O dia esteve quase invernoso: húmido, fresco, cinzento. A meio do dia constatei que não estava tão bem quanto desejava, e isso deixou-me um bocado desiludida. E uso a palavra desiludida em consciência: se calhar estava mesmo a querer iludir-me. Nada de transcendente mas, ainda assim, fiquei aborrecida. Sou tão optimista que desvalorizo até o que possivelmente tem mesmo que ser valorizado.
Portanto, com o dia soturno, com a minha disposição também cinzenta, para piorar só mesmo o suspense em torno de Noah. Sentia-me um pouco ansiosa com aquilo do menino.
Tenho total pavor do desaparecimento de uma criança. Desde que tive os meus filhos, na praia nunca conseguia estar um segundo descansada: sempre a olhar para um e para outro, com medo de perder algum de vista. Nas feiras ou em lugares com mais gente, sempre a querer que me dessem a mão, sempre com eles no meu radar. O que me tranquilizava era que o meu marido era igual, sempre absolutamente focado neles.
Com os meus netos, a preocupação é a quintuplicar. São muitos, mexem-se muito, difícil andar sempre a verificar: um, ouro, outro, outro, outra. E voltar ao princípio: um, outro, outro, outro, outra.
Não há descrição para o alívio: renasci. Perguntámos-lhe: mas não ouviste chamar por ti? Era pequenino, teria uns três anos, estava na boa, feliz da vida. Não ligou patavina.
Quando contámos, a minha filha ainda se riu: o miúdo mesmo ao pé de nós, provavelmente, sem perceber que desatino era aquele em que os avós estavam e nós, feitos totós, num desespero como se o miúdo não estivesse mesmo ali atrás.
Mais recentemente, apanhei um susto idêntico. O meu filho estava cá em casa. Os adultos conversavam e os miúdos brincavam. Corriam, brincavam às escondidas -- andavam à vontade. Até que os mais crescidos resolveram ir-se embora e tocaram a reunir. E, ao irem, reparámos que o portão que dá para a rua estava aberto. O comando é muito sensível e, sem darmos por isso, o portão abriu-se. Há quanto tempo o portão estava aberto não sabíamos. E aí demos por falta do mais novo.
Aflição, claro. Pânico, pânico. Todos a chamar por ele, dentro e fora de casa, todos a corremos por todo o lado, o meu filho já na estrada a gritar por ele, os irmãos, em especial o menino, a chorar, aflito, eu outra vez mais morta que viva, sem saber onde mais procurar. Na rua sem sinal dele, o meu filho já para a frente e para trás, já bem assustado.
Passado não sei quanto tempo ainda eu me sentia a tremer por dentro. Agora ando sempre com medo que o portão se abra. Aliás, passámos a ter mil cuidados com a porcaria do comando. Quando eles cá estão, é o meu marido que o usa e resguarda logo de seguida para evitar que algum toque ou queda ao chão leve a que o portão se abra sem que nós demos por isso.
Ou seja, por todos os motivos e mais uma data deles, a perspectiva do desaparecimento de uma criança é daqueles terrores em que não quero nem pensar.
Mas, depois, ao procurar se já havia notícia, vi a fotografia de Noah e pensei: está vivo. Pensei também que pensamentos assim são gratuitos, infundados. Mas, no meu íntimo, pensava que, apesar de não ter explicação para tão clara convicção, sentia que aquela criança estava viva e que seria, toda a sua vida, um bacano, alguém cheio de peripécias e histórias para contar. Vivo, pensava, está vivo.
Desconheço as circunstâncias do seu desaparecimento e do seu aparecimento. Mas fiquei muito contente quando, estando ao telefone com a minha filha, ela me disse que estava a ver, não sei onde, que o menino tinha aparecido. Senti aquele alívio solidário, como se fosse também eu a recuperar a tranquilidade de saber que a criança está de volta, viva e de boa saúde.
Claro que agora haverá que perceber o que aconteceu e se está bem. A vida no campo, em especial entre pessoas que vivem em comunhão com a natureza, não segue a mesma lógica de quem vive em meios em que os receios são constantes. Mas, enfim, o que houver a ser apurado, certamente sê-lo-á. Para já, o que importa é que Noah está vivo e junto aos seus. E essa é uma alegria que tem que ser festejada.
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Pinturas de Luis Rodriguez Noa ao som de Alice por Bernardo Sassetti
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Desejo-vos um dia feliz.
Saúde. Ânimo.
E ao valente Noah desejo uma vida longa e feliz