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domingo, setembro 15, 2013

O suave correr do tempo nestes dias de fim de verão aqui, in heaven.


No post abaixo falo de um lugar clandestino habitado por silhuetas para onde gosto de me esgueirar para dançar um tango e ouvir palavras de amor (tudo se passa apenas em sonhos, mas paciência).

Mas aqui, agora, o tom é outro.

****

Que soe a música do Romance


(Mozart)



O sol em Setembro é muito doce e eu aproveito o seu calor brando e a sua luz suave, andando pelos caminhos em que por vezes as árvores fazem uma sombra rendilhada, sentindo sobre a minha pele a macieza de quem se prepara para se despedir.

Estou in heaven. Agora que estou a escrever, muito tarde, noite avançada, a temperatura baixou bastante. Há instantes, abri a porta que dá para a rua e estive aqui fora, gosto de sentir este fresco. As árvores tapam a lua. Poderia aventurar-me mais, às escuras, para a poder ver, nua e branca como eu. Mas tenho algum receio. E está frio.




Embora sozinha, a estas horas tardias, não me aventure para muito longe da casa, gosto de estar na rua de noite, ouvindo os sons vagabundos que não se percebem de onde vêm. Bichos? O vento? Recordações? 

Mas se agora está frio, de dia esteve um sol quente, bom. A hora que prefiro é o cair da tarde. Os cheiros intensificam-se, os pássaros aquietam-se, as sombras ficam elegantes.

Estive deitada no banco de pedra que está ao pé do grande pinheiro que não pára de crescer. Se tivesse o corpo coberto talvez a caruma que tapava o banco fosse uma cama macia. Assim, para não me picar, retirei-a, deitei-me directamente na pedra. Gosto de olhar o céu através da copa das árvores.




Ali estive, vendo os desenhos que as sombras desenhavam no muro. Lembrei-me de Barceló que, na entrevista ao Expresso, diz que anda a usar apenas o branco nas suas pinturas. Aqui havia também o cinza desenhando arabescos no muro que também já não é branco, o tempo vem enriquecendo a sua cor.


Do banco onde me encontrava ia sondando com o olhar os caminhos que, em tempos, imaginei e que agora vejo como os via dentro dos meus sonhos. 

Labirintos abertos por onde é bom andar, por onde é bom ir vendo como o tempo os vai mudando. 

Daqui a nada será inverno, o verde do musgo invadirá o chão, os muros, nascerão cogumelos imprevistos, as árvores escorrerão da frialdade da noite, os pássaros estarão escondidos.


Mas agora ainda nem sequer é Outono, agora é apenas o Verão que começa a despedir-se.


E depois, aos poucos, a luz foi ficando mais dourada e eu, encantada, desloco-me como uma gata procurando os melhores recantos, aqueles em que a luz se detém mais demorada, mais dourada.




Pode ser entre a renda de uma teia, a luz quase prateada, aprisionada entre um esboço de folhagem: e eu ali fico, maravilhada. Nada se compara à beleza das coisas simples.




Na mesma árvore coexistem as folhas ainda verdes e as que já estão folheadas a ouro. Tanta a fragilidade destas (de todas, aliás). Sei que estão assim douradas porque o seu fim se aproxima. Mas para que vou estar a pensar nisso? Agora ainda aqui estão e isso é o que interessa, que alguém as olhe e as ache belas (porque a beleza só sabe bem se virmos reflectido no olhar dos outros o encantamento que a beleza desperta).




Gosto de fotografar o beiral ao longo do ano. O céu vai mudando, a folhagem também. Na Primavera a folhagem está viçosa, o céu incerto; no Verão está assim, de um verde quente, quase dourado, o céu despreocupadamente azul;  não tarda, no Outono, vai estar cor da terra à qual as folhas estão quase a voltar, e o céu começará a toldar-se. No Inverno os ramos estarão nus, prontos para acolherem os rebentos que virão para renovar a vida e o céu estará branco ou cinzento, carregado de água.

