sábado, novembro 28, 2020

Ainda não me restabeleci da visão do pequeno pónei

 


Tenho acabado os meus dias muito tarde. Hoje acabei de jantar quase às onze da noite. Depois, quando aqui chego, ao sofá, dá-me o sono. Há dias que não consigo responder aos comentários. A ver se amanhã consigo. Tem coincidido isto com ter andado a levantar-me mais cedo. Pode parecer absurdo, estando eu em teletrabalho. Mas a verdade é que é isto mesmo. Reuniões, assuntos complicados, telefonemas. E outros afazeres de permeio. Há pouco, quando despertei, pensei que devia ir dormir e deixar o blog. Mas há este misto de vício, de dever e de parvoíce que me leva a abrir o computador e olhar a página em branco impelida pela vontade de escrever alguma coisa.

Não tenho conseguido responder aos comentários mas tenho lido. Eu sabia, e brinquei com isso, que ao dizer que nunca tinha conseguido ler nenhum livro nem do Mãe nem do M. Tavares, estava a expor-me à censura: se não leu, como pode dizer mal? 

Mas passa-se o seguinte. Sou velha, para cima de centenária. Na verdade, talvez até já bicentenária. Por isso, não sei quantos mais anos vou ainda viver mas intuo que menos do que os que já vivi. E, nesse sentido, tenho que ser criteriosa. Não posso gastar os preciosos anos que tenho pela frente a fazer sacrifícios, por exemplo lendo livros que me parecem arremedos de qualquer outra coisa que não de literatura. Podem ser palavras agrupadas em frases, podem ser tópicos a fazerem-se passar por tiradas, podem ser lugares comuns travestidos de profundidades, pode tudo vir enroupado e dar-se ares de coiso e tal. Não papo. Santa paciência. Não papo aquilo de que não gosto ou que não me convence. Só papo coisa pela qual sinta apetite ou que sei que me vai deixar de alma lavada. Ou tumultuada, tanto faz. 

E aqui volta a entrar aquela séria e legítima dúvida: mas se não leu, como pode dizer tais virulentas barbaridades? 

Explico. Quando se é velha e relha já não tem que se ver o filme do princípio ao fim para perceber de que é que a casa gasta. Ou isso ou a intuição, que é como o vinho do porto, cada vez mais apurada. Folheia-se e lê-se, abre-se mais à frente, lê-se, mais à frente, lê-se. E outra vez. E outra vez. E não há uma frase que cative, uma ideia que valha a pena, uma palavra que surpreenda. Nada. Fecha-se, vai ver-se outra coisa e regressa-se não vá ser infundado preconceito. De novo. Nada. Nada. Vulgaridades. Bonitinhos. Monotonias. Nada. E aí a gente extrapola. Não precisa comer a sopa toda para vir a saber que era uma seca, basta umas colheradas para perceber que vai ser uma seca, e escusa de passar por ela.

Depois abre-se outro, outro autor, e logo a página se ilumina. Ainda na quinta-feira, na Escriba (yes, APS, na Escriba) que prazer este de abrir um livro e não conseguir resistir-lhe. Uma frase, uma palavra, uma ironia dita de forma elegante, um piscar de olhos à inteligência, a beleza de uma toada que se antecipa. É a diferença entre ser literatura ou ser outra coisa qualquer. Se o tempo me escasseia para ler tudo o que me encanta, como desperdiçá-lo com aqueles que se ocupam a escrever 'outras coisas quaisquer'?

E, no entanto, ao ver como pessoas que considero gostam do que eu não gosto, sou forçada a reconhecer que nem os cem ou duzentos anos que já vivi me conseguem fazer perceber como é possível que, perante o mesmo objecto, haja leituras tão distintas. E chamo-lhe objecto como poderia dizer outra coisa qualquer, obra, por exemplo. Veja-se com as obras de arte: um quadro, uma escultura, um jardim. Onde eu me emociono, há quem ache incompreensível que alguém de bom senso se emocione perante coisa assim. Onde outros veneram a perfeição de um trabalho, eu passo ao lado, achando monótono. Não há verdades absolutas, essa é que é essa. 

Para além disso, gostava de contar que os meus vizinhos do lado, os da casa grande, se mudaram. Nunca vi a senhora. Soube que raramente saía de casa. Via o marido, ela nunca vi. A anterior proprietária desta minha casa disse-me que, em vários anos, apenas a viu duas vezes, e foi porque lá foi bater à porta aquando do desaparecimento do gato. Diz que era assombrosamente bonita. Tenho pena que se tenham mudado pelo piano. Gostava de estar no jardim ou em casa a ouvir tocar piano. Há umas semanas, estiveram lá uns brasileiros animados, faladores, brincalhões a fazer as arrumações e depois a mudança. Durante dias era uma conversa e uma risota pegada. A seguir, mal eles carregaram e levaram tudo, começaram a vir jardineiros, brasileiros também, limparam árvores, arbustos, cortaram a relva, desbastaram tudo. E antes todas as semanas lá iam dois jardineiros. Não sei como foi que fizeram tal limpeza num jardim já de si tão permanentemente tratado. E vieram empregadas das limpezas. Chegavam de manhã, três, falavam e riam e cantavam todo o dia. Janelas abertas, uma animação. Mais de uma semana de limpezas de manhã à noite. E antes, todas as semanas, também lá iam duas mulheres fazer a limpeza. Não sei também que limpezas foram aquelas a limpar uma casa que supostamente estava limpa. Esta sexta-feira de manhã mudança de registo, nem jardineiros nem limpezas. Mas ouvíamos vozes, movimentações, carros, portões. Saímos ao fim da tarde e apenas regressámos às dez e tal da noite. E, para nossa surpresa, não apenas estavam todas as portadas abertas com as luzes do terraço a toda a volta da casa acesas como, junto à porta, no alpendre, umas luzinhas  piscar, luzinhas de natal.  Não sei que fenómeno foi este. Portanto, já devo ter vizinhos novos.

