segunda-feira, maio 27, 2024
sexta-feira, dezembro 10, 2021
Eram novos e não sabiam.
[Se bem que agora ainda estejam bastante benzinho*]
[Se bem que agora ainda estejam bastante benzinho*]
Eu tinha um gira-discos só meu. Era um aparelho praticamente portátil. Não era uma aparelhagem como a que os meus pais tinham na sala, com colunas em separado, amplificador em separado. O meu fechava-se com uma tampa e tinha uma pega. Estava no meu quarto. A mobília do meu quarto era clara, de linhas direitas, moderna para a época. Foi feita a feitio numa marcenaria, certamente desenho do meu pai com mão da minha mãe. Havia uma superfície em L que ocupava uma parede e meia. Na meia parede estava também a minha cama. A zona da secretária era ampla. Não havia computador. Tudo era analógico. Livros, cadernos. E, ao lado, o gira-discos.
Depois havias as festas de anos. Éramos um grupo de miúdos muito unidos que, em conjunto, descobriam a ternura da aproximaçao da atracção sexual. Tinha treze, depois catorze, depois quinze, depois dezasseis anos. Nuns casos, as festas eram no quarto ou na sala do aniversariante. Outras vezes em garagens que eram transformadas em discotecas dançantes. Os adultos mal se viam. Deixavam o espaço para os jovens.
Nesse grupo havia dois rapazes que viriam a entrar para o Técnico e tornar-se engenheiros electrotécnicos. Na altura eram apenas miúdos habilidosos. Montavam amplificadores, levavam colunas, montavam luzes que piscavam e perdiam vigor, quase se apagavam.
Havia muitos discos. Vários do nosso grupo tinham muitos irmãos, alguns irmãos mais velhos. Entre todos, apareciam discos e discos com grupos ou cantores que eu ia conhecendo e aprendendo a 'curtir'.
Um de que eu também gostava muito era o Cat Stevens. Morning has broken. Por exemplo.
Gostava de dançar, ora juntinha ora gingando abraçadinha. Podia ser ao som do Morning has broken ou de qualquer outra música.
Até que hoje o meu amigo algoritmo do Youtube me propõe um vídeo. Art Garfunkel.
Estavam dois homens desconhecidos, um tocando, outro cantando. A voz, agora mais trémula, parecia, de facto, a de Art. Mas onde os caracóis, onde o homem da testa alta e cabelo arruivado e hirsuto? Pensei: não pode ser.
Fiquei a ouvir. Agora é um homem quase velho... e não dava tempo a ele, de repente, se ter tornado assim quase tão velho. Ná.
Olhei melhor. O nariz parece, a voz parece. Mas poderia alguém ficar assim tão velho de um momento para o outro? Não, nem pensar.
Fui googlar. Vi fotografias actuais. É ele, de facto. É ele. Não sei como mas é. Revi o vídeo. O sorriso é jovem. A atitude é jovial. Fui ver a idade. 80 anos. Revi. Oitenta anos. Oitenta? Como? Mas depois pus-me a fazer contas de cabeça e a racionalizar. Qual de repente...? Onde é que eu tenho andado com a cabeça para não ter percebido que já passaram estes anos todos...?
Até me lembrei de um amigo que encontrei há pouco tempo. Conheço bem a mulher com quem vive, embora continue casado com a primeira. Perguntei-lhe por ela. A rir, respondeu-me: 'Vai ser operada às cataratas. Imagine... Fui eu deixar a minha mulher para arranjar uma velha...'. Desatámos os dois a rir.
A gente ri, ri, mas a verdade é que é assim mesmo: se nos formos mantendo vivos, os anos vão passando por nós e, quando damos por ela, os que conhecemos jovens aparecem-nos já velhos e nós mesmos um dia vamos olhar para o espelho e também vamos perceber que, se deixarmos de ser condescendentes para com a imagem que observamos, também não fomos poupados.
Estou a ler o 'Para quê tudo isto?', a biografia de Manuel António Pina escrita por Álvaro Magalhães. Era um autor que muito admirava (e admiro). Quer através da sua poesia quer das suas crónicas, eu acompanhava a forma elegante e inspirada como cerzia as palavras. Fez-me impressão quando partiu. Se me tivessem perguntado teria dito que para aí há uns quatro ou cinco anos. Pois.
