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domingo, julho 26, 2020

Em dia de grandes arrumações, eis que aparecem mulheres sem cabeça, peças que, com o tempo, se desintegraram, fotos que mostram gente que já não existe, moedas, pilhas e canetas tresmalhadas como se não houvesse amanhã, testes de orientação vocacional e sei lá que mais







Dia de arrumações, de limpezas. Desde manhã até ao fim do dia. Estou, naturalmente, cansada. E ainda a procissão vai no adro. Aqui há algum tempo, uma arrumação destas aconteceu com os roupeiros. Sobre as sacadas de roupa que dei, tenho ideia de que aqui deixei registo. E agora ainda hei-de lá voltar de novo. Mas, por enquanto, tenho estado com gavetas com papelada, prateleiras de estantes fechadas onde reside muito bibelot, caixas e caixinhas, algumas das quais com coisas insólitas lá guardadas. Moedas soltas aparecem no fundo das gavetas, dentro de caixas e tacinhas, por todo o lado. Pilhas não têm conta. Não percebo. Presumo que sejam como os coelhos, que se multipliquem desenfreadamente. Canetas que já não escrevem são mais do que as mães. E, no meio disto, algumas descobertas surpreendentes.

Muito papel foi jogado fora, facturas, receitas, coisas assim. Flores secas também, pot-pourries, espigas cor de laranja, coisas de que vou gostanto e mantendo. Mas estou numa de me desfazer de tudo o que não me cause dor e, portanto, os sacos foram-se enchendo. Objectos não identificados ficaram expostos na sua estranheza indo alguns também porta fora. Aparecem peças que não sei a que pertencem ou se existem por si, assim. E um diploma em meu nome como sendo a mulher que melhor se veste na empresa. Foi numa festa de natal. Houve votação para várias categorias, todas assim nesta base. Já não me lembrava de tal e, muito menos, que aquilo tinha dado direito a um diploma.

Descobri também uma peça de louça que parecia inteira e que, afinal, tinha duas partes cuidadosamente encostadas, parecendo que estava inteira. Pergunto-me quem terá feito tal estrago e, pela calada, fez de conta que nada tinha acontecido? O meu marido desvaloriza, disse qualquer coisa tão bizarra que nem sei transcrever, qualquer coisa como ser natural dado ser peça antiga, como se as peças de cerâmica se desintegrassem ao fim de alguns anos. Claro que desconfiei logo que tivesse sido ele. Achou que eu não estava boa da cabeça, a que propósito iria ele mexer naquelas mariquices? Não deve ter dito mariquices, costuma usar um sinónimo menos meigo. Mas não me lembro exactamente do que mais disse pois, vendo que dali não levava nada, desliguei, tanto que fazer que não vale a pena perder tempo com coisa assim. Mas não foi a única coisa partida. Numa outra estante, tenho duas peças de cerâmica, duas bonecas artesanais muito bonitas. Eu, pelo menos, acho-as muito bonitas. Uma delas estava sem cabeça. Fico perplexa com isto. Penso que pode ter sido outra pessoa. O meu marido zanga-se com a minha desconfiança, que obviamente não, se tivesse sido, ela teria informado, e insiste que as coisas se partem sem intervenção humana. Também admito que não deve ter sido essa pessoa: uma vez que houve um acidente assim, ligou-me, em lágrimas, até me assustei, pensei que tinha acontecido alguma desgraça. Mas, com isto, estava ainda mais intrigada pois não descobria a cabeça. Afinal, lá estava, atrás da outra mulher. Mistérios.


