Poderia ter escrito "O nosso amor" mas não quero apropriar-me de um momento tão especial, num lugar tão belo.
E ele está um gato. Um gato já um pouco usado, dirão as más línguas. Mas há casos em que o uso se traduz numa patine que embeleza as coisas e as pessoas. É o caso. A pinta dele, a forma como se veste, o corte do cabelo... tudo tem tchanam. Até a guitarra às cores condiz com ele e com o lugar.
Ontem de manhã, ainda estava na cama e já o meu marido me dizia que já tínhamos vizinhos novos na casa lá de baixo, do fim da rua. Tinha ouvido e visto os cães e tinha visto, de longe, o dono da casa. Há uma pequena parte em que a vedação deles confina com a nossa e através da qual se vê parte da propriedade.
O meu marido disse que eram três impressionantes pastores alemães. Fui ver.
Claro que o nosso ficou doido. Habituado a andar por ali sem concorrência já que os vizinhos anteriores não tinham cães, ter agora três bestas a ladrar para o lado de cá é coisa com que não contava e que não consegue admitir.
Passou o tempo todo a correr de um lado para o outro, a saltar, a ladrar. Quando os cães se retiraram (suponho que foram retirados pois vi que passaram carros para lá e provavelmente o dono prendeu-os) o nosso recuou, saiu dali e veio colocar-se num local mais estratégico, digamos que a meio caminho entre casa e aquela zona da vedação contígua. Virado para o lugar onde eles antes tinham estado, a ladrar de vez em quando, quase como que a lembrá-los de que estava ali, em guarda. Quando passávamos por ele, olhava para nós, orgulhoso. Um soldado de sentinela.
O meu marido já disse que vai ter que subir a rede num certo ponto não vão aqueles lobos gigantes saltar par o lado de cá. A verdade é que me deu um bocado de medo andar por ali sozinha. Um dos cães nem sei o que parece, gigante, peludo, um vozeirão. Deve ser um pastor alemão gigante mas com mais pelo do que é habitual. Os outros dois são grandes mas não inusitadamente grandes.
Às tantas, depois, o meu marido chamou-me. Já eu estava dentro de casa. Quando cheguei já o motivo do chamamento se tinha ido embora: o vizinho da outra ponta da rua tinha passado com o seu rebanho e tinha agora um cão pastor que, segundo o meu marido, é um cão muito bonito, peludo, maior que o nosso. Claro que o nosso ficou desestabilizado durante uma meia hora ou mais. Já o rebanho e o outro cão tinham passado há séculos e ainda ele andava num frenesim, furioso, a correr e a saltar ao longo do muro. O meu marido disse que o nosso vizinho também está muito diferente, está sem óculos e com barba. Diz que quase não o reconheceu. E eu não consigo imaginá-lo assim.
Entretanto, claro que há cogumelos de toda a espécie e feitio. Encanto-me. Encanto-me como se visse pela primeira vez, como se não conseguisse perceber o milagre.
Em algumas rochas cobertas de musgo há agora um mar de ínfimos cogumelos, uma coisa extraordinária. Só andando com muita atenção se consegue ver: não sei como é que a natureza produz tamanha disparidade, tudo tão delicado, tão perfeito. As cores, a elegância do desenho. O que existe no subsolo que os faz nascer como eles são? Uns brancos, outros castanhos, outros amarelos, uns grandes, outros minúsculos, uns lisos, outros em renda, outros aos folhos.
Está tudo verde, húmido, com aquele cheiro orgânico em que se mistura o odor das folhas em decomposição e o perfume dos eucaliptos, cedros, pinheiros. E há musgo, fetos, rebentos de pinheiro. E líquenes, rendilhados, tufos de delicados tecidos, fractaizinhos lindos.
E a névoa que fica suspensa, uma renda muito leve feita de orvalho? Tudo perfeito demais, tudo inexplicável, tudo efémero e muito belo.
Apetecia-me não ter nada mais que fazer senão andar na contemplação, nas fotografias. Adoro, adoro.
Mas tenho muito que fazer. A nível profissional é o de sempre, nem vale a pena falar nisso. É o que é.
Mas depois há a época. Hoje já comprei algumas coisas, quase tudo na base da utilidade e dos livros, mas ainda tenho muita coisa para comprar. Depois terei que separar, organizar. Estou muito atrasada, este ano. Calhou a minha mãe ter estado a modos que adoentada, requerendo cuidados, obrigando-me a deslocações mais amiúde. As circunstâncias às vezes aparecem na maior inoportunidade.
