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quinta-feira, junho 12, 2025

Neste nosso tempo em que os cidadãos regrediram à subtil designação de seguidores

 

Até não há muito -- talvez até antes de haver uma concorrência desmedida entre os canais de televisão, nomeadamente os de cabo que têm que manter as emissões em contínuo e deitam a mão a tudo o que é gato-sapato, ou até ao advento das redes sociais que vieram dar a voz a tudo e a todos por mais ignorantes e estúpidos que sejam -- só era dada oportunidade de se pronunciar em público a quem reunia um mínimo de características positivas que os fizessem distinguir do comum dos mortais. Tinha que se ser gente de cultura, com alguma coisa a acrescentar, para se poder chegar a um púlpito e falar para as massas.

Agora não. Veja-se Marcelo que, num dos seus momentos de deriva populista, chamou a discursar no 10 de Junho o João Miguel Tavares. Anedótico. E tal como a Assembleia da República é agora lugar em que um bando de grunhos tem assento, também as televisões se enxameiam com gente desqualificada. Vejam-se os Big Brothers desta vida, os programas de comentário do 'social' e muitos outros. E veja-se a cambada que invade os youtubes. 

Quando os meus netos cá estão, quando se póem a ver televisão, o que eles gostam de ver são youtubers ordinários a comentarem jogos ou parvoíces, a dizerem toda a espécie de disparates. Por mais que se tente impedi-los é por isso que eles se sentem atraídos. E imagino que os tiktoks desta vida estejam também pejados de porcarias idênticas. A mim, no instagram, não me aparece disso porque o algoritmo percebe que gosto de outras coisas e não me mostra grunhices mas, fosse eu de me interessar por maledicência, populices, racismos ou outras desconformidades e, certamente, seria alimentada com milhões de coisas dessas.

Não sei como se poderá parar estas enxurradas de desinformação, de superficialidade, de ordinarice, de aberração. Faz-me lembrar aquelas praias ultra-poluídas, como algumas dos países mais pobres de África, uma desgraça sem limite, as águas carregadas de lixo, as praias inundadas de detritos de toda a espécie e feitio, as pessoas, como animais, a esgravatar no meio da porcaria. Assim a comunicação nos dias de hoje. Lixo, lixo, lixo. E meio mundo a foçar no meio dessa imundície.

As instituições democráticas acabam por soçobrar perante a força da avalancha. Veja-se o que acontece com estes grupos ultra-nacionalistas, gente com aspecto troglodita, gente que nem sabe de que fala, sem conhecimentos de história, certamente gente com alguma perturbação mental, talvez traumas de infância, talvez gente mal-amada, gente que odeia os outros, gente que parece que tem prazer em fazer mal a pessoas indefesas, gente que odeia a decência, a democracia, a cultura, a inclusão, gente incapaz de gestos de bondade, de generosidade. E, no entanto, por aí andam e, estranhamente, conseguem que haja outros tantos que os apoiem. E ouvi que os serviços secretos sabem da existência destes grupos de gente má, de gente que incita e pratica a violência, e, pelos vistos, nada faz. Ouvi que há países em que estes grupos são proibidos. E acho bem. Mas não deve ser possível controlar verdadeiramente a sua existência pois este nosso mundo dispõe de alçapões e labirintos para toda a gente que gosta de se mover no mundo das trevas. A dark web, os chats e outros corredores sombrios permitem a movimentação desta gente maldosa que, em vez de se tratar, anda a espalhar o mal.

Ouço dizer que o populismo, o racismo, a xenofobia, o ultra-nacionalismo e coisas que tais se combatem com uma informação correcta, com educação, com pedagogia. Ajudará mas é lirismo pensar que isso é suficiente. Meio mundo não frequenta a aprendizagem rigorosa, não frequenta o conhecimento, não frequenta a comunicação social séria, não frequenta o mundo dos livros, não frequenta os espaços em que as pessoas falam sobre assuntos sérios e falam com vagar. 

Por isso, por muito que se queira educar os ignorantes, a pedagogia não chega até eles: uns porque trabalham e chegam tarde e cansados a casa, outros porque se desabituaram de ponderar, outros, os mais jovens, porque a realidade das redes sociais, dos whatsapps e dos youtubes é a única que conhecem.

E, no entanto, eis que, no meio disto, surge uma mulher que, vestida de branco, com voz pausada e serena, diz palavras sábias, límpidas, radiosas, inteligentes.

