Tenho acabado os meus dias muito tarde. Hoje acabei de jantar quase às onze da noite. Depois, quando aqui chego, ao sofá, dá-me o sono. Há dias que não consigo responder aos comentários. A ver se amanhã consigo. Tem coincidido isto com ter andado a levantar-me mais cedo. Pode parecer absurdo, estando eu em teletrabalho. Mas a verdade é que é isto mesmo. Reuniões, assuntos complicados, telefonemas. E outros afazeres de permeio. Há pouco, quando despertei, pensei que devia ir dormir e deixar o blog. Mas há este misto de vício, de dever e de parvoíce que me leva a abrir o computador e olhar a página em branco impelida pela vontade de escrever alguma coisa.
Mas passa-se o seguinte. Sou velha, para cima de centenária. Na verdade, talvez até já bicentenária. Por isso, não sei quantos mais anos vou ainda viver mas intuo que menos do que os que já vivi. E, nesse sentido, tenho que ser criteriosa. Não posso gastar os preciosos anos que tenho pela frente a fazer sacrifícios, por exemplo lendo livros que me parecem arremedos de qualquer outra coisa que não de literatura. Podem ser palavras agrupadas em frases, podem ser tópicos a fazerem-se passar por tiradas, podem ser lugares comuns travestidos de profundidades, pode tudo vir enroupado e dar-se ares de coiso e tal. Não papo. Santa paciência. Não papo aquilo de que não gosto ou que não me convence. Só papo coisa pela qual sinta apetite ou que sei que me vai deixar de alma lavada. Ou tumultuada, tanto faz.
E aqui volta a entrar aquela séria e legítima dúvida: mas se não leu, como pode dizer tais virulentas barbaridades?
Depois abre-se outro, outro autor, e logo a página se ilumina. Ainda na quinta-feira, na Escriba (yes, APS, na Escriba) que prazer este de abrir um livro e não conseguir resistir-lhe. Uma frase, uma palavra, uma ironia dita de forma elegante, um piscar de olhos à inteligência, a beleza de uma toada que se antecipa. É a diferença entre ser literatura ou ser outra coisa qualquer. Se o tempo me escasseia para ler tudo o que me encanta, como desperdiçá-lo com aqueles que se ocupam a escrever 'outras coisas quaisquer'?
E, no entanto, ao ver como pessoas que considero gostam do que eu não gosto, sou forçada a reconhecer que nem os cem ou duzentos anos que já vivi me conseguem fazer perceber como é possível que, perante o mesmo objecto, haja leituras tão distintas. E chamo-lhe objecto como poderia dizer outra coisa qualquer, obra, por exemplo. Veja-se com as obras de arte: um quadro, uma escultura, um jardim. Onde eu me emociono, há quem ache incompreensível que alguém de bom senso se emocione perante coisa assim. Onde outros veneram a perfeição de um trabalho, eu passo ao lado, achando monótono. Não há verdades absolutas, essa é que é essa.
E uma outra coisa. Hoje tive que ir, durante o dia, a um sítio longe daqui, onde antes nunca tinha ido. Nem sabia que existia. Demos com aquilo graças ao gps. Um lugar meio urbano, nem sei bem como descrever, com uns certos laivos de campo. Com muita estranheza lá fomos de rua em rua, ruas muito estreitas, nem sabíamos se eram de um ou dois ou nenhum sentido. Fui com o meu marido. Não me aventuraria a ir para o desconhecido sem companhia. Às tantas, sem saber se o gps nos estava a levar para lugares completamente errados, olho para o lado e tenho uma visão. No meio daquele casario meio desordenado, um burrinho. Exclamei: olha, um burrinho! O meu marido que estava a esforçar-se por caber na rua, olhou desinteressado e fez um ar arreliado: qual burro, não vez que é um pónei? E, então, ainda mais perplexa, reparei que sim, um pequeno pónei branco com uma grande franja loura, um rabiosque todo farfalhudo em louro platinado, um ser irreal, ali, na maior improbabilidade. O mundo é um lugar cheio de coisas imprevistas, inusitadas, incompreensíveis. Vim intrigada com aquilo. Se não fosse por me ficar tão fora de caminho e não ter tempo, teria lá voltado só para ver se ainda lá estava ou se tinha sido uma visão natalícia.
Bem. Comecei a escrever a dormir e agora é que estava a apetecer-me começar a escrever. Mas acho que não faz sentido, é muito tarde.
Mas vou partilhar um vídeo de que gostei muito e que vi antes de, há bocado, adormecer.
Redefine masculinity with this Cuban ballet dancer
Andy Sousa is a dancer from Cuba. By the age of 5 he knew he had a passion for movement so decided to pursue ballet. With all its vintage charm and exciting cultural pluralisms, the Caribbean island, however, still favors a type of hegemonic masculinity that indulges in machismo behaviors. Although he had the encouragement of his father, Sousa's adolescence was scarred by peers and relations who attempted to undermine his heterosexuality and masculinity through bullying...
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E tenham um belo sábado, apesar de todos os pesares, confinamentos, restrições à circulação e etc., ok?
2 comentários:
Até eu, que sou do tempo do Paleolítico Inferior, só leio o que me interessa e o que me serve. :)
Se o livro não me cativar ou seduzir, não leio ou reservo para data incerta. Daniel Pennac, no seu delicioso «Como um Romance», enumera os Dez Direitos Inalienáveis do Leitor, sendo que dois deles invocam o direito de não ler e o direito de não acabar um livro. Eu acrescentaria que os livros são como os amores. Há os que lemos avidamente, mas que esquecemos com a mesma rapidez com que nos apaixonamos, há os que merecem uma segunda leitura, há os que nos acompanham a vida inteira e há os outros, os que não nos dilatam as pupilas, que não arrancam suspiros e tremores, que só nos causam sono e bocejos. Assim, concordo que a vida é curta demais para ser preenchida com livros que não nos dão prazer.
Boas leituras, JM :)
Olá Miss Smile,
Do Paleolítico Inferior, Miss...? Mas ainda muito bem conservada a julgar pela foto da Frida Kahlo... Gostei. Muita graça.
E gostei também do que aqui diz, de cada palavra. Tal e qual. Os livros, os amores... a gente por vezes não sabe explicar; mas é assim mesmo. E a gente deve dedicar-se, de corpo e alma, é ao que nos convoca e prende.
Boas leituras também. E um bom domingo, Miss Smile.
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