Às tantas, o meu marido chamou-me: tinha descoberto umas fotografias que, de ponta a ponta, eram surpreendentes. Para começar, eu era outra. Tinha havido uma festa grande cá em casa, a casa estava cheia. Havia gente por todo o lado. Eu estava com um vestido de noite, justo, de alças fininhas. O meu marido, vendo-me nas fotografias, estava espantado, diz que não se lembrava de eu ter sido tão magra. Não estava magra, estava, simplesmente, como fui até a menopausa me ter deixado mais a gosto de Rubens. Quem estava assim, nessa altura, era a minha mãe. Hoje, ao telefone, falei-lhe nisso. Disse ela, podes crer, a seguir à menopausa, alarguei de costas, aumentei de peito, acabei por dar os blasers todos, nenhum me servia, nada abotoava no peito. Agora não, agora voltou ao que era antes, esguia, elegante. Tenho esperança de, daqui por uns anos, também eu volte a adelgaçar. Numa outra festa, creio que seria uma festa de anos, a casa também cheia, eu estava de calças brancas e tshirt justinha, e o meu corpo estava metade do que hoje parece. O meu marido pergunta: estarias doente? não tenho ideia nenhuma de seres tão magra. Volto a dizer-lhe que não estava nada magra, nunca fui magra, nem doente, qual doente, simplesmente mantinha um corpo de adolescente. Ele olhava espantado, não reparando que, com ele, foi o contrário: hoje está metade do que era naquela altura. Mas o principal ponto de interesse daquelas fotografias está longe de ser a outra que era eu. Éramos todos outros. Os meus filhos eram adolescentes, em início de adolescência. Tão bonitos, tão queridos, ainda a despontarem. Contudo, numa das festas já estava o namorado da altura da minha filha, o primeiro, um rapazito. Os meus sobrinhos eram, ainda, umas crianças. Mas impressionante, impressionante, é a quantidade de pessoas que já não estão por cá. Até a minha avó materna ali estava com ar desempoeirado, bonita. Era, na altura, mais nova do que a minha mãe é agora. Teve a minha mãe aos dezassete e a minha mãe teve-me aos vinte e três. Por isso, naquela altura, ali estava a minha mãe toda giraça e a minha avó toda inteiraça. Mas estavam também os meus sogros, a mãe de uma prima por afinidade, o primo do primo, jovem desportista e dos mais divertidos do grupo e que, há um par de anos, do nada, se foi para desgosto de todos nós que não queríamos acreditar em tal maldade. E estava, claro, o meu pai. Sempre com aquele ar jovem e arejado, embora geralmente com ar mais circunspecto. O meu marido geralmente também não aparece a rir nem liga patavina a fotografias. Fica sempre bem mas com ar de quem não está nem aí. Julgo que nunca se deve ter rido para uma fotografia. Presumo que o meu pai também não. 


Olha-se para aquelas fotografias, grande parte dos que ali aparecem já desaparecidos, os outros todos mais velhos, a caminho de um dia serem também uma memória e, necessariamente, uma pessoa sente-se melancólica. Mas depois logo se percebe que nada disso, que ideia, tristezas não pagam dívidas, para quê ver as coisas só pela metade? Então e os que, nessa altura, ainda nem em projecto estavam? Tantas pessoas que naquela altura não existiam e que hoje já estão por aí, traçando o seu percurso, construindo o seu futuro, trazendo o calorzinho bom do seu afecto às nossas vidas.

De vez em quando, o meu marido que esteve também envolvido nesta empreitada, perguntava-me: onde é que ponho isto? Fui dizendo: fotografias com fotografias, recordações com recordações. É que, por exemplo, encontrei um postal ilustrado que lhe enviei quando namorávamos. Quanta inocência a daquela minha paixão. Não me lembrava nem um bocadinho de lhe ter escrito aquilo. Curiosamente guardou-o e não sei que voltas já terá dado aquele postal para ali estar. Parece que não liga a nada a estas 'mariquices' mas, na volta, se calhar até liga. (Mas, se ligar, é só um bocadinho. Um bocadinho pequenino. E eu acho graça a ele ser assim. Não sou muito de ligar a homens lamechas).

Numa terrina do serviço da Vista Alegre que pouco uso e que está dentro do louceiro, fui dar não apenas com um documento contendo a linhagem da nossa cãzinha, com o seu registo e com outros seus documentos, como com os testes de orientação profissional que o meu filho que, quando andava no 9º ano, por sua iniciativa e sem dizer nada em casa, foi fazer com a psicóloga da escola. Impressionante como, desde miúdo, desde sempre, foi aquilo que ainda é hoje: decidido, pragmático, focado. Gostava de saber onde pára os que a minha filha fez também no 9º e que a mostraram com um nível de inteligência excepcional, com capacidade para muita coisa mas com mais forte pendor para as áreas que, de facto, profissionalmente tem vindo a seguir. Pode ser que, nas coisas que ainda estão por passar a pente fino, isso também apareça. Devia guardar os dois no mesmo sítio.


Em dias assim, fico sempre com vontade de chegar àquela fase da vida em que terei tempo para fazer reorganizações a sério, tudo bem sistematizado, classificado, nada a pairar por partes incertas. É que agora, como é tudo na base dos shots, tudo em doses maciças e condensadas, muito trabalho em períodos muito curtos, parece que fica sempre tudo a modos que pela metade.