Na casa do outro lado não há estores ou cortinados. Ou, se há, estão sempre abertos. Vejo tudo o que lá se passa, do lado da casa que dá para a minha. Como os dias estão curtos, acendem a luz ainda cedo e ainda melhor se vê. Parece que estou a ver um filme. No outro dia, estava eu numa mesa no terraço da minha casa que dá para esse lado da casa deles, estava a ter uma reunião e, mesmo sem querer, ia assistindo à jovem a apanhar o cabelo, prendia-o no alto da cabeça dando-lhe uma volta e segurando-o com um lápis, a ir à cozinha buscar uma caneca com qualquer coisa quente, via como ela a envolvia com as mãos como que para as aquecer. É uma coisa curiosa, isto. Lembro-me de andar a passear em Amsterdão e achar curioso o desprendimento das pessoas dentro de casa, com as janelas à altura das ruas, sem portadas  ou estores, sem cortinas, a ver-se tudo para dentro de casa e elas na maior descontração. Aqui também é assim, a gente anda pelas ruas e em algumas casas também se vê tudo lá para dentro.

E uma outra coisa. Hoje tive que ir, durante o dia, a um sítio longe daqui, onde antes nunca tinha ido. Nem sabia que existia. Demos com aquilo graças ao gps. Um lugar meio urbano, nem sei bem como descrever, com uns certos laivos de campo. Com muita estranheza lá fomos de rua em rua, ruas muito estreitas, nem sabíamos se eram de um ou dois ou nenhum sentido. Fui com o meu marido. Não me aventuraria a ir para o desconhecido sem companhia. Às tantas, sem saber se o gps nos estava a levar para lugares completamente errados, olho para o lado e tenho uma visão. No meio daquele casario meio desordenado, um burrinho. Exclamei: olha, um burrinho! O meu marido que estava a esforçar-se por caber na rua, olhou desinteressado e fez um ar arreliado: qual burro, não vez que é um pónei? E, então, ainda mais perplexa, reparei que sim, um pequeno pónei branco com uma grande franja loura, um rabiosque todo farfalhudo em louro platinado, um ser irreal, ali, na maior improbabilidade. O mundo é um lugar cheio de coisas imprevistas, inusitadas, incompreensíveis. Vim intrigada com aquilo. Se não fosse por me ficar tão fora de caminho e não ter tempo, teria lá voltado só para ver se ainda lá estava ou se tinha sido uma visão natalícia.

Bem. Comecei a escrever a dormir e agora é que estava a apetecer-me começar a escrever. Mas acho que não faz sentido, é muito tarde.

Mas vou partilhar um vídeo de que gostei muito e que vi antes de, há bocado, adormecer.

Redefine masculinity with this Cuban ballet dancer

Andy Sousa is a dancer from Cuba. By the age of 5 he knew he had a passion for movement so decided to pursue ballet. With all its vintage charm and exciting cultural pluralisms, the Caribbean island, however, still favors a type of hegemonic masculinity that indulges in machismo behaviors. Although he had the encouragement of his father, Sousa's adolescence was scarred by peers and relations who attempted to undermine his heterosexuality and masculinity through bullying...


As fotografias mostram construções das melhores The 2020 Architecture MasterPrize
Não têm nada a ver com nada mas apeteceu-me tê-las aqui. 
Gosto de arquitectura. É das artes mais completas e, como contém matemática e humanismo à mistura, ainda mais me interessa

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E tenham um belo sábado, apesar de todos os pesares, confinamentos, restrições à circulação e etc., ok?

2 comentários:

Miss Smile disse...

Até eu, que sou do tempo do Paleolítico Inferior, só leio o que me interessa e o que me serve. :)
Se o livro não me cativar ou seduzir, não leio ou reservo para data incerta. Daniel Pennac, no seu delicioso «Como um Romance», enumera os Dez Direitos Inalienáveis do Leitor, sendo que dois deles invocam o direito de não ler e o direito de não acabar um livro. Eu acrescentaria que os livros são como os amores. Há os que lemos avidamente, mas que esquecemos com a mesma rapidez com que nos apaixonamos, há os que merecem uma segunda leitura, há os que nos acompanham a vida inteira e há os outros, os que não nos dilatam as pupilas, que não arrancam suspiros e tremores, que só nos causam sono e bocejos. Assim, concordo que a vida é curta demais para ser preenchida com livros que não nos dão prazer.

Boas leituras, JM :)

Um Jeito Manso disse...

Olá Miss Smile,

Do Paleolítico Inferior, Miss...? Mas ainda muito bem conservada a julgar pela foto da Frida Kahlo... Gostei. Muita graça.

E gostei também do que aqui diz, de cada palavra. Tal e qual. Os livros, os amores... a gente por vezes não sabe explicar; mas é assim mesmo. E a gente deve dedicar-se, de corpo e alma, é ao que nos convoca e prende.

Boas leituras também. E um bom domingo, Miss Smile.