Não ando a medir bem o tempo. Já há nove. Também não percebo. O que fiz durante estes seus nove anos de ausência? Não sei. Não percebo.
Com este livro, comecei como tantas vezes faço: a ler do fim para o princípio. Não sei porque é que, num caso assim, o faço. Já sei como é que acaba. Só se involuntariamente quero poupar-me já que, ao caminhar ao contrário da linha do tempo, irei conhecendo os seus anos de boa saúde, de motivação e descoberta, os tempos em que não havia fim à vista nem dores nas costas nem internamentos.
E aqui estão os que, em tempos, foram jovens. Não que hoje estejam fisicamente piores. Estão é fisicamente alterados pelas areias do tempo. Bonitos como sempre. Bastante benzinho, até.
segunda-feira, novembro 18, 2019
Num domingo assim, tão chuvoso e tão frio, consegui ter o coração quente
Mas um valentão. Jogou muito bem. Tem muito jeito. Está um rapazinho. Vibrei imenso. Enregelada também eu, embora encasacada, mas feliz da vida. O meu marido também gostou de ver o neto a jogar bem. Três jogos, hora e meia a jogar à bola, coitado, ao vento e ao frio, debaixo de água.
Lembro-de uma vez em que uma viagem a Itália coincidiu com os anos do meu filho, teria ele uns cinco anos. Fiz de tudo para mudar mas foi impossível. Íamos três e íamos ter reuniões com pessoas de duas outras empresas; e conciliar agendas foi uma complicação, acabando por convergir, desgraçadamente, naqueles dias. Fui com o coração partido. os meus pais vieram para ajudar o meu marido que, naquela altura, tinha trabalhos fora de Lisboa ou reuniões com pessoas que vinham de fora e que queriam optimizar o seu tempo cá, puxando os horários. E havia a festinha de anos com os meninos da escola. Todos disseram que eu fosse descansada, que o menino era pequeno, que nem ia perceber, que eles tratariam de tudo. Mas eu não consegui aceitar o que tinha feito e, ao segundo dia à noite, tomei uma decisão. Arrumei a mala e no dia seguinte de manhã, ao pequeno almoço, apresentei-me junto dos meus colegas dizendo que ia regressar a Lisboa. Ficaram perplexos, sem palavra. Mas eu disse que nem valia a pena dizerem nada. Quase sentia a voz estrangulada na garganta tanto me doía ter estado ausente no dia de anos do meu filho Não me lembro de como fiz para mudar o voo de regresso. Naqueles tempos, sem telemóveis nem internet, não sei como se resolviam coisas destas. Mas eu tê-las-ia resolvido mesmo que estivesse no meio do deserto. Lembro-me de andar meio assustada naquele aeroporto de Milão que é enorme, pejado de gente, eu com pouco tempo, com medo de não dar com a porta de embarque, enervada, angustiada comigo mesmo, desejando chegar a casa mas, ali sozinha, incontactável, com medo de não conseguir embarcar. Mas consegui. Quando, a seguir ao almoço, toquei à porta do apartamento dos meus pais, a minha mãe ficou ainda mais perplexa. Mas o meu alívio por estar de volta, por poder abraçar os meus filhos, por regressar a casa, não tinha tamanho. E tenho para mim que os meus colegas e o meu chefe da altura passaram a respeitar-me mais por ter mostrado tanta determinação e tanto amor pelos meus filhos.
E podia dar mais exemplos. Apesar de achar que uma pessoa, em situações normais, não deve abdicar da sua profissão ou da sua ambição por fazer aquilo de que gosta por causa dos filhos, devendo, antes, esforçar-se por conciliar os dois mundos -- até porque os filhos crescem e a nossa disponibilidade passa a ser outra (e até porque não devemos nunca dar motivo para que os filhos fiquem a achar que nos devem alguma coisa, nomeadamente por nos termos sacrificado por eles) -- a verdade é que, para mim, sempre esteve muito claro que os filhos e a família vêm em inquestionável primeiro lugar.
Por isso, hoje, apesar de um certo transtorno e desconforto, foi com o coração quentinho que estive a ver o meu menino crescido, tão lindo, tão querido, a dar pontapés na bola tão fortes, tão certeiros, e tão contente por nos ter lá.
E claro que levei um lanchinho. Quando me despedi dele, no carro, ele, molhado e enregelado, coitado, disse-me: 'Obrigado pelo apoio... e pelo lanche...' e eu só me apeteceu enchê-lo de abraços e beijinhos.