Ao fim da tarde, fomos até à praia. Mas a maré estava cheia e o areal igualmente cheio. Por isso, fizemos a nossa caminhada à beira de água, que bem boa estava, e, no fim, desamparámos sem que nos tivéssemos sequer sentado. E, dali, viemos comer um big gelado. Viemos, não. Vim eu. Um belo gelado de três bolas, bom que só visto. De comer e chorar por mais. (E depois, com esta cara de pau que tão bem me caracteriza, digo que é a menopausa... É, é; está bem, abelha. )


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As mulheres que aqui hoje vieram espreitar a prosa nasceram, como é bom de ver, das mãos de Rubens e, como deu para ver, fizeram-se acompanhar de uma das belas composições de John Barry

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Quando fui à procura da música de que estava afim, aquela ali em cima, o YouTube propôs-me o vídeo abaixo. Sou pouco amiga de enlatados, confesso. Mas, na volta também efeitos da querida menopausa, ando mais dada a coisas em jeito de assim. Portanto, sem delongas, aqui fica o dito vídeo onde se podem ouvir e ler coisas que não são mal pensadas, não senhor.


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E a si que, pacientemente aí está desse lado, desejo um belo dia de domingo

sábado, maio 18, 2019

Danças com lobos






Se me visse frente a frente com um lobo talvez morresse de medo. Talvez nem resistisse. Talvez por delicadeza me deixasse morrer

Ou talvez não. Não sei. 

Talvez o olhasse nos olhos, talvez convencida que também ele assim me quisesse olhar. Talvez quisesse que ele me visse como igual pois era assim que eu queria senti-lo, igual, incompreensível, secreto, perigoso. 

Talvez nas noites em que gosto de entrar sozinha eu gostasse de saber que algures, numa outra geografia, também a entrar na noite, um lobo avança sozinho, olhando a imensa escuridão, sem medo, com apetite de susto, com vocação para desafiar abismos, com os olhos abertos procurando sinais inexistentes, apenas intuídos.


Somos assim. Lobos que não se oferecem facilmente, esquivos, silenciosos. Lobos que secretamente se procuram. Se uivam contra a noite é apenas porque a emoção não cabe no peito nem os olhos a conseguem reter; ou porque têm medo. Por vezes a solidão que se adensa no seio da noite fere o coração. Os gritos por vezes são inevitáveis, longos, queixumes que atravessam o espaço, que se despenham contra a distância.

Estou em silêncio. Escuto, espero.

E sei que o lobo que está aí, escondido, à espreita, se ri com palavras como estas, desprovidas de sentido, que encobrem o que não querem dizer, palavras que se perdem de mim, que se perdem na noite. Sabe que a sua respiração chega até mim, um bafo acre que sinto vindo de longe, um bafo que faz arquear o dorso, o peito, que faz fraquejar as pernas. Louco o lobo, louco, descarado, insolente. E eu aqui, desprotegida, esperando que uns passos se arrisquem silenciosamente, descaradamente, até mim. Eu aqui, traiçoeira, contendo o salto, contendo o rasgar que vai acontecer, os dentes ansiosos pela carne, a paixão que rebentará todos os diques. Neve, vales, grutas sem fim, escuridão atravessada pelo silêncio e pelos gritos das aves. As noites são frias, escondem terríveis mistérios, inconfessáveis temores, loucuras sem explicação, segredos, sussurros, efémeras confissões. Andas na neve, percorres as florestas, enfrentas tantos perigos, tantos, tantos.


E eu aqui por ti. Escuta-me. Imagina o calor das minhas mãos, adivinha como é doce a minha baba, macio o meu pelo, tentador o meu olhar.  Antecipa o vagar dos meus passos, antecipa o mais que virá depois. Sei que estás aí. E sei que vens na minha direcção sem querer saber dos mil perigos, louco, rouco, arfante, aflito, cheio de medo, petulante, corajoso. Vem.

Lobo, lobo, lobinho.

Vem dançar comigo. Salta, voa. Vem.

O lobo sabe
"The wolf knows when it is time to stop looking for what he may have lost and to focus instead on what is yet to come."  - Jodi Picoult

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E a todos desejo um bom sábado

quinta-feira, setembro 06, 2018

Olha o espertinho do algoritmo do YouTube com indirectas, insinuando que careço de um lifting...