E eu, cá em baixo, olhando o beiral e o plátano e o céu e vendo o tempo que passa.




Se estou na cozinha a esta hora do sol que se põe, perco-me a olhar cá para fora mas hoje olhei a janela da cozinha pelo lado de fora e quase me vi lá dentro, parece que eu já estou nas coisas deste lugar. Gosto tanto da minha cozinha, tão luminosa, tão boa para se estar lá a preparar as refeições. Há uma chaminé larga sobre o fogão e, quando estamos cá fora, se há comida ao lume, sentimos o cheirinho bom que sai e se espalha no ar, misturando-se com o perfume da figueira, dos cedros, dos pinheiros.




Continuo a andar pelos caminhos, por entre as árvores. Podia ser uma gata, eu. Às vezes passa aqui à porta uma gata sinuosa (ou um gato, não sei). Olha cá para dentro, curiosa, e depois segue. Tolera, portanto, a nossa presença. Ou podia ser um pássaro. Há aqui muitos pássaros. Sinto-os mais do que os vejo. Já pensei: vou arranjar uns pratinhos com sementes e vou espalhá-los por aí, em cima dos muros ou dos bancos, para ver se os atraio, quero vê-los de perto, quero que se habituem a andar ao meu lado, quero que me ensinem a voar.

Espreito por entre o alecrim, a folhagem da azinheira e do pinheiro, que dourado que está tudo, que doçura que há no ar. Vejo como a luz dourada ilumina também as outras mulheres que aqui habitam, as de Rivera, as de Szenes, outras.




Até que o sol quase se põe, começa a esfriar, terei que vestir qualquer coisa ou que me recolher. E é já de dentro de casa, à porta, que espreito o pôr de sol, o céu que fica encarnado, as árvores que adquirem um ar secreto.




Depois ficou de noite. Tão silenciosa, tão boa. A casa em sossego, os meus livros aqui desarrumados ao meu lado, vocês aí desse lado velando por mim. Lembrei-me agora de ir espreitar as estatísticas para poder escrever isto: só nesta última hora (entre a 1:19 h e as 2:19 h) estiveram aqui, junto a mim, trinta e seis pessoas, grande parte de Portugal mas doze do Brasil, duas dos Estados Unidos, duas da Venezuela e uma da Alemanha. Mas não são números. São anjos bons, são amigos, são luzes brilhando no horizonte? Não sei. Mas sei que gosto muito de estar a escrever e saber que vocês estão aí.


Amanhã irei de novo lá para fora, colher raios de sol, apanhar figos, pôr outros a secar, ver se ainda há amoras, apanhar uvas, comê-las logo de seguida, estão doces como mel, percorrer caminhos à procura de sombra que o sol, de dia, está quente, tentar descobrir pássaros no meio das ramagens, depois deitar-me a ler, ao sol, sentindo a luz a aquecer docemente a minha pele.

Mais tarde, à noite, já olhando o rio, aqui virei de novo para vos deixar as minhas palavras. Bem hajam vocês, por gostarem de vir fazer-me companhia. Obrigada mesmo.

*

Um rasto de água arde sobre o corpo,
cresce mansamente dentro dos olhos,
salta-me húmido pelos lábios.
Pequeno fruto trazido pela aurora,
um jogo de volúpias azuis ao anoitecer.

Enlouqueço nas trevas, ébrio do teu cheiro,
quando a ausência se desenha
e sinto o estrangulado desejo da rosa,
a fria e frágil flor em que te desfolhas.
Luz, labareda, sangue e fogo.

Um sismo desliza-te pelo ondular do ventre,
se eu chego na lonjura do tempo,
se te cavalgo no cerrado campo do corpo.
Uma silhueta vem na sombra do silêncio:
toca-te os olhos, desce sobre o mar


['433. Um rasto de água ardia sobre o corpo' de Homo Viator]


«««»»»

Permito-me relembrar o Hernando's Hideaway em duas versões dançantes já aqui abaixo.

