De vez em quando recebo comentários desnorteados, ajustes de contas, ofensas, baboseiras, dislates, infantilidades, bacoquices. Geralmente é gente que, aparecendo como Anónima ou com nomes mutantes, deixa um rasto atrás de si que é como se aparecesse de saia levantada e rabo de fora, coisa que é igual a aparecer com o nome escrito na testa. Geralmente vão direitinhos para o lixo (refiro-me aos comentários, não aos anónimos) pois não ia deixar material mal cheiroso à vista nem ia aqui pespegá-lo para ter que me dirigir ao Anónimo pelo nome, expondo os seus maus íntimos, deficiente carácter ou sintomas de cagança mal acarinhada.
Mas por vezes aparece um ou outro comentário que tem graça. E ainda com mais graça quando também deixam rasto, trazendo presos a si a etiqueta que os identificam. Alguém que gosta de pintura realista e clássica e que, vá lá saber-se porquê (embora eu saiba, saiba muito bem...), volta e meia resolve mostrar os seus maus fígados. Embora tenha descoberto que a pintura se chama 'Poplars', não conseguiu estabelecer a liaison entre poplar e choupo e, em estado que as más línguas apodariam de perturbação, resolve ver ali ciprestes. E não gostou. E, em vez de ficar na sua, resolve aparecer aqui a chatear. Melhor: a ver se chateia. Mas não, não chateia coisa nenhuma. Tem graça.
Esse quadro do M.Allan (Poplars?) é simplesmente horrendo. Uns "ciprestes" alaranjados. Onde está a beleza de semelhante coisa? Há gostos para tudo, até para abortices.
Claro que antevejo que se eu aqui puser os sunflowers do Van Gogh o terei à perna, dizendo-me que as rosas que escolhi são horrendas, uma autêntica abortice, ou, se puser as demoiselles d'avignon, me aparecerá a dizer que tenho um mau gosto de dar desgosto, que aquelas meninas-bailarinas cor de rosa estão muito mal pintadas, autênticos abortos. Na volta também me vai dizer que a pintura lá de cima (The dream) é um pesadelo, uma coisa mal parida, um aborto sem tirar nem pôr, que até lhe parece que aquela espécie de mulher tem um pirilau empoleirado na testa, cruzes canhoto, onde é que já se viu tal coisa?
Ora bem. Fazer o quê perante isto? Difícil...
Reflecti, reflecti e achei que, para me redimir, nada como virar-me para a história, para as lendas, para os clássicos. Enfim, para o que realmente importa.
Não há mulheres, no plural. Há uma e outra e outra e outra. Todas diferentes. Nada que as iguale. Nada.
Posso falar do que conheço de outras mulheres mas não falo por elas. Cada uma tem a sua própria voz.
Conheço-as submissas. Conheço-as desconfiadas. Conheço-as abnegadas. Conheço-as lutadoras. Conheço-as sofredoras. Conheço-as arrogantes. Conheço-as inseguras. Conheço-as ingratas. Conheço-as com os pés e as mãos na terra. Conheço-as com a cabeça na lua. Conheço-as destroçadas. Conheço-as frágeis. Conheço-as guerreiras.
Conheço tantas mulheres.
Posso falar delas. Mas, se não falo de alguma em particular, se falo de mulheres, falo da que desconheço melhor: de mim.
Que as mulheres que me lêem não sintam estranheza por não se reconhecerem porque, se falo de mulheres, em abstracto, é de mim que falo, uso a minha própria voz que é a única que, em toda a verdade, sou capaz de usar.
Dos homens não sei. Há homens que eu acho que não têm qualquer interesse. E, no entanto, há sempre alguém que se interessa por eles. Por isso, sobre homens, também apenas posso falar por mim. E, se falar do que como um homem deve ser para ser interessante, é em mim que penso, no que a mim me parece interessante num homem. Mas também não sei dizer muito porque, se falasse, estaria a falar de um ser abstracto e, a mim, o que me interessa são os homens concretos, de carne e osso, de verdade.
Portanto, se eu me pusesse aqui a falar de homens, sobre homens em abstracto, tudo não passaria de teoria, conversa vaga, coisa de nulo interesse. Não o farei.