Já estou de volta ao campo. Hoje o dia foi um pouco mais tranquilo mas, como sempre, cheio de cenas. Num momento em que tudo parecia sereno -- o bebé a dormir, os mais crescidos estranhamente aquietados -- aparece o meu marido que, tenho ideia, tinha acabado de se deitar no sofá, a dizer: 'Acho que uma gaivota se enfiou outra vez na varanda' e, todo irritado, foi buscar uma vassoura.

Ouvia-se o barulho de alguma coisa a bater contra o estore da porta de vidro que dá para a varanda. Fui levantar a persiana no canto onde se ouvia e lá estava ela: grande, branca e assustada. Mas havia mais: um monte escuro, penugento. Aí a coisa perturbou-me. 'Não sei se não está lá um pombo morto'. Entretanto, toda a gente veio a correr. Gritos. 'Que horror! Um pombo morto!'. Depois o meu filho: 'Um ovo'. Fui ver. De facto, um ovo. Depois reparei: não sei se terá havido um ninho. Uma confusão de palhas. Foi agora nas férias que aconteceu. O meu filho enojado com a cena do pombo morto. Eu que, na outra vez, consegui acalmar a gaivota e, com uma vassoura a servir de alavanca, a elevei até voar., desta vez não me afoitei. Aquele monte de penas ali repeliu-me um bocado. Teve que ser o meu marido. Só que ele não leva jeito como encantador de gaivotas. Portanto, aquilo foi uma refrega, basicamente uma luta à vassourada, ele a querer que ela saisse do canto e a pobre da gaivota completamente assarapantada. A varanda é estreita e não tem largueza para uma gaivora abrir as asas e ganhar balanço para voar. Tentava mas as asas batiam de lado e gritava de dar dó. O meu filho foi, então, à loja do chinês ali perto para ver se arranjava uma pá de lavoura ou outra coisa que desse para tentar passar por baixo dela e levantá-la. Não havia. Regressou com uma pá do lixo de chapa e cabo alto e outra coisa que não percebi o que era, uma espécie de vassoura. E luvas e sacos pretos grandes. Então o meu marido começou por apanhar o pombo morto e o lixo que havia em volta. As crianças, do lado de dentro, observavam, excitadas. No entretanto, apanharam um pacote de bolachas e, enquanto gritavam de susto, comiam bolachas. Por fim, não sei como, ele lá conseguiu que a gaivota se empoleirasse na pá e lá a atirou para voar por cima da varanda, com toda a gente a gritar de susto e alegria. A seguir foi pôr o saco com o pombo lá abaixo, ao lixo, depois pôs a roupa para lavar e foi tomar banho. Enfim. É o que dá morar num andar muito alto perto do rio.

Bem.


Entretanto, as crianças mais crescidas foram pôr-se a brincar aos presos e aos ladrões e polícias. E ela era a polícia e mandava prender os ladrões. Mas faziam uma barulheira incrível. E eu, que não queria que acordassem o bebé, ameacei: 'Se continuam neste chinfrim, ponho-os mas é no isolamento'. Pois bem. Instantaneamente, desataram a gritar ainda mais, a rir, e a reivindicar: 'I-so-la-men-to! I-so-la-men-to!'. E, acto contínuo, pegaram nas mantinhas e nas almofadas que encontraram e ela foi pôr-se atrás de uma estante e eles na casinha de banho de apoio à sala. E eu, aparvalhada com aquilo: 'Mas esperem lá. Não desarrumem ainda mais a sala! Isolamento não é acampamento!'. Mas já ela tinha ido buscar um telemóvel e eles outro, para ficarem a ouvir música. Depois ela foi buscar o coelho de peluche que tinha sido do pai: 'Já fui buscar um animal de estimação!'. E eles foram buscar o telefone fixo. E ela quis um cofre. E de repente ali estavam a ouvir músicas no youtube, a cantar. E eu a tentar explicar: 'O isolamento na prisão não é isto... Caluda. Acordam o bebé..'.

E acordaram mesmo.


E pronto, eles ainda jogaram à bola e o bebé, de cada vez que dá um pontapé, levanta os dois braços e grita 'Golo....!' e depois brincaram às lutas e ela, no meio da confusão, fingiu que estava a dormir e que era sonâmbula. Depois o irmão irritou-a e ela irritou-se com o irmão e gritou com ele e eu: 'Schiuuuu... Mas que é isso? Parece que estás histérica...' E ela, 'Não estou nada! E quem diz é quem é!'. E pronto.