Não me rendeu o que queria, hoje. É que, quando fui num bocadinho, ia-me dando uma coisa. Meia hora foi gasta a tentar um lugar para o carro. Já me impaciento demais com estas absurdas perdas de tempo. Depois, lá dentro, uma multidão. Fico doente. Para começar, um calor do caneco. Devia ter deixado o casaco no carro mas estava tão desesperada que nem pensei nisso. O calor tira-me a vontade de tudo. Ver que as caixas estão com filas e filas tira-me ainda mais. Depois, as roupas este ano estão horríveis, desengraçadas, pesadas, largueironas. Queria escolher algumas mas a moda este ano veio às arrecuas. Malhas grossas, mal jeitosas.
Nos livros nem é bom a gente falar. À vista e em destaque apenas o que não vale uma casca de caracol. É preciso garimpar. Mas como...? No meio de uma multidão, cheia de calor, sem tempo...?
Terei que voltar mas não sei quando conseguirei nem sei qual a melhor hora.
E ainda não comprei comida nenhuma e, sabido é, quando a maltinha se junta toda é como cozinhar num quartel. Nem sei o que fazer. Estou com ideias malucas mas é arriscado fazer uma coisa que nunca fiz, e logo para tanta gente.
Estou com algum receio de não encontrar o que precisar... isto quando souber o que é que preciso. Hoje pensei que me apetecia fazer uma canja, uma boa canja com ovo e tudo. O meu marido arreliou-se, diz que eu não complique, que não me ponha a inventar, que não me ponha a arranjar maneira de sujar muita louça, que me cinja ao essencial. A minha filha falou em galo capão no forno. Para tanta gente teriam que ser pelo menos dois. E não cabem dois galos no forno. Complicado, isto.
Vida de cão é mais simples. Não complicam. Não inventam, não se metem em embrulhadas de compras e multidões.
Às vezes, ao almoço, comia uma sandes. Agora já não, ando a ver se como menos pão. Adoro pão mas quero ver se não engordo mais do que a conta. Mas, a escolher uma que comesse de bom grado, talvez feita em pão de sementes com alface, uma fina rodela de tomate, ovo cozido, salmão fumado. Também gosto de sandes com ovo mexido e, como verde, canónigos.
Coisa minha que deitaria fora?
Um chinelo roído (pela fera felpuda, claro). Ainda não deitei pois o outro está bom. Chateia-me deitar fora coisas que estão boas.
Animal mais temido?
Cobra. No campo há algumas. Quando vou a andar e ouço daqueles barulhinhos tão típicos no campo, por vezes penso que ficaria assustada se uma viesse na minha direcção. Vi uma vez uma cobra a perseguir um rato e a comê-lo. E o pior é que o ratinho estava tão apavorado que se deixou comer. Penso que comigo aconteceria o mesmo. A cobra poderia engolir-me que eu, tal o pavor, nem me mexeria. Acho que uma cobra sibilante e sinuosa me daria um medo paralisante.
Maçãs ou laranjas?
Laranjas. Gosto muito de laranjas. Na época delas, e agora é quase sempre época delas, como uma laranja todos os dias (ao pequeno almoço). De todas, as laranjas da laranjeira mais antiga da minha mãe são as melhores. De longe, as melhores. Doces, sumarentas, frescas e bonitas.
Já alguma vez pedi um autógrafo?
Sim. Numa livraria no Chiado, vi o Fernando Namora. Gostava muito dos seus livros. Já os tinha lido todos. Então, fui à estante buscar um livro dele e pedi-lhe um autógrafo. E, feita estúpida, ofereci o livro ao meu namorado da altura. Foi-se, pois.
O que acontece quando morremos?
Descansamos. Deixamos de ser vistos como éramos. Apareceremos por aí de outras maneiras: uma árvore, um tapete de musgo junto ao tronco dessa árvore, um gato, uma nuvem, uma suave aragem, uma boa recordação.
Filme de acção preferido?
Braveheart. Não sou grande apreciadora de filmes de acção. Este foi aquele de que primeiro me lembrei. Tenho ideia de que era um filme poderoso. Tenho ideia do Mel Gibson ter um poderoso grito de liberdade. Freedom!
Cheiro preferido?
O que sinto quando caminho in heaven. Uma mistura de pinheiro, de cedro, de eucalipto, de alecrim, de rosmaninho, de silencio e de paz.
Pior cheiro?
Borracha queimada. Lixo. Batatas podres.
Exercício: vale a pena?
Claro que sim. Mas que pareça espontâneo. Caminhar, todo o ano. Nadar, no verão. Varrer, todo o ano. Rir, sempre.
Liso ou cintilante?
Não sei se percebo a pergunta mas, em abstracto, simples, liso, sóbrio.
App mais usada no meu telemóvel?
Google maps. O GPS do meu carro é estúpido. Prefiro o google maps. Mesmo para andar a pé, uso quando estou num sítio novo. O pior é quando me manda ir para noroeste ou coisa assim pois nunca sei para que lado fica isso. Nunca consigo situar-me.