No dia 10 não ouvi o discurso de Lídia Jorge mas mão amiga fez-mo chegar. E, embora esteja a ser amplamente divulgado, faço questão de tê-lo também aqui. Uma maravilha. As escolas deveriam divulgar amplamente estas palavras. As televisões deveriam passá-las de vez em quando. De alguns excertos deveriam ser feitos cartazes para espalhar por todas as terras. 

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história, contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico.

Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e, muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto.

Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a terra.

A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura de origem.

O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado, foi cidade anfitriã em 1996.

Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera.

O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.

É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.

A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.

A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.

Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões, ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu.

Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu. Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior.

Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.

O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que hoje usamos.

Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou Baltasar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.

O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já depois de morto.

Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.

Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.

Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.

Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos em que o próprio viveu.

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então.

Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.

E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto, os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas.

Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na degradação dos atos do dia a dia.

Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que viveram.

Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a terra ao pescoço como se fosse um berloque.

Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência.

Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos”.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.

Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura.

No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.

Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.

Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam para o espaço.

Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque.

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.

É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.

No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a meditar em Sagres.

Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/ e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.

Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.

Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.

É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na atualidade.

É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.

O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade.

E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso.

Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.

Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos e por quem.

Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o próprio Infante D. Henrique.

Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.

Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.

Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui, no dia de hoje.

Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do amor e sob a lei dos direitos humanos.

Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos outros.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444 porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.

Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse.

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença.

É uma luta nossa, contemporânea.

Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.

A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.

O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha, apinhada, alguém responde: vimos da terra.

Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana.

Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos.

O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma.

Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.

Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte.

A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial.

Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.

Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.

Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos escravos aqui em Lagos.

Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado, oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida.

A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.

Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer: adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.

Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz.

Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

 

[Discurso de Lídia Jorge. Lagos, 10.Junho.2025] 

quarta-feira, junho 11, 2025

Para mim, um 10 de Junho sem discursos -- mas, do que já vi, um grande discurso de Lídia Jorge

 

Tal como tinha dito, o meu dia começou bem cedo. Pouco passava das oito e já a casa se enchia das vozes que nos enchem de alegria -- a nós e ao cãomaisfofo que salta, rodopia, em volta deles, surpreendido e feliz. Os pais foram para fora, embarcavam bem cedo, e, neste dia feriado, ficaram cá. Nos outros dias ficam nos outros avós que vivem mais perto das escolas. 

Portanto, foi dia cheio, sempre algum a querer fazer alguma coisa, ela na cozinha a querer estar ao comando. Despachada, rápida, impaciente. Eu, que também sou rápida, vejo-me grega para acompanhar aquele ritmo. Está-lhe nos genes querer fazer tudo rapidamente e várias coisas ao mesmo tempo. 

Não apenas fez parte do almoço como fez uma limonada e um bolo que estava francamente bom. Pesquisa a receita, vai vendo os ingredientes necessários, vai buscá-los ou pede-os, ao mesmo tempo vai partindo ovos, batendo os ingredientes, comentando o que vai fazer a seguir. Um ritmo que vai lá, vai. Ao jantar, voltou a fazer a parte principal enquanto o mais novo se ocupava do acompanhamento. Uma animação, uma agitação, uma alegria.

E, de tarde, estivemos no jardim e dançámos e jogámos à estátua e rimo-nos, e, entre eles, também estiveram entretidos. Dia bom. 

Pensávamos que ia estar de trovoada e chuva mas não, para a tarde até abriu. Nada dos calores dos outros dias mas razoável.

O cãoamigo agora está com as pilhas todas carregadas, super interventivo. Mal me vê agarrada a algum deles, na beijoquice, aparece logo a interpôr-se entre nós. Mas, embora venha a rosnar baixinho, vem a dar ao rabo, encosta-se também a mim. Eu digo: 'Então, quer ver que já não posso dar beijinhos...?' e ele dá ao rabo, todo encostado. Só falta rir. O dia todo nisto.

Quando se iam embora, os meninos puseram as respectivas mochilas às costas, pegaram nas malas (como vão ficar uns dias fora da sua casa, de manhã trouxeram logo a bagagem e as coisas da escola para o resto da semana), e foram para o jardim, para o pé do portão, à nossa espera. O dog estava ao pé deles, a dar ao rabo. Pensava que também ia. Tive que refrear o seu entusiasmo e disse-lhe: 'O cão (de facto, disse o nome dele, não disse 'cão') não vai. Fica cá a tomar conta da casa, está bem?'. Pois, de imediato, o rabinho parou de abanar e, com ar infeliz, foi para o lado, sentado, meio deitado, a olhar para outra direcção. E, até sairmos, ali ficou, a olhar na direcção oposta. Conheço-o: estava decepcionado, triste. A sua capacidade de compreensão, as suas emoções e raciocínios surpreendem-me a toda a hora.