E, por agora, nada mais - apenas quero ainda desejar-vos um domingo cheio de graça.

sábado, setembro 07, 2013

Enquanto os meus amores dormem, eu rendo-me ao prazer das palavras inteligentes e luminosas e festejo, como uma menina radiante, os presentes que os meus amigos deixam aqui à minha porta. Momentos bons. __________ [Ontem o Um Jeito Manso recebeu de visita uma capicua - atenção: eu disse capicua, não catatua. Quero eu dizer: tive ontem 1.111 visitas. São sempre muito bem vindos, venham em capicuas ou com catatuas ao ombro. Muito obrigada por tudo!]


Depois de uma noite de quatro horas, de um dia dos danados, uns seiscentos quilómetros de autoestrada, muito falatório em inglês (coisa que, parecendo que não, cansa um bocado mais do que na língua nativa), depois da agitação de tipo hora de ponta a fazer jantar com toda a gente já a querer comer, e depois, à mesa, um a fazer gracinhas como querer atirar a papa pelos ares e outra a querer ir tirar um e outro cafézinho, e depois de muita brincadeira, desenhos, saltos na cama e, para rematar, a história da cinderela, eis que dormem os dois.

Mais doces, mais fofos, uns texuguinhos mais lindos. 




Amanhã juntar-se-ão os primos e a festa será ainda mais animada. Por isso, enquanto a coisa está calma, deixem-me descansar. Peace and love. And quiet night, please.


O mio bambino caro, Puccini pelas Meninas Cantoras de Petrópolis




Entre muitos milhares de sítios e muitos milhares de pessoas, coloca-me a sorte junto à fazedora de poemas que, por vezes, aqui vem deixar a luz das suas palavras. Da primeira vez soubemo-lo depois, porque aqui mostrei as fotografias onde tínhamos estado as duas a escassos metros uma da outra. Da segunda vez, porque conheço o filho (quem o não conhece?) imaginei que seria ela mas não tive a certeza nem vi como me aproximar não tendo a certeza. Ela não me viu nem me conhece. Mas sabe, a posteriori, que eu ando ali por perto, sem que ela me pressinta.

Há coisas que não se explicam.

Em dia de histórias, conto eu, pois, este conto. Era uma vez uma mulher especial com dois filhos especiais que já lhe deram três princesas muito lindas. Nuns dias ela embala as princesas, veste-as de folhos e cores, noutros deixa que os sonhos voem feitos palavras. Tenho a sorte de, por vezes, essas palavras virem aqui pousar. Esta noite tinha estas no parapeito da minha janela:

              Não analises um poema
              deixa que seja ele a explicar-te o som a cor o tamanho das coisas                                  mais banais
              deixa que ele se ilumine
              te ilumine
              e pouco mais...
              despi-lo é violá-lo
              e se o amas apenas tens de senti-lo
              e tão só
              amá-lo


Mas eis que o Poeta-Filósofo me desarma. E eu rendo-me. Touchée.

Diz ele:



Ocorreu-me agora uma coisa sobre a análise poética. 

Há um prazer específico que lhe está associado. 

Esse prazer tem uma natureza infantil e é idêntico ao da criança que, depois de brincar com um certo brinquedo e porque gosta dele, o vai desmontar para ver como funciona. 

Esse desmontar nasce de um acto de amor. O que se pode concluir daqui? Que a análise é um acto infantil. 


Talvez, mas há uma outra possibilidade: pode-se concluir que o amor é uma coisa perigosa. 

Por exemplo, só analiso poemas de que gosto. 

Relativamente à criança o analista tem uma vantagem. O brinquedo desmontado raramente volta ao que era. O poema permanece na sua inteireza. 

Há ainda uma outra coisa, e essa é perversa. Há duas formas de pureza, a da razão e a do coração. 