E pronto, uma vez mais não ouvi notícias, não sei do que se passa no mundo a não ser alguns temas que não me dão muita vontade de falar neles -- como, por exemplo, que Bill Gates já ultrapassou o Bezos e que já é outra vez o homem mais rico do mundo mas os números são de tal ordem que me parece haver qualquer coisa de muito indecoroso em tudo isto; ou que Veneza está desgraçadamente submersa há tempo demais, de uma forma quase catastrófica, mas acho tudo tão assustador que mal consigo falar nisso -- e, tirando isso ou coisas pouco inspiradoras relacionadas com o Trump ou com o Boris, não tenho muito assunto. Só mesmo isto. Enquanto, na maior paz, ouço os sons do silêncio e escrevo isto que estão a ler.
quarta-feira, fevereiro 06, 2019
Muito para além da estatística
Não sei se na estatística das nove mulheres assassinadas desde o início do ano (e ainda estamos no início) já consta a menina de dois anos e a sua avó. Se calhar, não. Se calhar agora já são onze. Não sei a que se deve este número. Os sociólogos ou os psicólogos sociais devem conseguir explicar.
E depois é isto. O mal latente, comezinho, banal. A sociedade vai aceitando a violência gratuita, a pressão inaceitável e prepotente. Por exemplo: a greve dos enfermeiros, suspendendo cirurgias, podendo colocar em risco a vida das pessoas -- sendo que os doentes, indefesos, são as únicas vítimas -- é outro sinal da virulência que grassa nesta sociedade. Choca-me a tolerância com que se aceita que uma classe profissional atente contra a saúde pública da população, em especial da mais desfavorecida. É que estranhamente os enfermeiros não fazem greve nos hospitais privados quando razões de queixa também não lhes devem lá faltar. Tudo obscuro. Violento, incompreensível, inaceitável. Sementes de maldade que vão sendo espalhadas na sociedade.
E depois, por vezes, o sofrimento anónimo, silencioso e continuado, torna-se um número público.
quinta-feira, fevereiro 01, 2018
Alô, alô Marco António Costa!
Sobre os tempos de abundância em que vivemos, preste lá aí, se faz favor, uma atençanita.
[E, finalmente, a verdade sobre a aterragem na lua que, naquele dia, não sei se era uma lua azul de sangue ou uma lua de sangue azul]
Sobre os tempos de abundância em que vivemos, preste lá aí, se faz favor, uma atençanita.
[E, finalmente, a verdade sobre a aterragem na lua que, naquele dia, não sei se era uma lua azul de sangue ou uma lua de sangue azul]

O pior, televisivamente falando, foi o seu oponente. Fraco, fraquinho, muito mau, muito mauzinho.
Eu não disse o que tu disseste que eu disse mas se quiseres que eu diga eu digo mas não me venhas dizer o que eu devo dizer porque eu cá só digo o que acho que devo dizer e quem disser o oposto que prove senão vai ter que dizer noutro sítio que eu, pelas razões que todos conhecem mas não têm coragem de assumir, não vou dizer qual é (... bla bla bla... bla bla bla...)
- às suas políticas internas,
- à prova provada que pode fazer de que as suas políticas surtem um efeito estimulante na economia, permitindo-lhe reiterá-las e
- à atitude disruptiva, construtiva e corajosa que tem exibido nas instâncias europeias em que tem assento, abrindo portas a uma mudança de políticas comuns
![]() |
A lua em Edirne, Turquia -- no The Guardian |
E, já agora, a propósito da lua, um momento histórico -- sobre o momento da aterragem na lua, finalmente a verdade dos factos:
..........................................
Um dia feliz a todos que por aqui me acompanham.
And have fun, ok?
segunda-feira, outubro 24, 2016
Conversar
Não sei se chove lá fora. Há pouco, estava eu a escolher as fotografias do mar e a ouvir um ribombar surdo, ao longe. Ontem à noite, aconchegada num canto do sofá, a ver na RTP1 um filme francês muito bonito sobre uma prova de vela em solitário, ouvia chover, a chuva a bater com força nas janelas. Soube-me tão bem.
Agora, como habitualmente, a sala está quase às escuras, apenas a televisão com o som baixo e um foco de luz sobre mim para ver o computador. Gosto muito de estar assim.