Fomos, pois, levar os meninos a casa dos outros avós. 

Quando regressámos a casa, ainda fomos tratar o problema da perna do cãobeludinho e ainda fomos dar uma voltinha boa.

Ou seja: não vi televisão o dia todo. Para dizer a verdade, nem me lembrei de tal coisa tal como nem me lembrei que era dia de cenas.

Portanto, não sei como foram os festejos oficiais, desconheço o que o Marcelo disse, desconheço quem esteve ou deixou de estar. 

Só agora, através do instagram, tive conhecimento que a Lídia Jorge fez um discurso inteligente e poderoso. Fico contente. Tenho que tentar encontrar o discurso inteiro. 

Não costumo ligar a mínima aos discursos do dia 10 mas dá ideia que este discurso teve substância, acrescentou, ficará na memória de quem o ouviu.

Tirando isso, nada mais me ocorre pois o conhecimento do que está a passar-se por aí (ruas de Los Angeles, comportamentos trogloditas contra adeptos ou contra actores de teatro ou outros sucedidos por terras de aquém e além mar) é diminuto. 

Por isso, não opino. Vou descansar.

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Como é bom de ver as imagens mostram imagens geradas pelo Sora (IA) a partir do que lhe pedi.
Não é bem o que eu queria mas não tenho capacidade para aqui ficar até 'ele' acertar.

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Dias felizes para todos

terça-feira, abril 28, 2020

Viver é, afinal, o sentido da vida?
Será?
O grande mistério não é, afinal, mistério nenhum?







Ao fim de semana o meu marido afadiga-se a desbastar árvores, a podar silvas e tojo. Tem posto os sobrantes num monte que não se queimava porque ele tinha esperança que isto do covid aliviasse e que se fizesse uma grande fogueira quando cá estivessem todos. Os meninos gostam imenso de ver, sentem aquele misto de susto e vontade de vencer o medo. O meu filho também gosta.

Mas o monte de mato já era uma montanha, não dava para continuar a amontoar, e hoje decidiu produzir a sua queima. Inscreveu-se no site e, tendo obtido o ok, ao fim da tarde atirou-se a isso.


Quando foi lá para baixo, fui com ele. Estava um resto de sol, um entardecer agradável. Ele a queimar mato e eu a caminhar pelos caminhos em volta. Ia pensando: caminho por caminhar, não com o objectivo de chegar a algum lugar mas apenas pelo prazer de andar. Andar em volta como numa oração mas com a mente desocupada de palavras ou ideias.


Ouvi, então, um carro a parar lá em cima, na estrada. Desviei-me. Era o vizinho que vinha de acomodar as vacas lá em baixo. Pôs-se a falar com o meu marido. Falavam alto, de um para outro, para se ouvirem. Mas não muito alto. Sem qualquer outro ruído, a voz propaga-se bem e, mesmo à distância, ouviam-se bem. Percebi que falavam dos isolamentos e que o meu marido dizia que aqui, por estas bandas, no campo, o bicho não entra. Enquanto caminhava por entre as árvores, pareceu-me perceber que o vizinho respondia que não era bem assim, que um senhor da aldeia o tinha apanhado, que até foi levado para o hospital, que a família está toda sob suspeita. Ficaram a conversar, a espaços, com silêncios pelo meio. Quando se despediram, aproximei-me, intrigada. Na aldeia? O meu marido confirmou. Fiquei impressionada, parece-me uma coisa impossível. Tantas vezes que eu digo que por aqui, tudo tão longe uns dos outros, não há perigo algum. No outro dia, eu disse que podíamos ir à aldeia ver se por lá vendem feijão verde, cenoura e batata doce, coisa que consumo em excesso. Dizia eu que qual máscara, qual carapuça, qual cuidado, qual carapuça, aqui o ar é limpo, não há quem pegue bicheza.

Afinal.

O meu marido também estava admirado.


Depois andei a fotografar as florzinhas, os troncos lavrados das árvores cheias de vida, a descobrir outros cogumelos que, confundidos com este tempo outonal, desataram a ressuscitar. A ouvir os passarinhos.

Por acaso, por ali em silêncio, até apanhei um susto. Um restolhar ruidoso, um barulho que quase parecia uma moto aérea. Um pássaro grande levantando um apressado voo à minha passagem. Que som curioso, aquele intenso bater de grandes asasa.

Já aqui estou, de seguida, há tantas semanas e todos os dias me maravilho com o que vejo. Tantas coisas novas, tanta beleza, tanto milagre.