A filosofia estriba-se na pureza da razão, a sua leitura da poesia, na pureza do coração. 

A análise provoca a contaminação e utiliza a razão para alcançar um excesso de gozo, para um prazer que ultrapassa o prazer inicial.



Com esta argumentação, já percebo melhor a motivação de quem abre um poema para o ver por dentro. 

E que palavras maravilhosas.

Já o jrd tinha concluído e, como sempre, directo e certeiro:

Jorge C. Maia para além de ser um filósofo é também um grande poeta, por quem tenho uma enorme admiração, mesmo quando dele discordo.


Um dia comentei no Kyrie Eleison que "a poesia é uma arma carregada de futuro" (Gabriel Celaya) e ele não concordou. Que fazer, pergunto eu, se os Poetas sabem sentir muito mais do que nós?


Pois é, jrd.

É claro que um engenheiro (engenheiro que é engenheiro é engenheiro toda a vida) fala outra linguagem (mesmo quando também é poeta). E diz: Quando eu era engenheiro de telecomunicações aprendi que para comunicar é necessário um emissor, um canal de comunicação e um receptor e claro, uma linguagem percetível a ambos e capaz de ser transmitida. A arte para mim é essencialmente uma forma de comunicação de emoções, de sensações, de “estados de alma” ( que infeliz esta expressão!!!). Se o emissor não faz a mínima ideia de que está ou o que pretende comunicar e se o canal de comunicação, o texto ,a escultura ,a foto, a pintura não funciona, o pobre do receptor só por acaso poderá receber alguma coisa. E se recebe não é obra do “artista” mas sim do Senhor Acaso.

Quer que eu o rebata, Senhor Engenheiro? Lamento. Não o faço. Concordo.

Paula Rego
(Feias? Macacadas? .... Não acho.
São mulheres normais, apenas isso)

Mas antes já me tinha dado motivos para o fazer. Disse: 

Porque me irritam solenemente o Pedro Cabrita Reis ( com uma sala dedicada na Tate Modern) ou o Julião Sarmento (o artista plástico que mais vende no estrangeiro) ou até a Paula Rego (com personagens sempre horrendamente feias, prefiro de longe as macacadas que fazia anteriormente), a Gabriela Llansol (com tracinhos originais em vez de palavras), o Gonçalo M Tavares (totalmente incompreensível) ou o António Lobo Antunes actual ( um híper chato labiríntico)





E aqui tenho pontos para discordar. Rebato quanto a Paula Rego, uma pintora 'maluca' cá muito da minha estimação, ou a Maria Gabriela Llansol com palavras fantásticas por entre os tracinhos. Quanto aos outros também não rebato, com excepção para as Crónicas de Lobo Antunes.


E depois chega uma pessoa muito querida, tratadora de mantos de anjo, que, por pura generosidade, uma generosidade que agradeço, perde toda a isenção e diz uma enormidade destas:  Parabéns pela escritora, pintora, criadora, etc., que é. 

Aqui é que eu tenho que rebater à séria: pela imensa admiração que sinto por escritores, pintores, criadores artísticos em geral, tenho que dizer com toda a sinceridade: gostava muito de ser isso tudo - mas não sou. Sou uma aventureira, uma descarada, uma inconsciente, sou muitas coisas deste género mas escritora ou pintora, lamento muito, mas não sou. 

Sou uma menina deslumbrada pela arte e pela inteligência dos outros, pela natureza, pela beleza, pelo cheirinho bom dos meus amores pequeninos, pela vida, pelo que conheço e pelo que sei que um dia hei-de ainda conhecer e também pelo que sei que jamais chegarei a conhecer. 

Recebo dos meus amigos presentes valiosos, sorrisos, palavras que me tocam e maravilhas como os vídeos que me foram enviados. Escolho um deles, aquele que representa uma menina como eu.