Se só pudesse ouvir uma música até ao fim da vida, qual seria?
Lili Marlene. Gosto de tudo mas, sobretudo, do simbolismo. E, sobremaneira, na interpretação de June Tabor.
Em que número é que quem faz a pergunta está a pensar?
225.
Como descrever o resto da vida em cinco palavras?
Presumo que a pergunta se refira a como gostaríamos que fosse o resto da nossa vida. A ser isso, em cinco palavras: feliz, independente, interessante, venturosa, plena.
No outro dia dei dois vestidos meus à minha filha. Ela olhou para os vestidos e espantou-se por eu ter cabido neles. Não foi há muito tempo. Tento localizar no tempo e diria que talvez uns seis anos, por aí. Usava o 38 que, em letra, equivale ao M. A minha mãe diz que com ela foi a mesma coisa, diz que, com a menopausa, a roupa deixou de lhe servir, diz que, nessa altura, parece que alargou e que ficou com mais peito. Agora não, agora está outra vez mais delgada, elegante mesmo.
Os vestidos que dei à minha filha são intemporais; se calhar, se daqui por uns anos voltar ao 38, ainda me ficariam bem. Mas acho que não faz sentido estar a guardá-los, ficam-lhe a ela muito bem. São ambos de tecidos muito fininhos, ambos em verde, um em verde mais colorido estampado em flores cinzentas e outro num mesclado mais pastel em diferentes tons de verdes secos e beige. O primeiro é forrado mas o segundo não, fica completamente transparente. A minha filha disse que deveria ter um interior mas não o encontrei. Lembrei-me depois que sim, tinha, em malhinha de seda muito fina, em verde seco. Mas perdi-lhe o rasto. Há coisas que, na minha casa, desaparecem. Nunca me preocupo pois sei que voltam a aparecer. Só que agora é que dava jeito, não é quando lhes apetecer ver a luz do dia. Por isso, ela não o tem conseguido vestir. Lembrei-me que a minha mãe devia ter combinações. Este sábado de manhã, lá em casa, lembrei-me disso. Foi a uma gaveta do roupeiro e estava cheia de combinações e camisas de dormir de alças, umas de seda muito fina, outras de algodão também muito fino, com rendinhas ou bordados. Nunca usei combinação, nunca me dei bem com muita coisa em cima do corpo. Mas acho bonito, assim, dobradas, perfumadas, macias. Trouxe uma em seda numa cor que não sei definir, talvez um beige-profundo, talvez um rosa-velho esbatido. Tem cortes e pinças para se colar ao corpo, tem um decote elegante, tem umas rendas bonitas. Não sei é se não lhe estará um pouco larga na cintura. A minha mãe diz que não faz mal, se ela gostar, aperta-a nos lados. Trouxe-a para ela experimentar.
Ontem a minha nora também estava com uma blusinha arrendada, às flores, num colorido suave, que era minha. Também me estava justa demais e a ela fica mesmo bem. No outro dia, quando chegou lá a casa, disse que não tinha era um casaco quentinho que ficasse bem com o vestido que vai levar a um casamento, daqui por uns dias. Fui à procura e encontrei um casaco curto, escuro, em veludo muito leve. Ela achou que ficaria a matar. Disse que à noite já está frio e que preferia ir prevenida. Perguntei-lhe se precisava de uma estola e fui buscar uma de pele para ela ver. Ela, que estava de saia de verão, tshirt e sandálias, vestiu o casaco de veludo e colocou a estola e apareceu assim ao pé do meu filho que não tinha acompanhado a conversa. Espantou-se: 'O que é isso?!'. Ela disse que era para o casamento. Ele respondeu: 'Não me parece bem que vás mascarada'. Ela explicou que não ia levar a estola mas o casaco sim. Entretanto, a bonequinha mais linda agarrou no casaco e na estola, aperaltou-se e desfilou, linda. A mãe disse: 'A ela tudo lhe fica bem' e o meu filho olhou para a filha e não disse nada, penso que também achou que estava linda. Depois, toda coquette, pôs uns óculos meio malucos, de carnaval, que por lá andam e ficou deliciosamente extravagante. Tentei fotografá-la mas fez-se rogada. Tem alma de sedutora, um caso sério. Penso que ela herdará muitas roupas minhas. Tem um gosto muito parecido com o meu. Não receia ousar.
Mas é isto, passamos a roupa de umas para as outras. Por exemplo, no verão, usei muito, aqui, in heaven, uma blusinha fininha que era da minha filha e que ela já não veste e gosto da forma como me cai. E uso cá, por vezes, um vestido comprido, de alças, de algodão indiano em vermelhos florais, que era da minha cunhada.