Ah, por falar em milagre. Hoje aconteceu-me mais um. Tomei banho e, como sempre, fui estender o lençol de banho na corda que vai do plátano ao abrunheiro. Passado um bocado, de repente, caíu uma chuvada brutal. Um daqueles aguaceiros tão violentos que pensei que até podia ser, outra vez, uma bátega de granizo. Uma coisa brutal. Estava a ter uma reunião e quase nem ouvia o que diziam tal a força da chuva. Passado um bocado, o meu marido passou ao pé de mim e, olhando lá para fora, disse: podias ter apanhado a toalha. Só então me lembrei dela. Entretanto, tinha parado de chover. Fui lá fora sem saber se a deveria trazer para dentro ou deixá-la, a ver se, com algum bocado de vento, secava. Pois bem, para meu total espanto, estava seca. Seca. Disse ao meu marido. Não acreditou. Eu afiancei: seca. Foi lá fora ver. Seca. 
Não tenho explicação. Não há explicação. À noite contei à minha filha. Ela perguntou: qual é a explicação? Respondi que não há. Perguntou se estava debaixo das árvores. Não, está no espaço aberto entre as árvores. Não há explicação. É um daqueles milagres que por aqui acontecem.

Mas voltando à queima. Gosto daquele cheiro de fogueira, em especial quando se dissolve pelo ar, pelo meio do arvoredo. Na minha cabeça é um cheiro que se mistura aos perfumes do campo, leva-me até à infância, leva-me até memórias que não consigo situar.

Quando regressei a casa, quase ao anoitecer, fiz os telefonemas do costume, os familiares e mais um ou outro profissional. E depois por aqui andei, com aqueles pensamentos meio desencontrados, a querer gostar de aqui estar, apesar do confinamento e da saudade, mas sem querer assumir que gosto. Talvez porque a jornada acabou ligeiramente mais cedo e, portanto, o dia me foi menos pesado, cheguei à noite menos revoltada, muito mais tranquila.


Entretanto, já estive a trabalhar para preparar o dia de amanhã que começa cedo e vai acabar tarde e agora, aqui, como habitualmente, para descansar a cabeça, resolvi espreitar os vídeos. E, treco-lareco, na mouche. Adivinhando que a minha disposição está para peace and love, natureza e harmonia, bucolismo e tranquilidade, tinha para me sugerir daqueles vídeos em que não percebo nada do que dizem. Mas sem problema. O primeiro tem legendas mas são tão miudinhas e o meu computador tem um monitor tão pequenino que não pesco uma. Mas não sinto falta. Gosto na mesma. Já vi duas vezes. Tão bonito. A casa, a luz, as fotografias, os gestos vagarosos, as grandes janelas, as árvores, os verdes, os trabalhos manuais. Uma tal paz. 


Penso: será que um dia vou ser assim, como a senhora deste vídeo? Feliz, apaziguada, vagarosa, toda eu tempo para tudo, para passar as mãos ao de leve sobre as coisas, olhando lá para fora. Fazer pão. Será que um dia me vai dar para fazer pão, para fazer compotas, para organizar as fotografias? Será que um dia vou deixar outra vez crescer o cabelo e fazer uma trança? Quando era adolescente usava muito uma trança. Uma trança de ouro velho como estava escrito num poema. Quando desmanchava a trança, o cabelo caía-me pelas costas, ondulando como fogo. Gosto dessa recordação.


E depois a Liz Qi que, por sinal, também usa uma trança. Aqueles gestos intuitivos, aqueles movimentos decididos, aquelas mistelas, flores com leite de não sei o quê, aqueles cremes com ar de serem doces, saborosos. Ela cultiva, ela colhe, ela monda, ela separa, criva, filtra, ela ferve, ela separa. E eu, sem perceber o que ela está a fazer, deixo-me dicar a ver. Gosto. Se ela morasse na serra, aqui perto, talvez eu lá fosse pedir-lhe que me aceitasse como discípula. Acho que era capaz de passar dias inteiros a aprender com ela.


Uma vez mais partilho algumas das fotografias que por aqui vou fazendo. Gosto de fotografar porque acho tudo muito bonito. Espero que, para quem vê, não seja uma seca. Gostava que também gostassem. Significaria que talvez víssemos o mundo com o mesmo tipo de olhar, um olhar embevecido, agradecido.


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Desejo-vos uma boa terça-feira.
Saúde e alegria.

sábado, julho 15, 2017

Transforma-se o caçador na cousa caçada
[2º de 5 posts sobre fotografias feitas ao cair do dia na praia]



Transforma-se o caçador na cousa caçada, 
Por virtude do muito imaginar; 
Não tenho logo mais que desejar, 
Pois em mim tenho a parte desejada. 