A seguir foram lanchar. E depois o bebé pôs um chapéu meu e ficou a parecer um mexicano -- e lá se foram na maior alegria. E nós fomos levar o outro pimentinha a casa da minha filha. Mal entrou no carro, deixou-se dormir. Quando chegámos, já lá estava o mais velho que teve o seu primeiro dia de escola. 'Muito mais liberdade...' disse ele, orgulhoso. E eu lembrei-o: 'Mais liberdade, mais responsabilidade'. Estava feliz. Crescido, ar já de rapazinho.

E depois da conversa em dia com a minha filha, pusemo-nos a caminho. Novo carregamento no supermercado e cá estamos. Claro que, no percurso para cá, foi tiro e queda: dormi o sono dos justos. Mesmo bom. 


Agora aqui, sossegada da vida, vendo a televisão (quatro canais e mais o canal parlamento, a rtp3 e o canal memória), estou a ver a nova telenovela da sic e é sempre aquela coisa agradável de ver. Não me lembro como se chama mas, apesar de estar no começo, já vai se apegando. Agorinha mesmo um casal se formando: a cozinheira Cacau com o negão-todo-o-serviço. Embeiçaram-se e logo ali mesmo a coisa pintou e rolou. Nada de perder tempo. E, enquanto vejo, espreito se há novidades que se aproveitem e, ao abrir o youtube, desta vez uma novidade: conselhos de massagem facial, ioga facial e outros conselhos para tirar os vestígios de stress da cara. Não sei onde foi ele achar que estou precisada de um trato facial mas a verdade é que, pelo sim, pelo não, já me levantei e já fui observar-me ao espelho. Será...? Na volta... Voltei a pôr um video e, enquanto a Deborah Secco tenta dar o golpe da barriga num bonitão que nunca vi antes e que está a fazer de um tal ex-cantor cuja família está a facturar à conta de o mundo pensar que morreu, fui fazendo os movimentos de lifting que a senhora exemplificava.

Daqui por uns dias, quanto fizer a minha gloriosa rentrée no trabalho, vou estar vinte anos mais nova, sem uma ruguinha, sem um papinho, toda esticadinha, toda descansadinha. E isto com zero botox, só com os conselhos de mon ami algoritmo.

Só não digo a referência dos vídeos para os meus Leitores -- em especial os mais ingénuos, os que ainda acreditam que esta que aqui vos escreve talvez seja a modos que um bocadinhozinho intelectual -- não ficarem decepcionados demais. Telenovelas da Globo ainda vá que não vá... agora vídeos de massagem facial... puxa vida, essa não.


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As imagens mostram algumas caras conhecidas no Festival di Venezia 2018 

A última mostra uma cria de leão das montanhas descoberta em Santa Monica 

A música lá em cima é Maksim interpretando Somewhere in time de John Barry.

Não sei se dizer se há alguma relação entre as imagens, entre elas e a música ou entre qualquer delas e o texto -- mas isso também não me parece preocupante. 

segunda-feira, agosto 06, 2018

Porque é que, nestes dias tão quentes, o céu perdeu o azul e o sol parecia a lua?
[O resto, incluindo a minha receita de entrecosto com favas, está aqui apenas porque sim]




Ontem, quando chegámos, não se conseguia aguentar: estavam 47º. Ali o clima é continental, tudo muito extremado e, quando está calor, ali está ainda mais. Ou frio. Ou vento. Mas ontem estava demais. Sente-se o calor na pele, na respiração, e percebe-se que estamos no limiar do humanamente suportável se isto vier a ser frequente e prolongado.

Os pássaros estavam enlouquecidos. Não cantavam, gritavam. E, ao cair da noite, as cigarras desataram também em desaustinada gritaria. Qualquer coisa de estranho naqueles sons, habitualmente tão tranquilizadores.

Ao passo que habitualmente não consigo ver os pássaros, ontem andavam à vista, passavam de árvore em árvore, pareciam desorientados.

As uvas foram-se. Os bagos secaram. Uma tristeza. Estavam ainda verdes e pequenos. Agora estão como se vê.


E as flores a ressequirem, as folhas a amarelarem. 