Com os miúdos, então, nem se fala. Tirando o que se estraga, herdam tudo, passa de uns para outros. Só o mais crescido é que as inaugura a todas. Ela, a bonequinha mais linda, herda da filha de uma prima da mãe.
Hoje a minha mãe, quando abriu o roupeiro, olhando para a roupa do meu pai, disse: tanta roupa que já não vai voltar a vestir, só se houver um milagre. Pensei que há milagres que, mesmo sendo milagres, são inexequíveis. E mostrou uns blusões bons e disse que, se calhar, ficavam bem ao meu marido. Ainda nem lhe disse. Nessa altura já estava no carro à minha espera, já não ouviu a conversa. Aliás, já estava era a ligar-me. Nem atendi, já sabia que era para me despachar.
No carro continuei a leitura de A mulher do meio. Gosto mesmo muito da forma como a Ivone Mendes da Silva escreve. O que ela conta não é nada de extraordinário, é apenas o seu dia a dia. Vai ao café, escreve, evita as pessoas conhecidas para não ter que lhes falar, caminha, gosta de olhar para dentro das casas quando à noite têm as luzes acesas e alguma janela aberta, enrola-se num xaile, bebe chá, fala do barulho do vento, fala das molhas que apanha quando está a caminhar e desata a chover, fala de uma mulher que faz árvores genealógicas no café, fala de uma flor no parapeito, fala do silêncio e da distância de que precisa. Mas fala de uma maneira tão fractal, uma escrita tão perfeita, que é um prazer lê-la.
De tarde, depois de almoço, deixei-me dormir. Só aqui, quando estamos apenas os dois, é que eu ponho verdadeiramente o sono em dia. Não há barulho, não há compromissos. Há apenas quietude e sossego.
Depois, quando acordei, andava ele a regar e eu fui caminhar um pouco. Foi enquanto caminhava que tentei ler o maravilhoso poema da flor e não consegui. Há pouco estive a lê-lo ao meu marido, consegui. Ele ficou em silêncio e, quando lhe perguntei, disse-me que sim, que era muito bonito, que tinha gostado. E percebi que também o tocou.
Enquanto andei a caminhar, o frio já se fazia sentir, tive que vestir um casaco.
Fotografei tudo. Estava com saudades, tudo me pareceu de uma beleza reconquistada.
Descobri na rocha, num lugar para onde não vou muito, outro daqueles buraquinhos redondos. Enfiei lá dentro um pau comprido e não lhe senti o fundo. Não sei até onde irão estas misteriosas aberturas na rocha, nem sei o que lá dentro se esconderá.
Está tudo dourado, naqueles suaves tons outonais que fazem desejar que venha o frio e os tempos de aconchego. Há também tons de cobre ou rubro. As folhas das parreiras estão quase transparentes, num matizado muito bonito. As árvores desenham bordados nas paredes e nos muros e eu, encantada, ponho-me a fotografá-los.
O eucalipto gigante está lindo. Ao fim do dia, parecia conter fogo nas veias. Creio que seja um deus pois só um deus poderia ter tal grandiosidade, tal beleza, tal superior perfeição.
Depois de jantar estive a ver um documento enorme, uma contestação. Um colega pediu que eu esclarecesse alguns aspectos e desse a minha opinião. Fiquei furiosa, cada vez mais à medida que ia lendo. Como é que deixaram que um assunto de pouca importância escalasse daquela maneira, falando-se já em milhões de indemnização? Nos homens o gosto pela guerra é responsável pela maioria dos disparates que se cometem no mundo. E aqui quando digo homens digo mesmo homens, seres com testosterona, e não género humano. A minha resposta espelhou a minha opinião: todo o processo era escusado, nada fazia sentido, sentassem-se e resolvessem as coisas a bem. E espero que a minha fúria tenha perpassado ao longo do texto e que os três destinatários estejam agora a ver como descalçam a bota.
Agora estou a ouvir o vento a namorar a copa das árvores. Ouço as ramagens num animado bailado. A natureza é sobrenatural. E eu, insignificante, frágil e efémera, penso que testemunhar isto é felicidade à qual tenho que estar sempre muito agradecida.
E estou a beber um chá. Há pouco li um texto em que a Ivone falava num chá de frutos da floresta. Também o tenho. Tenho vários, sou maluquinha por chás e infusões. A minha filha deu-me uma vez uma caixa com compartimentos, cada um com seu chá. Tinha pena de os beber, pareciam-me jóias raras. Receando que o que me apetecia, o chá branco misturado com gengibre, tivesse alguma coisa que me tirasse o sono, não me arrisquei, joguei pelo seguro: erva-príncipe. Uma das minhas avós tinha erva-príncipe no jardim. Este cheirinho faz-me sempre lembrar esses tempos e eu gosto.