Se nela está minha alma transformada, 
Que mais deseja o corpo de alcançar? 
Em si somente pode descansar, 
Pois com ele tal alma está liada. 

Mas esta linda e pura semideia, 
Que como o acidente em seu sujeito, 
Assim co'a alma minha se conforma, 

Está no pensamento como ideia; 
E o vivo e puro amor de que sou feito, 
Como a matéria simples busca a forma. 



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Onde acima se lê caçador e caçada, Camões escreveu amador e amada

Cena do filme "Lisbela e o Prisioneiro", na qual Selton Mello cita o poema de Luís de Camões "Transforma-se o Amador na Cousa Amada"

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quarta-feira, maio 11, 2016

A matemática e seus labirintos
(infinitos labirintos, diria eu)


Não sou boa a fugir às tentações. Já aqui confessei, reconfessei e volto a confessar. Hoje foi outro dia. Ainda cá fora: não entro, não entro, não entro.

Depois, já hesitante: só espreitar, que hoje não tenho tempo. Depois, a dois passos de me dispor a ceder: só espreitar por dentro, só, só espreitar, só mesmo folhear.

Depois, já a querer arranjar desculpa, perante a inevitabilidade: oh pá, que coisa, não acredito... Depois, por uma última vez (última até à próxima, claro), já a relevar a insignificância do pecado: olha, que se lixe.

E de lá saí apressadamente. Diria: contente como uma menina que tivesse descoberto o lencinho queimado. Descobri, descobri. Vou a correr para bater na parede. Já bati. Três vezes. É meu! É meu!

O teorema de Descartes no poema de Frederick Soddy

Beijam-se quatro círculos,
quanto menores mais curvados
(...)

(Les Indes Galantes, Danse des sauvages - Rameau)

A música é uma ciência que deve ter determinadas regras. Estas regras devem ser esboçadas a partir de um princípio que terá de ser evidente, e este princípio não pode ser conhecido sem a matemática. Devo confessar que, apesar de toda a experiência que adquiri durante um longo período, foi apenas com a ajuda da matemática que as minhas ideias se ordenaram e a luz sucedeu a uma certa obscuridade de que antes me não apercebia.
[in Traité de l'harmonie réduite à ses principles naturels, Rameau]


Segundo a teoria de Euler-Bernoulli, a forma de uma haste ou vareta elástica flexível, sujeita a uma carga uniformemente distribuída ao longo do seu comprimento, é descrita por uma quártica. Consta que em relação com o projecto da Torre Eiffel foi pela primeria vez reconhecida a relevância prática desta teoria.
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Malthus em 1798 escreveu Essay on Population segundo o modelo euclidiano. Partiu de dois postulados: o homem requer alimento e o nível de sexualidade permanece constante. O desenvolvimento do crescimento populacional e de alimentos assenta em modelos matemáticos.
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O matemático brasileiro Elon Lages Limafaz uma observação muito interessante. Defende que Luís de Camões, no segundo terceto do soneto: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades', introduz o conceito de segunda derivada.

No mencionado terceto, Camões desenvolve a ideia de que tudo é mutável e fugaz,
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades
Continuamente vemos novidades,
Concluindo deste modo o soneto:
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto
Que não muda já como soía.
A mudança da mudança -- já com novas qualidades, diferentes das costumadas -- é a segunda derivada.

Matematicamente, a primeira derivada é a taxa de variação e a segunda derivada a taxa de variação desta taxa de variação.


Fita de Möbius, Coimbra

Nas Poesias de Álvaro de Campos, o heterónimo de Pessoa apresenta o conceito de fractal, como estrutura que se repete em várias escalas:
...E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra,
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
A fractalidade está também presente na seguinte afirmação do poeta:
... conheço-me inteiramente, e, através de conhecer-me
inteiramente, conheço inteiramente a humanidade toda.
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Isto e muito mais, incluindo referências à pintura, à atracção de Jorge Luis Borges pelo infinito e mais, mais, num livro surpreendente: 

A matemática e seus labirintos de Natália Bebiano Providência, uma edição Gradiva.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.

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quinta-feira, março 24, 2016

Lá no cabo do mundo onde morávamos durante um momento
- O que é a arte? O que é boa arte?




Os comentários sobre o que ontem escrevi sobre Rui Chafes suscitam questões interessantes e que se prendem com a dúvida de fundo: o que é a arte?