Numa panela com água, deito duas cebolas grandes, cinco cenouras de bom tamanho, um chuchu, uma courgette avantajada (tudo descascado e cortado aos bocados) e sal. Ponho ao lume (não é lume porque a placa é electrica -- mas isso é pomenor), espero que ferva e depois baixo a temperatura.
Num tachinho ao lado, deito uma cenoura cortada aos cubinhos e uma courgette mais modesta também cortadinha. Da panela ao lado, depois de levantar fervura, despejo um bocado de água sobre os legumes e ligo o lume. Faço esta manobra do transbordo da água para regular melhor a quantidade total da sopa. Quando ferve, baixo a temperatura. Depois de uns minutos, junto uma embalagem inteira de folhas de espinafres já lavadas. Continua ao lume por mais uns minutos.
Depois de desligar, junto um fio generoso de azeite virgem à panela, e moo até ficar um puré bem macio. Junto-lhe então os legumes e o caldo do tachinho. Com uma colher grande, envolvo tudo bem.
Ligo o forno à temperatura máxima (calor em cima e em baixo) enquanto preparo o tabuleiro de pirex. No fundo, coloco vinho tinto. Espalho duas cebolas cortadas aos bocados no fundo. Estendo então a mão do borrego (limpa de gorduras, lavada e com uns golpes) sobre essa cama. Ponho algum sal por cima. Ponho ainda uns dentes de alho cortados, 3 ou 4 folhas de louro, alecrim esfarelado e polvilho ainda com orégãos. Rego com azeite. Coloco, então, o tabuleiro no forno e reduzo a temperatura para uns 190º. Passados uns minutos volto a reduzir para os 160º e passado mais um bocado volto a reduzir para os 150º. Na segunda hora baixo para uns 140º. De vez em quanto, viro para que, à vez, uma parte fique mergulhada no molho e a outra exposta ao calor de cima. Não sei bem quanto tempo ao todo, talvez umas três horas. Vejo que está bom quando a carne se afasta do osso e mostra um ar apetitoso.
Estive também a ler alguns blogues. Há quem escreva muito bem ou sobre assuntos bem interessantes. Leio-os com a surpresa de ter, à minha disposição, palavras tão bem entretecidas, palavras ainda jovens, acabadas de escrever e, tantas vezes, a saberem já a palavras boas, antigas.
Enquanto escrevo, vou vendo a televisão. Agora estou a ver Maria João Seixas com José Pedro Serra. Não o conhecia a ele mas já o googlei, já vi quem é. Falam da mitologia grega. O programa chama-se Afinidades e ele fala com paixão de Cassandra e diz frases muito belas. Ela olha-o com aquele quase sorriso que é todo empatia. Desde que lhe morreu o filho, Maria João está sempre com um ar tão triste, tão em suspenso, como se pairasse num tempo que lhe fugiu. Admiro-a pelo que ela é e também pela coragem. O cenário em que estão -- o fundo negro, umas flores lindas com um toque de carmim que se conjuga com o baton dos lábios dela; sempre tão elegante, ela -- anula qualquer hipótese de distração. Apenas a conversa interessa e a forma como se olham enquanto a conversa flui. Sorri ele, enquanto fala da simbologia grega, daquela cultura que encapsula todas as culturas por vir. Escrevi simbologia sem querer, queria dizer mitologia. Mas simbologia talvez se possa aplicar neste contexto. Fica.
Ah, mil vezes sim, mil vezes.
O que eu preciso de aprender -- tanto, tanto que não sei -- e o que eu gosto de aprender (mesmo que, logo de seguida, tente esquecer para, numa próxima vez, ser de novo surpreendida).
sábado, maio 14, 2016
Bater no fundo
Se eu estivesse a escrever um livro, talvez desenvolvesse o assunto. Falaria sobre o período negro que se seguiu, as desconfianças, as suspeitas que desencadeavam brigas familiares, a vergonha, as tentativas de ocultar do exterior o que se passava, as acusações, a culpa, as aflições, as traições. Mas não estou a escrever um livro. Não.
Trava várias batalhas: a da recuperação de uma honorabilidade que deixou de lhe ser reconhecida, a da justiça, a da tentativa de não perder o respeito dos filhos que, industriados por uma mãe revoltada, o culpam das desgraças que se abateram sobre a família e, de forma muito emotiva, também a da tentativa de recuperação de parte da bela biblioteca da família.