E o texto já vai indecorosamente longo. Não aprendo a ser contida. Não aprendo a moderar esta torrente de palavras que deseducadamente brota das minhas mãos.
Se conseguiram chegar até aqui são uns valentes, é o que vos digo. Eu não tenho essa paciência razão pela qual nem vou rever o que escrevi, pedindo-vos duplamente desculpa, seja pelo excesso do texto seja pelo mais do que provável bando de gralhas.
Finalmente: se ainda não leram, por favor desçam e vejam com os vossos olhos o poema que a flor escreveu: 'das paredes rompem flores'.
E outra coisa: votem, por favor. Não arranjem desculpas para não votar. Não votar não tem desculpa. O meu pai não vai votar porque está acamado e porque o mundo exterior já é, para ele, uma realidade distante cuja existência presumo que até desconheça. Tem, pois, uma boa razão para não votar. Mas tirando casos assim, extremos, não há desculpa. Vão votar, está bem?
A semana foi de tal ordem que ainda nem me parece que a semana esteja a acabar. De tarde caí em mim e pensei que uma sexta-feira tem que ser festejada e que talvez uma boa maneira fosse ir ao cinema. Falei ao meu marido. Vita & Virginia. Que não, que devia ser chato. Sugeri-lhe que podia ir para outra sala, ver outro filme. Perante essa perspectiva, que ele sabia ser impossível pois eu não lhe perdoaria se aceitasse a minha sugestão, acabou por aceder. Mas teríamos que sair a horas decentes para dar tempo a jantar antes. Mas os deuses protegem os corta-baratos pois vimo-nos ambos, cada um em seu lado da cidade, ensarilhados no trânsito. Portanto, ao telefone um com o outro, percebemos que cinema já era. Salvou-se de ver em filme a história que conhecemos dos livros. No entanto, acho que iria gostar. Eu iria. A ver se para a semana. Nisto, manda-me o meu filho uma sms a perguntar se não queríamos ir jantar com eles. Não sabíamos se conseguiríamos chegar a tempo, que avançassem que logo veríamos. Quando lá chegámos já lá estavam e já o bebé tinha virado meio prato de sopa com bocados de pão à mistura.
Logo de início, o menino que sabe tudo de futebol estava entusiasmado, queria que eu visse uma coisa na televisão. Pensei que era alguma jogada espectacular. Mas não: 'Olha, olha agora, o António Costa a zangar-se com um senhor que disse uma mentira'. E era mesmo.
E eu e o meu marido dissemos que, ao fim de muitos dias de cansaço, é natural que a uma pessoa lhe salte a tampa ao ver-se acusado de uma mentira. Nada de mais. Alguém quer ter governantes que sejam máquinas, indiferentes a calúnias e a acusações injustas e maledicentes? Eu não quero. E também me parece que uma sociedade de censores em que não se admite uma reacção humana aos políticos não será uma sociedade saudável.
No carro já tinha ouvido 'o caso', mais um 'caso', bem como as reacções do Rio e da Cristas e de vários comentadores que de imediato tinham sido convocados para opinar. Já vinha saturada. Um homem chateia-se por ser acusado de uma coisa grave que não aconteceu -- e cai o carmo e a trindade. Não indignados com a mentira mas com a reacção. Não se aprende nada nestas alturas. Estas gentinhas que vivem de comentar o que os outros fazem e dizem só me parecem vizinhas coscuvilheiras, só acusações, só parvoíces polvilhadas por polígrafos e papagaiadas. Não há pachorra.
E eu, a esta hora, aqui chegada ao meu sofá acolhedor e silencioso, já não estou nem aí.
Estou aqui a pensar é noutra coisa. Tenho um colega que é muito culto. Cultíssimo. Culto de uma forma invulgar. Junta a isso o ter uma memória como nunca vi. A meio de uma frase minha pode lembrar-se de um verso de um poema e di-lo na língua original. E se eu, desconfiada, à socapa, depois, for googlar, constato, espantada, que aquele verso existe mesmo, que o autor é mesmo aquele. Uma coisa que descrita parece mentira mas que é estranhamente verdadeira. Tenho alguns livros que ele me tem oferecido e são sempre invulgares e surpreendentes. Pois bem. No melhor pano cai a nódoa. Hoje, num mail que me enviou, mail que, como sempre estava muito bem escrito quer na forma quer no conteúdo, as ideias sempre muito bem sistematizadas e apresentadas, quase no fim, um erro ortográfico. Onde deveria estar 'podemos' estava 'pudemos'. Fiquei ali parada a olhar para aquela letra trocada. Doeu-me como uma nódoa. Pensei devolver-lhe o mail e pedir que o revisse e mo enviasse de novo sem o erro. Por pura ironia e por saber que ele perceberia o meu desconforto. Mas depois pensei. Temi que ficasse a sentir-se mal. Se fosse comigo, eu ficaria doente se enviasse um mail com um erro daqueles. Depois pensei em responder-lhe ao tema em questão e, no fim, como uma notinha insignificante, um alerta para o typing mistake. Mas depois não fiz nada disso. Para quê? Para quê ir aborrecê-lo? Quantas vezes já eu troquei letras, deixei restos de frases alteradas no meio das frases novas, quantas vezes mudei de ideia a meio da frase deixando a vírgula onde antes fazia sentido e depois deixou de fazer? Quantas vezes, ao reler o que escrevi, fico perplexa com os erros que encontro? Quantas vezes me auto-recrimino por publicar coisas sem antes as reler, sem antes as editar? E isto já para não falar no corrector automático que, às vezes, de sua lavra, escreve palavras que não queremos e que, se não damos por elas, seguem viagem mesmo assim.