Eu, de facto, não sei explicar porque é que algumas obras me tocam e outras não. Se aprecio arte 'antiga' seja sob a forma de pintura, escultura ou música, a verdade é que o que age mais directamente sobre o meu gerador emocional é a arte mais abstracta. E se, durante algum período, me deixo agradar pelas obras mais clássicas, seja a nível de poesia ou música ou do que for, a verdade é que logo de seguida, como se sentisse necessidade de me libertar, corto as amarras da perfeição e procuro o imperfeito, o rasgão, a fractura, o inexplicável, o que é novo, o que não se parece com nada.

Custa-me trazer-me a mim para o meio da conversa porque não faz sentido invocar-me como 'artista' mas, enfim, falo do que me é mais próximo e que sou eu. Quando fotografo -- e sabem que sou fotógrafa quase compulsiva -- fico em silêncio religioso perante uma paisagem divina e fotografo, claro que fotografo, mas, logo a seguir, só me apetece fotografar pedras, sombras, nuvens, folhas soltas, apontar o zoom para procurar a abstracção contida naquilo que os meus olhos vêem.

No domingo, como vos mostrei, fotografei a Casa da Cerca, os jardins, a vista sobre Lisboa. E foi o que vos mostrei. Mas saí de lá e só me apetecia fotografar o que me parecia insignificante, o pedaço de alma, o imaginado sorriso de alguém ao fazer um graffiti, os ramos nus e vermelhos de uma planta. E o prazer que me dá procurar os pequenos nadas é quase idêntico à contemplação da beleza perfeita.


Mas não sei explicar isto.

É como, por exemplo, com a poesia. Há a grega perante a qual muitos se ajoelham ficando cristalizados no tempo dentro da própria baba. Eu reconheço que há beleza na poesia grega, claro que sim. Mas longe de mim ficar encadeada, cega para a beleza de outras poesias. Mas, claro, é tudo do mais subjectivo que há.

Comprei hoje o livro 'Letra Aberta' de Herberto Helder, poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. 


Ainda apenas folheei. Uns sim, outros ainda não, talvez depois de os sentir melhor. Mas, quando viu o livro, o meu marido encolheu os ombros. Não aprecia Herbero Helder. Vínhamos os dois a andar à noite e a falar nisto e eu comentava que ele nunca tinha saído do período dos clássicos e ele, para me provocar, começou a fazer a gracinha de dizer os Lusíadas e disse e disse. Pasmo com aquela memória. Mas ele gosta mesmo de Camões. Tudo bem. Camões é Camões e é inequívoco, claro que também gosto. Mas, nisto da arte, acho eu que não é para se andar a comparar se este é melhor que aquele nem é, lá porque se gosta de um, já achar que, depois dele, nada mais vale a pena.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas

(Camões)
bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos
que se matem entre eles
a ver quem me odeia mais extenso e fundo:
e eu fora, citando os astros mudos: 
os clássicos!

(Herberto Helder)

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Um dos vídeos que consta de um dos comentários e que eu já tinha recebido por mail contém conteúdo com o qual não concordo completamente pois, como já observei nos comentários, há ali a argumentação levada à caricatura, naquilo a que se pode chamar 'demonstração por absurdo'. 

Contudo, porque é da contradição que nasce o estímulo ao pensamento, aqui o deixo -- e cada um que julgue por si.

Por que a arte moderna é tão ruim? - Robert Florczak


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E, agora, por mim, junto um vídeo sobre um dos pintores que, a mim, muito me impressiona e que é visto, por quem não aprecia o género, como um 'tangas' que pintou manchas iguais umas às outras ao longo de anos: Mark Rothko. Já estive junto a obras originais, em museus, e fico sempre 'agarrada', imersa naquelas manchas de cor, como se delas viesse um silêncio que me envolvesse de forma íntima, sem explicação. Não sou capaz de justificar usando argumentos racionais, apenas sei que é assim.

The Case For Mark Rothko | The Art Assignment



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A parte em itálico do título desta mensagem foi extraído de um poema de Letra Aberta de Herberto Helder


Lá em cima, Catrin Finch, uma artista que eu gostaria de ter sempre junto a mim, interpreta Tides

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.