"Argine" - Wonderful animation


****

A fadinha voadora e a bailarina suspensa, penso que já anteriormente aqui mostradas, e que agora se encostaram às palavras do JCM, são pequenos seres que se movem quando a janela deixa entrar a aragem e que, deste modo, espalham graça sobre mim enquanto aqui escrevo. 

****

E, por agora, nada mais. Vou descansar porque estou mais para lá do que para cá. 

(সেম কুএরের কার্রেগুই নুমা তেচ্লা আলী এম সিমা এ অ কইসা ইস্টá অ সির আসিম। ক কইসা দ কারাçএস সেরá এস্টা? লেইও আলী ন বতãও ক é অ ত্রান্স্লিতেরাçãও দে পালাভ্রাস এস্ক্রিতাস ফনেতিকামেন্তে এম ইংলêস. দেভে সের দা হরা মাস নãও পের্সেব বেম ক রিও দে কইসা é এস্টা).

Adiante.

Tenham, meus Caros Leitores, um sábado muito bom.

sexta-feira, setembro 06, 2013

Ler poesia. Ouvir poesia. Sentir a poesia. Perceber a poesia. Analisar poesia. Escrever poesia. ------ [E mais um Cadavre Exquis Poético - para ajudar a responder à pergunta: faz sentido analisar a poesia?]


No post abaixo, festejo o regresso de Pedro Mexia à blogosfera. Um malparado muito diferente daquele a que nos habituámos. Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, a conversa é outra e tenho que tentar ser breve porque daqui a nada tenho que estar a pé que me espera mais um daqueles dias que começa antes do sol raiar. 

Vou aventurar-me por terrenos em que escorrego mal ponho o pé. Sei bem disso. Mas fazer o quê? se gosto de andar por sítios assim. Vou escolher umas imagens que têm o seu quê de infantil para que vejam bem que não me tomo a sério e que, ao dizer o que vou dizer, assumo que, deve ser o meu lado pouco adulto (ou inculto) a manifestar-se.

^^



Música por favor, 
que esta é conversa que se debruça sobre o sonho (ou sobre a fala) dos anjos


Arvo Pärt


^^

Leio poesia há muitos anos, desde os meus treze anos talvez. Tenho uma estante própria e de boa dimensão para poesia e, ainda assim, a mesa em que escrevo tem a toda a volta (é redonda) vários montes de livros de poesia. Tenho uma necessidade que é da ordem da adição: todos os dias tenho que ler um poema, um ou mais. Apenas em férias interrompo. Mas, por vezes, como qualquer viciado em estado de carência, abro um livro e leio um poema, mesmo que de fugida, mesmo que a total despropósito. 




Sou leitora assídua de poesia mas não sou uma leitora exemplar. Sou aliás a antítese disso. Não pego num livro e não começo a ler de seguida, página após página. Nem consigo nunca começar pelo princípio. Não sei porquê mas não consigo. Mais depressa vou ler o último ou o índice. Gosto de ler o índice para ver se, pelo nome, consigo ir direitinha ao melhor. Se não acerto, o que faço é abrir ao acaso e ler e depois andar para trás ou para a frente. Se me agrada o início de um poema, leio-o todo, senão passo para outro. Depois não fico a interpretá-lo nem a tentar perceber o que significa. Impossível fazê-lo. Na poesia eu acho que as palavras saem porque saem ou saem porque têm um significado para quem as escreveu. Depois de o terem escrito de forma inconsciente, se calhar, os poetas rematam as pontas, tiram os alfinetes, sobem as bainhas, essas coisas, acabamentos. Se calhar, só depois o dão como pronto.




Que me desculpem os estudiosos, a boa gente séria que sabe como desmantelar um poema sem o estragar, para que à vista desarmada ele continue a parecer aquilo que era, um poema genuíno. É ignorância minha, eu sei, mas parece-me que querer descobrir algum significado num poema parece-me um acto de divinação absurdo, ou um acto de voyeurismo despropositado. Ou seja, interpretar um poema parece-me estultícia. Mas que não se zanguem comigo os que o fazem e fazem bem – como confessei, não sou bem comportada, não sou boa aluna, não sou by the book (em nada nesta vida). 