Dentro de casa estava-se melhor, 32º. Não temos ar condicionado. As paredes da parte antiga são de pedra e têm metro e tal de espessura. Na zona nova as paredes também são largas e duplas. Portanto, isolam relativamente. Quando chegamos, gosto de abrir as portadas para a casa arejar. Ontem foi impossível. Nem de noite. Aliás, de noite, se abrimos as janelas com a luz acesa, entram melgas. Conseguimos estar razoavelmente à noite apenas porque ligámos duas ventoinhas.

Por volta das oito da noite reparei que a lua estava num sítio diferente do habitual. E estava cheia. 


Pensei que não podia ser. Fotografei-a, olhei-a bem. Branca. O céu cinzento, asfixiado. Todo o dia o dia o azul esteve oculto. Pensei que há pouco tempo a lua tinha estado cheia. Chamei o meu marido e perguntei-lhe o que era aquilo. Olhou e disse: deve ser a lua. Mas não estava convencido. Disse-lhe: a lua costuma estar sobre a casa ou sobre o jardim, não ali ao fundo. Fui ver qual a fase em que estava. Quarto minguante. Ontem, cerca de 53% oculta.

Fui ver de novo. Estava mais perto da linha de horizonte, ao fundo, na linha das serranias, e estava mais amarela.


Concluímos que só poderia ser o sol. Olhávamo-lo sem qualquer dificuldade. Lentamente, foi desaparecendo naquele céu triste e leitoso.

Hoje o céu manteve-se branco ou cinzento, levemente amarelado, o sol encoberto.  

O ar esteve quente, quente, mas mais suportável. 43º. 

Tal como ontem, tive que me ir molhando, bebendo ágiua fria. Estive na espreguiçadeira à sombra e fui buscar a ventoinha de pé alto. Entre ontem e hoje li um livro magnífico: 'Contos naturais' de Carlos Fuentes. Muito, muito bom. De vez em quando acontece-me ficar rendida. É uma sensação tão boa. Não consegui parar enquanto o não li todo.

Hoje, ao fim da tarde ainda peguei noutro, no 'Raul Brandão íntimo' do Vitorino Nemésio. Mas não deu. Uma pausa é necessária quando se acaba de ler uma coisa muito boa.


Ao fim do dia sentimos que a temperatura ia baixando, ficou nos 42º. Quando saímos, já ia nos 41º. Quando chegámos a Lisboa estava mais fresco, 39º. Fomos comer um gelado. Adoro gelados. 

Quando chegámos, não sabíamos o que jantar. Agora não dá para comer sopa. Fui ao supermercado. Trouxe entrecosto, favas, coentros, chouriços. O meu marido disse que não era comida de verão. Pois não. Mas o almoço já tinha sido uma salada fria. Às tantas, já não tenho imaginação.

Fiz assim: 
Num tacho, coloquei azeite, três cebolas grandinhas aos bocados, meio chouriço de carne das Beiras às rodelas, três dentes de alho, louro. Alourei levemente. Juntei uma cenourona grandona às rodelas e dois tomates bem maduros aos bocados. Juntei o entrecosto. Pus por cima alecrim e uma mão cheia bem generosa de coentros. Um pouco de sal. Quando ferveu, baixei para a temperatura 4 (numa escala de 1 a 9). Fui mexendo de vez em quando para os sabores se misturarem. Quando me pareceu que a carninha já estava a despegar-se dos ossos, sinal de que estava a ficar cozida, juntei as favas (que, entretanto, tinha deixado a descongelar), mais um bocado de chouriço preto às rodelas e, por cima, mais um bocado de coentros. Levantei a temperatura e, de novo, quando levantou fervura, baixei. Fui envolvendo de vez em quando... até que vi que estava tudo já devidamente macio.
Pois vos digo: belas. Servidas com salada de alface.

E agora que já fiz uma máquina de roupa e que já escolhi a roupa para amanhã, aqui estou a pensar se transcreva um pouco do livro. Se calhar não. É todo tão bom que desvirtuaria o conjunto se o amputasse. Acho eu. Vou pensar.


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Este vídeo e não outro mais completo apenas porque este é pequenino, vê-se num instantinho

Carlos Fuentes na primeira pessoa


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Até já.

sábado, maio 19, 2012

Depois da ternura no Pinhão, Ana sente-se a resvalar e Tomás segura-a em S. Salvador do Mundo - a magia do Douro Superior a voltar a cerzir a ficção com a realidade


Música, por favor

John Barry, Banda sonora de Dances with Wolves 



Ana e Tomás combinaram encontrar-se ao pequeno almoço para depois irem fazer uma caminhada pela beira do rio. 