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quarta-feira, março 16, 2016

Dos Passadiços do Paiva a Lisboa, num dia longo, longo, quase tão longo como este post quilométrico


Tenho que começar que referir que, por me ter posto a responder aos comentários, já estou atrasada e, portanto, a partir daqui vai ter que ser sempre a abrir. Esta terça-feira saí cedo de casa e regressei por volta das 9 da noite: um dia dos valentes, quase sem interrupções. E agora que já jantei (felizmente, ontem à noite tinha deixado já a sopa feita e o peixe pronto), já estive a escolher a roupa para amanhã já que ainda de madrugada tenho que me pôr a caminho -- porque centenas de quilómetros me separam do local onde vou passar parte do dia -- e não consigo às cinco e tal da manhã estar a ensaiar toilettes. Ou seja, esta quarta-feira vai ser outro dia dos jeitosos e, por isto tudo, que ninguém me leve a mal se hoje não conseguir dizer nada de jeito ou se, para me poupar, o post de hoje for mais imagens do que paleio. 

Agora estava a escolher música para me acompanhar enquanto escrevo e andei por Mozart, por Schumann, por Vivaldi e nada me estava a agradar, queria uma coisa mais básica, uma coisa levezinha, lenta, uma voz calma, (apetece-me sossego) e, vá lá saber porquê, apeteceu-me ouvir You belong to me na voz sussurrada da Carla Bruni. Não tem a ver com isto mas, então, fazer o quê se é isto que agora me apetece ouvir?


Há bocado estava numa sala atapetada, móveis do melhor que há, numa sala toda envidraçada que dava para uma das colinas de Lisboa. E, com os meus interlocutores à minha frente, fui observando, por trás deles, a evolução da luz sobre o belo casario de Lisboa.

As casas acompanham o declive da colina, e as paredes e os telhados vão-se sucedendo como numa aguarela de Carlos Botelho. Aos poucos foi entardecendo, a luz esvaía-se, as luzes foram-se acendendo e, por fim, era de noite, só as luzes. Parecia um cenário em mutação. E eu ia-me lembrando de que um dia antes eu via umas outras colinas à minha frente mas não colinas, serras verdes, diluindo-se no azul e nas brumas. Enquanto ouvia as discussões ou participava nelas pensei que não sei se sou a mesma quando mudo de geografia. Parece-se que o meu mundo de vez em quando sai da rota habitual e entra numa outra onde continuo a viver normalmente mas numa outra vida. Depois mudo de órbita e volto a entrar no mundo anterior, sempre normal mas outra.

Um bocado estranho, isto. O que me vale é que não sou dada a grandes divagações senão ficava a magicar nisto, ia à procura de filosofias onde pudesse encaixar esta 'cena' ou desatava a folhear livros a ver se descobria uma certa página onde um qualquer maluco tivesse passado por uma experiência paranormal do mesmo género. Como sou esta simplória que aqui têm, deixo esses arroubos para gente erudita e fico-me pelos meus pensamentos mal alinhavados.

E, portanto, vou mas é deixar-me disto e vou ao que aqui me traz hoje. Ou melhor, ao que está pendente desde ontem: os Passadiços do Paiva. As fotografias são demais, eu sei mas passem por elas a correr se vos chatear. A questão é que, com a pressa com que estou, é-me mais fácil ir colocando do que pôr-me a olhar a ver qual deixo e qual não deixo.

Pois bem. Manhã cedo, eis-nos a caminho. Uma das entradas é na Praia Fluvial do Areinho e foi por lá que nos fizemos à escalada. Talvez se tivéssemos entrado pelo Espiunca a coisa fosse mais branda. Mas não faz mal, ficámos a saber que somos uns atletas -- e isso, como diz o outro, 'não é mau; não é mau'


A água é límpida e fresca. Mas, embora apeteça ficar já por aqui, iniciamos a expedição. Primeiro vai-se por uma estradinha de terra batida mais ou menos ao longo do rio.


Encontrámos grupos, jovens, e um ou outro casal mais como nós. Ou seja, que ninguém ache que isto não é para i: é para toda a gente (desde que tenha boas pernas e bom coração).

Depois começa o passadiço. É um corredor de madeira, com tábuas laterais também em madeira. O perfume aqui é doce, muito agradável: é o cheiro da madeira macia, é o cheiro dos pinheiros, dos eucaliptos, da urze. Tão bom, tão bom.

O passadiço vai-nos levando ao longo do rio e começa a subir.


Por onde vamos andando, a paisagem vai variando. Ora mais escarpada, ora mais florestada, ora campos verdes onde ovelhas meditam, tranquilas na sua sã existência.


Uma nascente canta e salta, a água transparente, e elas felpudas, brancas e tranquilas, sem entusiasmos como o meu.


À medida que vamos caminhando, começamos a reparar no que nos espera. Como uma fita que mal se vê, o passadiço desliza ao longo da encosta, subindo, subindo. Cherchez le passadiço na fotografia aqui abaixo.