E um disclaimer que, se calhar, nem vem a propósito: há homens e mulheres que podem ser muito próximos, muito amigos. A grande amizade entre um homem e uma mulher é possível. Os meus melhores amigos sempre foram homens. Mas o mais interessante, o mais raro, o que dá sentido e fulgor à vida, o que cintila no escuro e no coração é a paixão. E, a seguir à paixão, um grande amor, um grande amor entre um homem e uma mulher.
E, claro, estou a falar da condição que é a minha, a heterossexual. Mas talvez tudo possa extrapolado.
Contudo, justamente, porque quero ser precisa, não posso dizer muita coisa. Não saberia o que dizer.
Sei que teria ainda muito para descobrir sobre mim mas não tenho interesse nisso. Gosto de ser surpreendida e isso aplica-se também a mim. E gosto de ser desafiada pois isso leva-me a aventurar-me por caminhos que desconheço e, mais do que conhecer-me a mim, interessa-me conhecer os caminhos por onde a minha curiosidade me pode ainda levar.
E, tirando isso, nada. Não sei o que dizer.
Dou, pois, a palavra a outras mulheres. Este é um post sobre o que pensam as mulheres. Sobre o que sentem as mulheres. Melhor: sobre o que pensam as mulheres quando pensam em homens. Em certos homens. Naqueles que trazem sal, pimenta e beleza à vida, naqueles que fazem com que tudo cintile.
Os moços tão bonitos me doem, impertinentes como limões novos. Eu pareço uma actriz em decadência, mas, como sei disso, o que sou é uma mulher com um radar poderoso. Por isso, quando eles não me vêem como se me dissessem: acomoda-te no teu galho, eu penso: bonitos como potros. Não me servem. Vou esperar que ganhem indecisão. E espero. Quando cuidam que não, estão todos no meu bolso.
Mas se o corpo é escrita no leito do papel
onde a mão o deita, desnuda e o invade
lhe acaricia os ombros e em seguida
o possui de bruços e mesmo assim não sabe
saciar o corpo no corpo do delírio
com a avidez de uma emoção rapace
Réstia de sol na sombra do calor
fuso do corpo
tecendo o seu orgasmo ....
Penso em ti com apreensivo carinho. Realmente, entre a dor e o sonho, até quando conseguirei manter esta obsessão prática, este quase incesto? O verdadeiro amor é um acto indisponível.
Segundo poema - excerto de 'O esplendor do Corpo' de Maria Teresa Horta in 'Eu sou a minha poesia'
Tisana 285 - de Ana Hatherley in '351 tisanas'
Último poema e poema do título - de Hilda Hilst in 'De amor tenho vivido'
Pinturas respectivamente de Frank Dicksee, Solomon Joseph Solomon, Picasso, Solomon Joseph Solomon, Red Cloth, John William Waterhouse, Rubens e Charles Joseph Frederic
Tudo na companhia de Melody Gardot com Our love is easy
Há uma palavra em francês para uma musa distante, aquela que inspira mesmo estando longe, sendo imaterial, intangível. E já a usei aqui. Gostava muito dessa ideia, de musa distante.
Já fui musa ao perto. Poemas, canções. Eu, a deusa imarcescível, o meu corpo, as minhas mãos, o meu perfil, a minha boca, o meu cabelo, os meus olhos, o meu sorriso, o meu riso, a minha indiferença cruel -- tudo transformado em palavras. Gostava dessas palavras mas apenas quando conseguia desligá-las de mim. Se pensava que eu era aquela, não gostava.
Não gostava da responsabilidade de ser a fonte das palavras ou das notas de música sabendo que, ao mesmo tempo, na realidade, eu era outra, brava, caprichosa, rebelde, carnal, silenciosa, mulher de verdade.
Mas ser musa distante isso acho uma ideia atraente. Não ser eu mas uma longínqua imagem de mim, um reflexo, uma memória, uma miragem, isso sim, isso não traz responsabilidades, isso não impede de ser totalmente real, perecível, inconstante e imperfeita. E há uma palavra em francês para isso e eu não consigo lembrar-me de qual é. Já estive a ver sinónimos e não é nenhum deles. Sou assim, sei que há a palavra exacta e não me lembro qual. Mas, se for como noutras vezes, um dia virá até mim. Sem que eu espere, como se viesse de um planeta longínquo, chega-me a palavra pela qual tempos antes andei em demanda.