Quando começaram, repararam numa grande agitação, muita gente na ponte pedonal a espreitar a margem, e, lá em baixo, uma ambulância, bombeiros, a guarda. Como sempre acontece nas pequenas cidades, a notícia tinha-se espalhado e, enquanto andavam, pelos fragmentos que iam captando das conversas que dominavam todas as atenções, aos velhos sentados nos muros, às pessoas com quem se cruzavam na caminhada, iam percebendo - 'apareceu', 'foi lá à frente mas vão trazê-lo'. Deliberadamente afastaram-se, não queriam contaminar a boa disposição com uma coisa tão triste. Mas, um pouco depois, passaram os dois pequenos barcos que traziam alguém de quem a alma se tinha já soltado, alguém que já não era mais que um corpo. É assim mesmo, os rios têm momentos de desolação como este.

Tomás afastou o olhar quando os barquinhos passara e chamou por Ana, incomodado, 'vamos'. Ana não resistiu a fotografar mas não deixou que Tomás percebesse e, logo depois, foi com ele. A beira do rio continuava bela e tranquila, indiferente à tristeza que o rio naquele momento transportava.



Nas margens do Douro - a quietude absoluta que se sobrepõe à inquietude  momentânea


Pouco depois voltaram ao hotel para um duche e saíram para o seu percurso.

Ana sentia-se, de novo, um pouco inquieta. Tomás era, para ela, apenas um amigo, um amigo por quem sentia afecto, curiosidade, respeito, e assim pretendia que continuasse. Porém, sentia que para Tomás talvez fosse um pouco mais que isso. Talvez. Mas também não queria aprofundar, não queria falar sobre o assunto, nem sequer pensar. Mas talvez a inquietação não resultasse apenas disso. Não sabia, não percebia com exactidão e Ana era mulher de ciências exactas. Sentia-se muito bem com Tomás, gostava de estar com ele e começava a recear essa sensação.

Tentou, pois, afastar o clima de intimidade que parecia sempre formar-se quando falavam deles próprios. Pediu a Tomás que conduzisse. Ele não queria, disse que se sentia inseguro mas Ana insistiu, aliás ele conhecia bem melhor que ela a região. Como a estrada tinha muitas curvas, não dava para prosseguirem com as leituras e, aliás, com o esplendor da paisagem, não faria sentido ir de olhos presos num livro.

Dirigiram-se ao Pinhão. Aí o rio adoça-se, a paisagem envolve a pequena terra que se aninha rente ao rio e tudo parece mimoso. Ao mesmo tempo parece que o tempo parou. A beleza pura em suspensão no tempo. A estação da CP é bonita, muito arranjada, muito colorida. Tem azulejos de um belo azul, tem um relógio antigo, e, sobretudo, tem montes ao longe.



A estação da CP no Pinhão - tão limpa, tão bem cuidada


E Ana começa, ela também, a adoçar-se. Ri, fotografa, e Tomás, orgulhoso, está feliz por Ana gostar tão exuberantemente da magia das suas terras. Ana enternece-se com a simplicidade harmoniosa da estação.



Interior da Estação da CP no Pinhão - a luz que entra, o tempo que parou


Passa a mão pela bela mesa que está no centro da sala de espera e Tomás sorri, passando também a sua mão. 'O tempo faz bem à madeira, torna-a macia. Sente, Ana? Passe a mão no sentido do veio, assim, sinta. É a macieza da madeira, não há superfície mais macia...', disse ele. Ana já se estava a deixar contagiar pelo local, tudo parecia apelar ao romance: 'Nem a pele de uma mulher, Tomás...?'

Tomás olhou-a, sério: 'Há muito tempo, Ana, que não passo a mão pela superfície de uma mulher.' Ana não soube que dizer. Depois, ele acrescentou como se quisesse ser mais preciso: 'Tenho ideia, sim, que é macia a pele de uma mulher, as costas que ondulam, ou a barriga que se arredonda, tenho ideia, sim, mas é uma ideia muito longínqua, nem sei se é imaginação minha...'. 

Depois, para disfarçar uma afloração de emoção, foi observar o belo móvel de madeira escura com uma porta de vidro que estava num recanto, passou-lhe a mão com ternura. Ana viu e teve vontade de lhe fazer uma festa a ele. Mas não fez.