Mas isto de querer interpretar o que os outros fazem, sejam os outros poetas, pintores, músicos, faz-me lembrar uma entrevista a Paula Rêgo. Dizia ela com aquela sua irreverência inocente: sei lá porque é que pintei aquilo, apeteceu-me, saíu assim, às vezes está ali um espaço vazio e ponho lá qualquer coisa para encher. Numa tela, estavam uns tomates no chão ao lado de uma cama. Disse ela: sei lá porquê, não faço ideia de como lá foram eles parar


Miró


Miró disse o mesmo. Quando acabava e pintar, deixava os pincéis de molho. Quando no dia seguinte lá chegava, de novo, tinha que lhes tirar o excesso de água. Sacudia-os para cima das telas. Depois, a partir dos salpicos, ia desenhando pintinhas, bolinhas, quadradinhos, juntando umas coisas. Fartava-se ele de rir com as interpretações que lia depois sobre os símbolos e a significação e essas coisas.

É até ridículo eu agora juntar-me à conversa mas, afinal, quem me impede? Vocês que estão aí sossegadinhos desse lado, tão longe de mim? Têm lá vocês a capacidade de me porem uma mão à frente da boca? Não têm. Ou melhor: conseguem estender o vosso braço e agarrar a minha mão para que eu não escreva mais disparates? Não. Estão longe demais. Portanto, agora a protagonista passo a ser eu. Sempre inconsciente.

Sabem que eu pinto. Agora menos, tenho cada vez menos tempo para fazer tudo o que gosto (isto dos blogues ocupa-me muito do tempo que usava para pintar). Pois eu, por vezes, era tomada por uma vontade compulsiva de pintar. Mas pintar – e a frase acaba aqui pois era de pintar que tinha (e por vezes ainda tenho) vontade, não de pintar alguma coisa em concreto. Vontade de olhar para uma tela em branco e depois, sem saber como nem porquê, ir juntando cores ou figuras. Depois as pessoas olham e vêem coisas e pedem-me explicações. Fico sem jeito, receio passar por mais maluca do que sou na realidade. Mas, a sério: não sei o que responder. 

Houve uma altura em que havia sempre duas freirinhas, ajoelhadas a um canto. A pintura podia meter mulheres nuas, corpos expostos, flores viscerais, sexos, montes, cavalos, gente em cima de árvores, portas, muros, labirintos, a sombra caindo sobre um muro, o que calhava, mas lá estavam sempre a um canto aquelas duas, vestidas a rigor, ajoelhadas, a rezar. Matéria para análise é o que não falta ali. Podem dizer que era a libertinagem total e que as freiras representavam a minha consciência. Tretas. Apareciam-me como uma paródia. O que sei é que pintar assim é a loucura, o prazer da liberdade total. 

Uma vez pintei uma ‘cena’ completamente improvável. Nessa altura andava a pintar cidades, torres que se cruzavam, camadas de prédios, o sol a bater nos prédios, viadutos e pontes que entravam e saíam dos prédios, prédios de formas bizarras, curvos, superfícies irregulares, cada parede de sua cor, cidades abstractas, feéricas. Pois bem, numa dessas pinturas pintei as pernas de uma mulher de saltos muito altos, uma mulher que, pela proporção, devia ser gigante pois andava sobre os prédios, um pé em cima de um, outro pé em cima de outro. E num canto do quadro via-se uma outra coisa: uma mão de mulher pegando no pobre pénis de um homem, pegando com o cuidado que se usa para pegar numa coisa frágil. 

Estas imagens, a das pernas da mulher e a mão da outra a pegar naquele pobre órgão, estavam a preto como se fosse quase uma sombra que se projectava naquela paisagem urbana. Uma coisa de que gosto especialmente é de dar nomes aos quadros. Só dou no fim porque só no fim é que vejo o que saiu. Àquele dei o nome ‘Women rule’. Reparem: não pensei que ia pintar um quadro que representasse o poder das mulheres nas sociedades modernas. Nada disso. Foi exactamente ao contrário.