E, depois, quem me diz que o meu sentido de rigor na escrita não está furado, ultrapassado, gatado?
Tanta preocupação que tenho de pôr as vírgulas no sítio em que a conversa inflecte ou que a respiração precisa de pausa e, afinal, na volta, a conversa pode fluir, refluir, estacar, voltar atrás, dar uma volta, abrir um parêntesis, gargalhar, chorar, tudo, sem precisão alguma de vírgulas.
E não estou a falar de cor, não. Estou a falar porque constatei. Não foi a primeira vez, claro. Mas desta vez eu estava a ler o livro, a ler, a ler, e não dei por isso. Eu lia fazendo as pausas todas sem dar pela falta das vírgulas. Quando dei, voltei atrás para verificar se a ausência vinha desde a primeira página. E vinha. E não me tinham feito falta nenhuma.
Exemplifico.
38. Tenho desde há muito o hábito de em algumas noites acender uma vela dentro de um pequeno castiçal junto à janela. Penso que se verá da rua. Creio que os anjos de grandes asas pesadas se háo-de abeirar ainda que por pouco tempo do lugar onde eu moro. Sei que nada é mais terrível do que a perfeição de um anjo e por isso os espero assim. Perdidos nas rotas da chuva e com um cansaço quase humano no rasto que deixam.
214. A tristeza tem mil e uma formas de ser dita mas a alegria não tem história. Claro que isto já foi escrito e com mais eficácia mas hoje voltei a comprová-lo. Encontrei uma pessoa que me convidou para um café e pensei oh diabo tenho para umas duas horas. Mas não. Disse-me logo não vou maçá-la está tudo a correr bem não tenho nada para contar. Com efeito em meia hora bebemos um café e conversámos sobre platitudes. E eu pensei nos caprichos do acaso mas nada disse.
Não concordam comigo? Percebem a minha dúvida? Para quê incomodar as vírgulas, andar com elas em preparos, com rodeios e mesuras, em bolandas? Porque não deixá-las em paz? Não viveremos, afinal, bem sem elas?
Tenho que tentar. Mas não me vai ser fácil, ainda estou muito apegada às maganas.
Os excertos em itálico pertencem ao belo diário de Ivone Mendes da Silva, 'A mulher do meio'.
A bela mulher retratada podia ser a Ivone mas não, é Ida Rubinstein
Abaixo, Alessandra Ferri dança enquanto Sting interpreta Bach, suite 1 para cello
Quando vinha a conduzir perto das sete da tarde, numa das mais bonitas avenidas de Lisboa, tinha as janelas fehadas e o ar condicionado ligado. Vinha a ouvir música e a sentir o ar fresquinho. No escritório a temperatura também estava fresca. Não me apercebi, pois, do calor pelo que foi com admiração que vi no mostrador do carro que, lá fora, estavam 40º. Abri a janela para confirmar e, ao sentir aquele bafo ardente, fiquei quase aterrada. Um ar quente, opressivo.
Ao falar com a minha mãe, ela disse que o número de vezes em que a temperatura está tão alta, a inconstância, os fenómenos extremos como a tempestade de granizo na Grécia a assustavam. Acrescentou que só estúpidos muito estúpidos como o outro é que não se apercebem disso. Penso que estaria a falar do Trump. A senhora que vai ajudar a tratar do meu pai, quando se fala no Trump, diz: 'um parvo com boquinha de rosa'. E ri-se e rimo-nos as três mas o que nos faz rir é o ar caricato dele, não a sua brutal ignorância e estupidez.
Agora passa da meia noite e continuar a estar muito calor. Quis ligar o ar condicionado aqui da sala mas o meu marido, como esteve constipado e ainda anda com tosse, disse que era melhor não. Quando se for deitar, ligo.