Ouviram, então, o som de um comboio. 'Venha cá, venha ver', chamou Tomás, puxando-a pela mão até à linha de caminho de ferro.



O comboio percorre o cenário - mas o colorido comboio, as flores, as casinhas e os montes
tão bem desenhados... são mesmo a sério...!


Ana desatou a fotografar. Um comboio deslizava a caminho da paisagem. 'Parece que estou no meio de um filme, Tomás.'

'Pois parece... vamos lá a ver é,  no final do filme, quem é que fica com a miúda...', gracejou Tomás.

Ana fez de conta que não percebeu.

A seguir, ele puxou de novo por ela, 'Vamos, quero mostra-lhe um sítio especial' e já iam de mão dada. Ana pensava que não queria, não queria, não queria mesmo, que tinha que lhe dizer que tirasse daí o sentido, que parvoíce o que estava a acontecer. Mas não foi capaz, não disse nada, deixou-se levar pela mão.

Quando entraram no carro, Ana não dizia nada e Tomás também não. Ela não perguntou para onde iam e ele também não disse nada.

Até que chegaram a um local, a mais um local mágico. 'São Salvador do Mundo' disse Tomás pausadamente como se dissesse o nome de uma prece.

E ela ficou ali, a respirar o ar doce e perfumado dos campos floridos, um ar tão limpo, tão cheiroso, o cheirinho doce dos campos puros. E a olhar. A olhar. A olhar até o olhar se perder de si própria. 



S. Salvador do Mundo - o local em que Deus começou o mundo


Nem sentiu Tomás a aproximar-se. Apenas sentiu quando ele se encostou às suas costas e passou os seus braços em torno do seu pescoço. Ana encostada ao corpo esguio de Tomás, ambos olhando a paisagem em silêncio. Apetecia-lhe chorar, cair por terra - mas Tomás estava a ampará-la e ela sentiu-se feliz por estar presa a Tomás num momento tão tocante.



S. Salvador do Mundo - o Douro e os montes. E uma beleza esmagadora, uma beleza absoluta


Depois ele levou-a pela mão, 'Olha Ana'. Ana olhava assombrada, quase sem respirar, tanta beleza não é possível. 

Depois perguntou-lhe: 'Quando se vive num sítio deste como é que se arranja coragem para o deixar?'



S. Salvador do Mundo - a magia de um local em que o Homem melhorou a obra de Deus


Tomás respirou fundo, pensou, depois disse, 'Vivia por aqui, não sabia como era o mundo, pensava que era melhor, queria descobrir outros mundos, fui para a cidade, fiquei por lá até que mudei de vida, andei aos tombos, e depois fui parar lá à vila'.

Ana, olhou-o, tão sério que estava. Mas teve medo de ouvir mais porque sabia que quanto mais soubesse mais se envolveria. Então atalhou: 'Depois me conta, Tomás; está bem? Agora deixe-me apenas olhar, quero que esta paisagem fique gravada dentro de mim. Olhe comigo, Tomás, posso eu depois, quando estiver longe, querer tirar alguma dúvida' e sorriu para ele não perceber que estava com medo.

Mas iam abraçados quando foram de novo até ao carro. 'E agora para onde me vai levar, Tomás? Para que mundos me leva, senhor meu salvador?'



A elegância viril dos ciprestes e dos cedros pontuando a paisagem em contraponto
com a sinuosidade feminina dos socalcos, toda ela refegos e folhos gentilmente trabalhados à mão


'Agora vamos para a beira do rio e vamos almoçar, vai gostar' e enquanto desciam para Ferradosa e Ana se ia deslumbrando com a paisagem, Tomás disse: 'Agora, ao almoço, conto-lhe, então, um pouco da minha vida e, a seguir, conta-me a Ana de si.' 

Ana estremeceu por dentro.


***

E é isto, por hoje, meus Amigos.

Relembro que se quiserem ler esta história (que me está a levar para caminhos inesperados) poderão procurar 'Ana muda de vida' nas etiquetas aí de lado, lá mais para baixo. 

Tenham, meus Caros, um belo sábado. 

Apreciem o que vos rodeia, apreciem a vida, apreciem cada pequena coisa. 
Há milhares de coisas boas para serem vividas. E, se as não têm à mão e não as podem procurar, então, não faz mal: sonhem, imaginem - também é bom.