Como gostei dele, emoldurei-o e coloquei-o na sala. Faço coisas assim, sem pensar. Lá em casa geralmente estamos nós, os filhos (já habituados – mas ainda não confortáveis com o que vêem ou lêem) e netos (na altura ainda não existiam), o genro (que deve achar isto uma coisa do além), a nora (que talvez ache piada), na altura os meus pais (o meu pai não dizia nada e a minha mãe ria-se como se eu fosse um caso perdido). Mas o pior foi no dia em que, pela primeira vez, depois de eu lá ter colocado o quadro, lá foi uma família, agora nossos parentes, pessoas conservadoras, tradicionais, católicos praticantes, gente atilada, tudo o que eu não sou. Quando ele começou a fazer o périplo por aquelas pinturas eu senti um calafrio, ó caraças que não me lembrei, devia ter escondido o sacana do quadro. Bonito serviço. O que é que ele vai pensar? Ai… Mas enfim, educado e cavalheiro, reparei que esboçou um quase imperceptível sorriso e seguiu, sem fazer uma referência. Depois disse que tinham muita força, muita vida, coisas assim. Pois. 

Agora imagine-se se algum sábio da coisa, um crítico de arte ou coisa do género, se metia a comentar aquilo. O que eu me ia fartar de rir.




É como a poesia. Leio e gosto ou não gosto. E por vezes não me diz nada, outras abre-me portas, outras varre-me a pele, outras é uma melodia que murmura dentro de mim. O que eu gosto de fazer, e faço muito (quando escrevo no Ginjal - coisa de que tenho andado arredada porque o tempo de verão leva-me para outras solicitações), é escolher um poema, copiá-lo para o blog e depois, sem pensar, tem que ser logo de seguida, enquanto as palavras do poema estão à solta dentro de mim, ou seja, ainda não assentaram nem se dissiparam, desatar a escrever o que me ocorre acerca daquilo. Recrear a situação, ou inventar uma situação em que as palavras do poema fizessem sentido. Ou outra coisa qualquer. Não sei. Não paro para pensar. E mal acabo de escrever, bye, bye, fecho o Ginjal e parto para outra. Aquilo fez sentido no estrito momento em que ocorreu, mal acabou, já sou outra. Já me aconteceu, raramente mas aconteceu, reler o que escrevi (acontece, por vezes, quando me quero certificar de que ainda não coloquei um certo poema, fazer uma pesquisa e ir parar a certa pagina que releio). Fico sempre espantada com o que escrevi.  Mas nem tento perceber o que escrevi, nem o que poderia aquilo ter significado na altura, ou as técnicas que usei ou o que for. Felizmente ninguém se deita a tão inútil e descabido exercício.




Li o exercício que o JCM escreveu na quinta feira no seu excelente Kyrie Eleison. Claro que, lendo o que ele escreveu, percebo que faz sentido. E está bem escrito e é inteligente o que ele diz. Mas acrescenta o quê à compreensão do poema? A intenção é que, quem o não tinha percebido, lendo a explicação, o releia com outra atenção e o compreenda melhor? Se calhar é. Quando tive aulas de língua Portuguesa no liceu fazíamos este tipo de exercícios. Tanta gente se entrega a isto que com certeza faz sentido. Eu é que sou atípica ou rústica (e não estou a  ironizar). Eu leio o poema sobre o qual o JCM se debruçou e a única coisa que me ocorre é que gostava que o meu amor o decorasse e mo dissesse num sussurro ao ouvido. Em francês de preferência. Mais do que isto não sei dizer sobre "Le Toucher".




Já no outro dia o JCM tinha falado sobre a análise poética e trocámos impressões sobre o tema. 