Uma vez ofereceu-lhe um blusão. Quando ele viu o que era, virou o rosto. Ela percebeu que ele chorava. Fingiu que não percebia. brincou, disse que era uma consumista, que já não tinha nada que comprar para ela própria, que tinha visto o blusão tão barato que, só mesmo para não o deixar lá ficar, o tinha trazido. Clara não quer que Pedro se sinta humilhado, vencido. Quer que ele recomece. Mas quem perdeu tanto como ele, sente-se amputado e não sabe se será capaz de voltar a andar. Uma vez disse: Mesmo que quisesse, é com esta idade que vou recomeçar? Como vou ter força para enfrentar recusas ou desinteresses? Vou fazer o quê? Pedir? Humilhar-me? A única coisa que sei fazer é gerir empresas. Mas, depois do que aconteceu e com esta idade, quem é que me vai contratar?
Nessas alturas Clara receia que ele queira desistir de tudo, até de viver.
Para ver se o anima, Clara traz sempre um livro de poemas. Sentam-se num banco de jardim ou numa esplanada e Clara abre o livro e lê poemas. Outras vezes, pede que Pedro os leia. O tempo muda de feição quando estão assim, a ler poesia um para o outro.
Foi ela que, também agora, bateu à porta. Quando a porta se abriu, ele estremeceu. Clara deu-lhe o braço. Sentiu que ele estava a tremer. Encostou-se ao de leve e sentiu tanta, tanta pena, teve tanta vontade de chorar. Pensou: Pobre, pobre Pedro.
Depois apareceu uma empregada. Abraçou-se a Pedro. Chorava, chorava. Clara percebeu que ela dizia: Meu menino, meu menino... Pedro abraçou-a em silêncio. Clara viu que ele continha as lágrimas. Talvez por isso não disse uma palavra, apenas fez uma trémula festa no cabelo branco de Maria de Lurdes.
Clara sentiu que as lágrimas se soltavam mas secou-as rapidamente e disfarçou. Vamos lá, disse.
- Lá em cima, Leonidas Kavakos e Enrico Pace interpretam o Adagio da Sonata Nº 3 para violino de Brahms.
- Já aqui acima Simon and Garfunkel interpretam Bridge Over Troubled Water
- A primeira fotografia, feita no domingo passado, mostra o Jardim da Estrela
quarta-feira, julho 23, 2014
O despertar da minha sexualidade, à mistura com história e geografia
Como é óbvio não me interessa nada que o Santana Lopes esteja a perfilar-se para Presidente da República ou que o António José Seguro ande numa campanha alegre a ver se consegue realizar o sonho da vida dele ou que o Marques Mendes todos os sábados se arme em comadre boa do cavaquismo ou até mesmo que o Passos Láparo ande a escrever cartinhas ao Aníbal Silva a mandá-lo fazer coisas como se estivesse a dar instruções a um lombinha qualquer. São coisas que não mexem comigo, digamos assim. Tenho mais que fazer. Até lá não me doa a cabeça. Cantam muito mas não me alegram. Rebéubéu, pardais ao ninho.
Poderia, é claro, falar da prepotência de um ministro sinistro como uma cobra venenosa que tudo faz para humilhar os professores que estão a caminho do desemprego ou para destruir toda a comunidade científica portuguesa. Mas isso requereria que eu tivesse um estômago mais resistente do que o meu. Falar do Nuno Crato ou falar da violência com que ele ataca os que sabem mais do que ele ou que querem aprofundar o conhecimento, revolve-me o estômago, revolta-me, repugna-me.
Eu tinha uma professora de geografia que, aos meus olhos, devia ter perto de cem anos. Pensando hoje no assunto, admito que não tivesse tantos mas muitos teria certamente. Pequenina, direitinha, vestida como uma pequena boneca antiga, cabelinho branco pela nuca, vestidinhos com golinhas de renda, chapelinhos com redes ou rendinhas. Toda ela era uma gracinha. Parecia saída de um filme antigo ou de um postal de outros tempos. Falava baixinho, voz de velhinha querida. Na altura, os professores usavam cadernetas onde lançavam as notas, as faltas e outras observações. Ela, boazinha como era, em vez de punir, agraciava: dava estrelinhas aos alunos bem comportados. Era uma doçura.