Este ar muito quente é horrível. Seria bom que agora pudesse estar num local fresco. Lembro-me de quando estive em Zurique e devia ser inverno porque me lembro de ter ficado num hotel junto a uma montanha com neve. E, quando fomos lá acima, no teleférico (já contei: um terror para mim), passava perto das copas de cedros gigantes, escuros, lindíssimos, pintalgados de neve. Mas eu estava cheia de medo, não desfrutei como devia. E não levava a máquina fotográfica comigo. Uma pena que aquilo era mesmo bonito. Mas aquele friozinho era tão bom, estou a lembrar-me tão bem. Depois tive uma reunião na sede de uma grande empresa, porque foi por isso que fui a Zurique, e a sede era numa belíssima moradia moderna com um jardim à volta, com grandes cedros no relvado. E a rua era toda de moradias assim e estava frio e o tempo escuro, as grandes árvores escuras pingavam, e tudo era tão bonito. Trouxe de lá a caixinha de música em rosa velho e dourado que ali está, naquela estante.
Voltei lá depois, era verão e estava calor e eu estive tanto tempo de pé, num edifício enorme, cheio de luz, e eu não bebi o meu segundo café a meio da manhã e senti mesmo que ia desmaiar. Entre uma dúzia de homens que falavam pelos cotovelos, cada um de sua nação, tudo falado em inglês mas alguns com sotaques que dificultavam a compreensão e eu a sentir a pressão a baixar, a começar a ver tudo branco, a ver que ia armar barraquinha no meio de um edifício espelhado, rodeada de executivos. Ou seja, com alguma inibição não fossem eles achar que estava a fazer género, tive mesmo que pedir para me sentar, para me arranjarem café e água fresca. Nesse dia ainda fui andar de barco a ver se refrescava mas já não gostei tanto como da primeira vez. Dessa vez trouxe a segunda caixinha de música mas não é tão bonita como a primeira.
E hoje, com este calor abrasivo, o que me ocorre é que seria bom poder voltar a estar numa montanha fresca, entre árvores protectoras, ouvindo os sons subtis que atravessam o silêncio dos dias frios.
E agora, acreditem ou não, abri o youtube e a criatura mostrou-me um vídeo que vem mesmo a calhar, refrescante: um homem que gosta de deslizar sobre a fina camada de gelo que cobre alguns lagos. É matemático e diz que sabe o que faz. Trigonometria. Mede a espessura da fina camada, sabe calcular a elasticidade a partir dos vectores que puxam cada um para seu sítio, imagino eu, daí os ângulos, quicá a probabilidade de fractura. Trignometria conjugada com cálculo vectorial e com probabilidades. Um festim de fazer aguar a minha boca. Mas, portanto, diz Märten Ajne que vai à confiança, sabe que não se abrirá a fenda através da qual poderia ser sugado. E, talvez ainda mais importante, deixa-se guiar pelo som do gelo. Ou seja, uma conjugação de beleza nas suas mais variadas formas.
Eu, que mal ouço falar em senos e cossenos e em cenas afins sinto logo um tremorzinho por mim adentro, fico atenta a ouvir, a ouvir pelo gosto de ouvir. Mas, neste caso, tenho que confessar que me sinto também atravessada por algumas vertigens. A perspectiva de sentir falta de apoio nos pés e o medo de cair num espaço infinito é, para mim, aterradora.
by Sergey Gribanov
Mas sinto também uma sensação de maravilhamento: deve ser tão bom quase voar, sentir o ar frio, ver a luz sobre a lâmina brilhante, atravessar aquele espaço imenso e limpo.
People get nervous when they see Märten Ajne ice skating. He intentionally skates on extremely thin ice. Ajne has pursued this dangerous hobby for 40 years and has skated on more than 1,800 bodies of water from Norway to North America. So why hasn’t he fallen through the ice? He uses his knowledge as a mathematician and a highly-trained ear to stay safe. Ajne can actually calculate how thick the ice is by listening to the sound it makes when he glides across it. Join us for one of the coolest math lessons ever taught.
Ainda não fiz a árvore de Natal nem enfeitei a casa. A bem dizer, fazer isso maça-me um bocado. Prefiro ter arvorezinhas pequenas e luzes. As árvores mais bonitas dos outros anos acabaram por ficar. São bibelots que ganharam intemporalidade -- digamos assim. Claro que as más línguas podem achar que é preguiça, isto de as árvores de natal ficarem de uns natais para os outros. Quero cá saber.
E gosto de ter luzinhas. Gosto de, à noite, ter a sala grande às escuras e as luzinhas a piscarem pelos cantos.
Na casa de jantar, à volta do espelho gigante que está por cima do aparador, também costumamos pôr luzinhas. Fica um ambiente bonito.