Para mim, ler aqueles exercícios de análise é como se eu, gostando de uma flor - e tanto que eu gosto de flores - em vez de me limitar a vê-las, tocar-lhes, cheirá-las, fotografá-las, pintá-las, me pusesse a ver compêndios de botânica, a estudar a respectiva taxonomia, a ver se o rebordo da folha é assim ou assado, se a superfície da folha é assim ou assado, etc. Devo dizer que tenho livros desses: por gostar muito de flores, pensei que, estudando-as, as apreciaria melhor. Errado. Não apenas não tenho paciência para isso como não percebo qual a utilidade prática para mim que sou amante em estado bruto. A beleza para mim tem que vir nua, em estado primitivo, sem taxonomias, gramáticas, burocracias.



Paul Klee


Já aqui uma vez o fiz e é exercício que gosto de fazer: um cadavre exquis poético. Ou seja, pegar em bocados de outros poemas e ir juntando peças até que soem como um poema. O resultado pode parecer um poema que nasceu pelas vias normais mas eu sei que nasceu de um exercício de assemblage, que é um patchwork, um ser fabricado.

Mas vamos supor que eu não explicava isso. E vamos supor que, por algum estranho acaso, algum estudioso resolvia analisá-lo. Poderia resultar um exercício muito racional. Mas faria sentido atribuir significados a coisas que resultaram de puro corte e costura?

Não sei. 

Agora que falei nisto, vou fazer outro cadavre exquis. Vejamos o que vai sair.




                                                    Olho. 
                                                    Um mecanismo de seda
                                                    de gaivotas traídas pelo fogo da tarde
                                                    rasga o horizonte 

                                                    São as horas solitárias em que a noite nasce,
                                                    traça um rumor de alfazema sobre a terra

                                                    A noite desceu pelo rio da saudade. 
                                                      
                                                    Sentemo-nos no silêncio desta hora.
                                                    Ergue-se flamejante
                                                    a sombria sombra da minha sombra. 
                                                    a sombra da minha sombra ao partir.

                                                    E deixo fermentar as imagens
                                                    que trago no fundo do corpo.
                                                    São restos do mundo que amei,
                                                    os montes, a luz verde da salvação.


Gosto de fazer isto.

Todos os versos foram retirados dos vários poemas do JCM publicados durante este mês de Agosto no Kyrie Eleison. O que é que eu quis dizer com este poema? Nada. Não escrevi por mim uma única palavra. E, no entanto, agora que o leio, parece fazer sentido e parece ser algo que eu, um dia, poderia ter dito ou vir ainda a dizer. Vá lá alguém explicar isto.




***

Uma vez mais que me desculpem os linguistas, os estudiosos apaixonados pela língua, os amantes de literatura, os investigadores. Sabem o que fazem. Eu se calhar não. Mas é que eu acho mesmo que da poesia ou se gosta ou não - e a única coisa a fazer em relação a isso é ler. Ou ouvir ler. Ou esperar que a vida nos traga a maturidade ou a leveza para que saibamos gostar. Pode ser um ano, uma vida. Ou um dia. E por vezes, ah por vezes, num segundo se evolam tantos anos.




E por vezes, David Mourão-Ferreira


***

É tarde e daqui a pouco estou a caminho. Tenho que me ir deitar e, por isso, não vou reler. Espero que não existam erros graves, coisas sem sentido, porque não vou poder corrigir. E mal chegue a casa, ao fim do dia, tenho baby sitting. Por isso, vou fazer figas para isto não estar tudo baratinado, tal o sono que tenho em cima de mim e dado que não vou poder atender a SOS's que me avisem de enganos.

Relembro: as coordenadas para o novo blogue do Papa Pedro Mexia estão no post seguinte.

***

E nada mais senão pedir-vos desculpa, uma vez mais, pelos meus excessos: se isto é tamanho que se apresente na internet, senhores...? 

E, sobretudo, resta-me desejar-vos uma belíssima sexta-feira!