetar este meu período de galdeirice já que, nessa altura, estava ele de férias. Pois bem. Impossível. Tentei. Li tresmalhadamente e, a cada página em que calhava, dava ideia que o tema nada tinha a ver com as anteriormente lidas. Pedi ao meu marido para o ler por mim e depois fazer-me um resumo. Nem respondeu. Mas tenho impressão que depois o folheou. Contudo, também deve ter ficado desconcertado porque, depois disso, me perguntou: 'O livro é sobre o quê?'. Um problema, isto. Não posso regressar sem ter lido o livro. O meu marido ri-se: 'Tens a mania que tu é que a sabes mas afinal a ti é que te passaram TPC para as férias...'. Pois. Só tenho coisas que me ralem.


E, entretanto, não tendo conseguido durante o dia dar à estampa os cus dentais de que ontem vos falei, é agora, aqui espetados no meio deste proseado preguiçoso, que vos dou a conhecer a colheita possível.

Só inseri aqui aqui aqueles cujos rostos não estão à vista (e devo confessar que, em minha opinião, o corpo mais bonito, incluindo o formoso rabo, é o de uma mulher que não consegui apanhar sem que se visse o seu igualmente belo rosto, razão pelo que aqui, infelizmente, não o quero divulgar).

Contudo, se a dona de algum, devidamente comprovando que o cu lhe pertence, não o quiser ver aqui, a destempero, é só dizer-me que o mesmo será recolhido logo que possível. Aqui não se querem funfuns e gaitinhas, aqui só se querem cus incógnitos ou, se cógnitos, então que sejam orgulhosos da sua própria existência, seja ela pujante seja ela simples e delicada.












E. por ora, é isto.

E vivam as mulheres. E vivam as mulheres que gostam dos seus corpos. E vivam o mar e o sol que dão vontade de andar com o corpo à solta. E viva a vida, caraças, viva mesmo a vida.

E uma bela quarta-feira a todos quantos aí estão desse lado.