E agora, se passo no Gato Preto ou na Area ou nessas lojas, dou por mim à procura de arvorezinhas que possam fazer de árvore de natal. O meu marido não. É mais normal que eu. Gosta de ter uma árvore de natal a sério com bolas e enfeites. Por isso, é ele que a faz. E, como as faz com carinho, ficam sempre bonitas.
E esta terça feira tive um número suplementar. Coisa que odeio. Mas andavam a moer-me, que há quanto tempo não ia, que tinha que ir e sei lá, e eu, sem saber há quanto tempo, mais de um ano de certeza, contrariada, lá fui. Não gosto, dói, a mama espalmada, prensada, parece que vão esmagar. No meio daquele desconforto e medo ainda me deu para pensar que ainda bem que não tenho implantes senão estava era com medo que o saco rebentasse e ainda me esguinchasse silicone pelos mamilos. Credo. Coisa horrível. Mamografia. Coisa do pior que há. E medo. Tenho sempre medo.
Ainda agora, na família alargada, um caso. Vai correr bem, claro que vai. Mas o durante é penoso. Tudo penoso. Tudo.
Adiante. A seguir à mamografia, a ecografia mamária. Desagradável, uma pessoa indefesa, deitada de barriga para cima, em tronco nu, e o médico com aquela coisa a deslizar nas mamas, a carregar, a espreitar pelo monitor, a medir cada irregularidade, e uma pessoa ali, à mercê, à espera que descubram. E... se descobrem?
Felizmente, tudo bem. Saio de lá sempre num alívio tal a achar que devia descansar e comemorar, ou ir dormir e depois ir de férias. Mas não, almocei a correr para mais uma voltinha, mais uma viagem. Mas, vá lá, consegui sair a horas decentes, sete e picos. Portanto deu para uma caminhada. Tudo somado, depois de jantar e do post, o corpo apagou-se.
Agora estou quase acordada. Devia ir dormir mas a vontade de prolongar os dias é mais forte do que eu. Também devia responder aos comentários, alguns atrasados (da Rita, da Rosa, da bea, do P., do Bob, de um anónimo que escreveu uma coisa bonita sobre a minha sensibilidade). Mas os dedos, a esta hora, já só sabem escrever aqui, assim, à deriva.
Portanto, ao acordar, incapaz de melhor, estive a ver coisas natalícias: entradas para o almoço do dia de natal e cenas decorativas que transmitam o espírito, para a casa também sorrir quando os meninos entrarem de rompante com abraços, beijinhos e, acto contínuo, correria e brincadeira.
Um ramo seco de árvore parece-me uma excelente ideia. Até o posso pintar de branco. Ou de dourado. E pendurar bolas ou bombons. Ou pinhas. E pinto as pinhas de branco ou prateado ou dourado. Acho que deve ficar bem. Também gosto daquelas árvores abstractas lá de cima, mas não sei como se fazem.
Escrevo e tento abstrair-me que isto dos natais é um relógio que, se visto de um certo prisma, é cruel. Uma ampulheta. Parte das pessoas dos natais da minha memória já partiram. Uns para sempre, outros apenas porque a vida nos vai levando por caminhos diferentes. Os meus pais felizmente ainda cá estão já não vêm passar o natal connosco e, como na véspera e no dia é tamanha a ocupação que não há logística possível, acabam por passar o natal sozinhos e só lá vamos um dia ou dois depois. Custa-me isso. A minha mãe diz que não, que isso de ser dia de natal é apenas um preciosismo de calendário mas a mim custa-me porque sei que ela adoraria estar cá em casa com a família toda. Mas, enfim, é o que é. O meu pai já não pode sair e ela nem admite sair e deixá-lo em casa. Percebo-a muito bem.
How fragile we are.
Mas, se uns se foram, outros vão chegando, a família vai-se alargando, as gerações vão-se desdobrando. Antevemos na partida de outros o que será, um dia, a nossa e percebemos que, por muito que a partida sempre custe aos que ficam, logo, logo a vida continua.
How fragile we are.
E, portanto, que se viva bem enquanto se pode e se partilhem afectos e se abençoem os abraços que se podem dar e os sorrisos que se podem trocar.
E twinkle, twinkle little star, que luzinhas tremelicantes é o que está a dar e a mim me apetece versejar, que já cansa de tanto filosofar.
E, assim sendo, que comece o vídeo mais tocante desta saison.
English for beginners, pela melhor de todas as causas
Czego szukasz w Święta?
(Czasami brakuje słów, by wyrazić to, co najważniejsze. W takim przypadku trzeba się ich po prostu nauczyć.)
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Lá em cima Chris Botti, Sting, Yo-yo Ma e Dominic Miller interpretam Fragile :::::::::::::::::::::::::::::::::::
Talvez agora não venha muito a propósito o post do Costa, do Marcelo e da dívida (apesar de que a época natalícia é do melhor que há para unir esforços).