À medida que a subida começa a apertar, penso que espero bem que aquilo esteja bem preso à rocha. Acho que deve estar porque não abana, parece bem preso, mas, de qualquer forma, fotografei para mostrar ao meu filho. Digo que isto deve ser uma obra de engenharia complicada e o meu marido diz que coisas destas se fazem desde sempre. E, de facto, isto faz-me lembrar as escadas de madeira para os templos budistas. Ou se não for para os templos budistas é para uma coisa qualquer do género.


Já estamos cá em cima, o rio já lá bem em baixo, uma paisagem linda que só vista, o sol a aquecer, as pernas já a sentirem-se. Fotografei aquele passeante aqui abaixo para se ter uma melhor perspectiva do que se vê.


E há troços em que quase parece que estamos suspensos sobre as águas mas já quase mal se ouve o bater nas pedras pois já começamos a estar perto do céu.


E há varandins onde apetece ficar sem pensar, sem dizer nada, só ouvir, sentir os cheiros, não pensar. Penso: num dia de frio e neblina deve ser bom aqui estar -- trazendo um termo, beber um chá, sentada num degrau e contemplar o que é esta terra que habitamos.

Mas está sol e calor e eu limito-me a beber água e a continuar a subir.


E subimos e subimos e continuamos a subir, mais degraus do que o Bom Jesus ou esses santuários que foram postos lá bem em cima para testar a fé dos crentes.  Parece que estamos a subir para uma casa na árvore. O coração começa a bater mais apressadamente. Não se sabe se é paixão pela beleza da paisagem se é de tanto e tanto e tanto degrau.


E subimos e subimos, o rio cada vez mais estreito lá em baixo, um fio de azul no meio do verde e nós a subir, a subir.


E a ponte de pedra lá em baixo já parece um arquinho e vêem-se zonas de verde transparente e há fundões e perigos e parece que somos pássaros e que podemos voar


Os pássaros cantam, estonteados, tanto oxigénio deixa-os libertos de peias, o perfume das árvores e dos arbustos é intenso e o rio é azul quando as águas correm e branco quando saltam sobre as pedras.


E estamos alto, muito alto, e agora chegamos a uma estradinha cá em cima, nós já no céu, cansados, alegres como os pássaros, e o cansaço passa logo, as pernas já estão outra vez mais leves e a beleza é tanta, tanta, que penso que não sei como vou passar sem ela.


E então entramos noutro troço, diferente, a água cor de esmeralda, o rio estreita-se, há desníveis, pequenas rochas no leito e a água irrequieta, feita espuma, e as rochas da encosta por vezes cobertas de amarelo, e tudo tão eterno.


Os matizes do verde, do azul profundo, as rochas brancas, o canto dos pássaros. Como transmitir tudo isto a quem não tem a possibilidade de aqui vir?


O passadiço começa descer para junto ao rio que aqui é verde, requintado.  

E aqui o meu marido começa a dizer que o melhor é voltarmos para trás senão não vamos ter pernas para fazer o percurso inverso. O passadiço inteiro são 8 quilómetros e, na ponta, há táxis para levar as pessoas de volta ao carro mas resolvemos não nos estafarmos para lá da conta.


Esqueci-me de dizer que, pelo caminho passámos pela Garganta do Paiva, de onde a água jorra branca e fragorosa,


E há uma varanda de onde se vê esse jorro de água e de onde a vista é maravilhosa; e há escadas e mais escadas e há árvores que dão sombra e eu fotografo e fotografo, encantada com tanta, tanta beleza.


E depois regressamos e a descer já não há memória do cansaço, só há uma leveza de alma. E espero que tenha ficado dentro de mim uma reserva de beleza que me ajude a atravessar outros dias, dias mais cinzentos onde a minha vista não alcança lonjuras e onde não há pássaros que cantam com uma alegria que vem do princípio dos tempos.

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Não vou conseguir rever o que escrevi pois estou com sono e daqui a nada tenho que estar a pé. Se as vírgulas estiverem a levantar voo ou as palavras se tiverem perdido entre as margens do Paiva, relevem, por favor.
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Quem queira testemunhar o deslumbramento que senti quando cheguei à Serra da Freita e vi aquelas belas vistas e me cruzei com animais em plena liberdade, a minha visita à Serra da Freita e seus lugares mágicos, às Igrejas, Santas e Freiras  da Vila e, finalmente, à bela vila de Arouca, é só seguir os links.

E, se o fizerem, espero que fiquem com vontade de lá ir. porque eu já estou com vontade de lá voltar.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quarta-feira.