Tínhamos uma professora de História que era uma chata insuportável. Obrigava-nos a decorar o livro e assinalava como mal ou incompleta se a resposta não estivesse tal e qual as frases do compêndio escolar. Uma vez, num desses dias de teste, ouvi-a dar um grito: ‘Mas o que é isto?!?’. Não sabia de que se tratava. Então ouvi a voz dele lá atrás (estava sempre na última fila), muito calmo, ‘É o livro’. E ela ‘Que é o livro estou eu a ver. Mas o que é que o livro está a fazer aberto em cima da secretária??. E ele, calmo, desafiador, ‘Estou a copiar que é para não me faltar nenhuma vírgula’. Eu encolhia-me quando coisas destas se passavam, cheia de medo por ele, pelo que se ia passar a seguir. ‘Vais ter 0’. E ele, calmo, com a folha na mão, a levantar-se e a sair. E ela, outro grito, ‘Onde é que pensas que vais?’. E ele, rebelde, atrevido, ‘Vou sair. Se me impede de fazer o ponto, não estou aqui a fazer nada’. E ela, já mais a medo, a voz trémula ‘Senta-te e vê se acabas o ponto mas vou ficar com o livro’. E ele, gingão, malandreco, de novo a caminho do lugar, a dar-lhe o livro ‘Faça favor’. My hero.

Isso e um dente da frente partido. Uma vez, no verão, estávamos a passar o dia na casa de férias de uma amiga nossa. Para se armar em campeão, ele fazia peões de bicicleta, no ar, descia grandes ladeiras na bicicleta, sem mãos, depois, na areia, fazia travagens malucas que o faziam rodopiar. Era ele e outro a verem quem fazia mais disparates. Eu sempre derretida mas a adivinhar que aquilo ainda ia dar para o torto. Claro que deu mas, menos mal, a coisa ficou-se por um incisivo de cima, ali bem à frente, partido em diagonal. A boca inchada, sangue, e todo esfolado, de alto a baixo, braços, pernas. My hero. O que eu apreciei aquela bravura. Depois curou-se mas aquela falha no dente ficou e dava-lhe um toque de malícia que me deixava ainda mais enfeitiçada.
Era irreverente e um caso bicudo de mau comportamento (o apogeu foi ter pernoitado na esquadra) mas a forma meiga e sensual como, com a ponta dos dedos, afastava lentamente o meu longo e pesado cabelo das costas para encostar os seus lábios a ferver ao meu pescoço, ainda hoje está bem presente na minha memória. Com ele percebi que o meu corpo tinha vida própria e no corpo dele senti, pela primeira vez, o efeito que o meu corpo poderia produzir num outro corpo. Eu era uma menina bem disposta e ele um puto rebelde e juntos descobrimos a nossa sexualidade.
Não tem conta as vezes em que, ao som do Bridge over troubled water interpretada pela dupla Simon and Garfunkel, dancei agarrada a ele, bem agarradinha, ele bem abraçado a mim, rosto contra rosto, ou eu com a cabeça encostada ao seu peito ou ele a arrepiar-me, beijando-me o pescoço. Tardes inteiras agarrados, no maior mel, inseparáveis.
Começou aos 12 anos este amor, no dia em que, antes de uma aula ter início, a turma inteira se juntou, surpreendida, em volta da carteira dele. As carteiras eram de madeira e ele estava na última fila. Tão mal se portava que era posto de castigo no fim da sala e ali acabava por ficar. Nesse dia alguém descobriu que ele, com um canivete, tinha escavado o tampo da carteira. De ponta a ponta, em letras de forma de tamanho garrafal, gravou o meu nome e, por baixo, gravou I LOVE YOU. Eu nem queria acreditar. Olhei timidamente para ele, surpreendida. E, instantaneamente, apaixonei-me por ele. Claro que já andava encantada. Durante todas as aulas, lá de trás, ele atirava-me bolinhas de papel através de uma caneta a que tinha tirado a carga e por onde soprava. E fazia coisas como as que descrevi antes e que me faziam admirá-lo para além da conta. Aquela declaração de amor gravada na madeira foi apenas a gota de água.
Relembro: sobre o BES e sobre os abutres que começam a chegar-se falo no post a seguir. E, ao mesmo tempo que escrevo, faço figas para que tudo dê certo. Tomara. Tomara. De caminho, mostro um vídeo de curta duração no qual dá para se perceber de que forma a Goldman Sachs e os mercados em geral mandam no mundo.