A vida é uma bênção e uma lotaria, uma sucessão de acasos. Não sei se trazemos à nascença, impresso nas nossas células, o cronómetro que estabelece o nosso limite. Mas, mesmo que tenhamos, há o espaço de permeio e o que fazemos com ele. E eu gosto de pensar que tenho que estar sempre disponível para perceber a subtileza dos acasos, não deixar que alguns deles sigam um rumo diferente do meu quando deles, quem sabe, poderá um dia despontar a miraculosa centelha que nasce da surpresa dos instantes.
Mas isso é outra conversa e não posso trazer assuntos e depois tratá-los como bolinhas, berlindes que se jogam para um buraquinho.
Não me alongo, pois, porque quero mostrar dois vídeos. Deixo o tema dos acasos para outro dia, para um dia mais dado a profundidades.
Começo por mostrar Sylvette, Lydia Sylvette Davis, mais tarde Lydia Corbett, a mulher do pony tail que inspirou Picasso em cerca de quarenta obras, e dizem que também Brigitte Bardot que terá pintado o cabelo de louro e passado a usar rabo de cavalo para se pôr igual a ela. Hoje Lydia tem oitenta e quatro anos, ainda mantém alguma daquela graça luminosa que Picasso soube captar e ainda lembra com ternura esses tempos em que ele a pintou e a desconstruíu de todas as maneiras possíveis e imaginárias.
A seguir mostro outra mulher, Sara Murphy. Inspirou Picasso, Hemingway e Fitzgerald. Como todas -- todas ou quase todas (sei lá) -- as mulheres inspiradoras, Sara era diferente, cultivava o insólito, divertia-se, ousava. Cativava.
Já cá não está. Apenas o seu reflexo persiste.
Mas o que me dá que pensar não é bem isso em si. Se eu reflectisse um pouco talvez conseguisse explicar. Assim, não sei como exprimir-me de forma a que faça sentido a quem não me adivinha os pensamentos, apenas me lê.
A questão é que os glaciares estão a desaparecer, o nível das águas a subir, a ameaçar devorar algumas terras, noutros pontos a terra está a estilhaçar-se tanta a secura, populações inteiras fogem e afogam-se para atingir um paraíso que não existe. E os palhaços estão a começar a chegar ao poder e, como se sabe, os palhaços não costumam ter competência para salvar planetas. Acresce que a desregulação do uso das tecnologias está a colocar-nos à beira de um perigoso abismo.
Não sei se o planeta ou o mundo tal como o conhecemos não acaba antes que as nossas células se extingam ou antes que alguém que nos conheceu ainda se lembre de nós. E não falo só em mim, falo nos meus filhos, nos filhos dos meus filhos. E pode ser que o planeta azul dure um milhão ou os mil anos que Stephen Hawking previu. Ou menos, se tudo se precipitar como se tem vindo a precipitar nos últimos tempos.
E, portanto, hoje estou nisto, balançada. Por um lado penso na finitude de tudo, das musas, da luz que emanam, dos afectos, das árvores, dos rios, da terra, e, por outro, penso no poder de eternização da arte, na infinita transcendência da beleza.
E, assim sendo, neste balancear descompensado e difícil de pôr em palavras, deixo a conversa para outro dia e passo, então, aos vídeos.
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As três primeiras fotografias são de Paolo Roversi. Das restantes não conheço a autoria.
Há algum tempo, deparei-me com um velho caderno onde tinha apontado algumas frases que me tinham impressionado. Havia uma extraída de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
Dizia:
Mas para desencadear aquela tristeza, aquela sensação de irreparável, aquelas angústias que preparam o amor, é necessário -- e talvez seja isto, mais do que uma pessoa, o próprio objecto que a paixão procura ansiosamente atingir -- o risco de uma impossibilidade.
E se a paixão que me invade, que nos invade, diante destes livros perdidos tivesse as mesmas origens da paixão amorosa descrita por Proust? Se fosse precisamente o risco de uma impossibilidade que justifica o misto de arrebatamento e melancolia, de curiosidade e fascínio, que cresce quando se pensa em algo que existiu, mas que não podemos agarrar com as nossas mãos? Se for o vazio que nos fascina, por que podemos preenchê-lo com a ideia de que o que falta é a peça decisiva, perfeita, inigualável?
Além disso, esses livros tornam-se desafios à imaginação, a outros escritos, ao desenvolvimento de paixões alimentadas pela sua própria inatingibilidade. Não é por acaso que muitas destas páginas perdidas acabaram por provocar a escrita de novos livros.
Mas não é só isso, é algo mais.
Num romance de finais do século passado, uma escritora canadiana, Anna Michaels, escreveu:
Não há ausência se permanece, pelo menos, a recordação da ausência. (...) Se alguém já não tem a terra, mas tem a recordação da terra, pode sempre desenhar um mapa.
Uma assinatura provocadora, irreverente, diferente, ascendente, solar, bem disposta.
Pablo Picasso, uma pessoa ímpar.
Quando estudei grafologia no Centro Nacional de Cultura com o Mestre Alberto Vaz da Silva aprendi a 'ler' o que dizem as assinaturas. Mas não são apenas as assinaturas em si que falam dos seus autores mas, sim, como se comparam com o texto, onde se localizam na página, etc. Contudo, mesmo não tendo aprendido a teoria e a prática da coisa, se prestarmos atenção, qualquer pessoa pode verificar que grande parte das assinaturas fala por si.
Uma assinatura que é uma coisa em forma de assim, a bold, agressiva, esquinada, toda ela a impôr um forte 'quero, posso e mando', um impostor
De vez em quando, alguém que muito bem conhece este meu interesse, sem me dizer de quem é, mostra-me uma assinatura e pergunta: 'O que tem a dizer-me desta pessoa?' E eu disparo: um infantilóide ou alguém que não é de fiar ou um farsante de primeira ou uma pessoa séria ou uma pessoa solar. Geralmente ele confirma: também me parece.
Uma assinatura que, a bem dizer, não é nada: um faz de conta, uma tentativa de qualquer coisa mas hesitante, meio espalhafatosa, meio parva
Mas, diga-se, geralmente, só me sinto à vontade para responder assim às cegas, descontextualizando a assinatura do resto, quando não sei de quem é pois, se souber, receando deixar-me influenciar pelo que já conheço da pessoa, prefiro abster-me.
Uma assinatura sem disfarces, simples, aberta, humilde mas não subserviente. Gandhi.
O que vos mostro aqui são as assinaturas de algumas pessoas que todos conhecemos. Cada um que ajuíze por si mas arrisco-me a dizer o que, sem rede, me ocorre. Mas, note-se, não é uma análise como deve ser, são meros palpites.
No artigo de onde as retirei dizia que a mais estranha (que confundia quem a via) era a Angelina Jolie. Confirmo que é estranha. Dir-se-ia que uma pessoa emocionalmente escorreita e segura do seu valor não faria uma assinatura tão desacertada.
Uma que sempre me surpreendeu foi a de Marilyn Monroe. Pela imagem que mais se lhe colou à pele, eu seria levada a esperar uma assinatura com letras quase infantis, desenhadas para querer parecer 'adulta' ou com alguma hesitação ou pontinhos ou qualquer coisa que denotasse alguma insegurança interior, disfarçando através de uma manobra de diversão. Mas, pelo contrário, é toda ela um statement, afirmativa, forte, revelando um forte querer e uma assunção de si própria. E... no entanto... como sabemos, qualquer coisa nela se perdeu, se quebrou.
Ainda no outro dia falei de Johnny Depp. A assinatura mostra bem a disparidade que existe entre as suas personas. Muita coisa e nenhuma. Alguma leviandade. E no sentido descendente.
Uma assinatura que revela um esteta, um elegante depurado, um criativo com gosto de se lançar em altos voos. David Bowie, um ser notoriamente alado.
A assinatura de uma pessoa que se quer afirmar por si, apenas por si, por si em ponto grande -- mas com um nó a prender-lhe a vontade. Amy Winehouse.
A sinistra assinatura de Der Füher. Uma lâmina sempre a meio, um sentido mais do que descendente, quase a enterrar, uma maldade pequenina aplicada com muita força. Hitler, o bandido-mor.
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Bem. Não vou continuar senão isto fica um lençol imperdoável. Mas isto da grafologia é um tema que me entusiasma. Curiosamente, como creio que já aqui o confessei, não consigo analisar nem a minha assinatura nem a minha escrita. Nada. Não consigo. Nem quero.
Ainda há bocado estive ali em baixo a dizer que não via puto de sensualidade ou, sequer, ponta de graça na pintura de El Greco. Tinha acabado de ler O nervo ótico no qual a María Gainza me tinha surpreendido ao referir a sensualidade escandalosa dos corpos de El Greco. Ora eu, naquela obra, só via gente mal encarada, enferma, com a pele translúcida de quem já estava mais para lá do que para cá.
Mas eu, nestas coisas, nunca acho que sou mais esperta ou perspicaz do que os outros e, portanto, humildemente, fui ver a obra do homem com outros olhos. É que se dá esta coisa curiosa: a gente parece que só presta atenção àquilo para que já está, antes, minimamente desperto. Tento sempre ter uma visão aberta, despreconceituosa, para que o meu olhar leve até ao cérebro todos os sinais que conseguir captar mas frequentemente constato que a maior parte fica pelo caminho.
Assim foi também, agora, com a atenção activada pela opinião da Maía Gainza. Olhei melhor para A visão de S. João.
O dito San Juan lá está como eu sempre os achei a todos os que são paridos pelo El Greco: cabecinha de alfinete, de cara à banda, de nariz espetado virado para o céu, branquelas, uma pele a condizer com o azul-cueca do vestidinho.
Mas depois, olhando em redor, ali estava aquilo em que não teria reparado não fora a dica da Gainza. Como se estivessem no Meco, ali estavam os outros, um despropósito de maltinha toda em pelota.
Está certo que lá estão todos, uma vez mais, de cara minguada e à banda, cabeça virada para o além. Mas é verdade: corpos nus, sensuais.
Extraio-os do conjunto para que melhor se evidenciem.
As mulheres cobrem os seios e deixam a zona púbica à vista (embora, do que se vê, a gente tenha que admitir que das duas uma: ou eram assexuadas ou, já naquela altura, faziam depilação brasileira); os homens estão todos de mãos ao ar, descaradamente em nu frontal, não tentam tapar nada (embora, verdade se diga, não sendo especialmente abonados, também não teriam muito que esconder).
Mas, ao ver os corpos, as posições, a proximidade entre eles, ocorreu-me que o sacana do Picasso, que copiava tudo o que via, às tantas não apenas foi buscar aquelas caras às máscaras africanas como a composição e os corpos ao pessoal que se juntou a presenciar as maluqueiras do S. João.
Fui ver o que diz o São Google e constatei que há por aí mais quem faça essa fofoca e mostre, como prova, o desenho a carvão dos nus de 1905 que terão servido de esboço às Meninas que veriam a luz do dia em 1907, cerca de três séculos depois da Visões de S.João do El Greco que foram inventadas em 1608.
Mas pronto, isto para dizer que, devota de Rothko e outros que tais, continuo a não engraçar com as pinturas do El Greco mas, vá, para a próxima vou olhar com mais atenção para o que está à volta, sob, sobre, atrás ou à espreita das figurinhas principais. Pode ser que, bem disfarçadinhos (ou nem tanto), estejam os motivos mais interessantes da obra.
Fomos almoçar a um restaurante numa pequena aldeia aqui perto. Chegámos bem já depois das duas. Os trabalhos no campo têm disto. Há uma sequência que deve ser cumprida. E banho antes de almoçar e fechar a casa e mais a viagem... e deu nisto. Nestas terras almoça-se cedo. Fomos os últimos a chegar, já o restaurante estava quase vazio e, naturalmente, também fomos os últimos a sair, passava das três da tarde. O dono da casa e os empregados estudavam a disposição das mesas e a mulher do cozinheiro compunha umas jarras na entrada. E tantos os cuidados que perguntei: 'Vai haver festa ao jantar, não?'. Com ar de quem estava a ceder a uma imposição com a qual não se identificava lá muito, respondeu-me ela, enquanto encolhia os ombros e arqueava as sobrancelhas: 'Vamos fazer a Noite dos Namorados... Vamos ter música ao vivo. Estamos a decorar para dar um arzinho assim mais... romântico'. Parecia tímida ao assumir a cedência aos ditames comerciais.
Nem nos tínhamos lembrado. Dia dos Namorados.
Depois do restaurante e antes de virmos para casa, fomos a um mini-mercado. Passámos pela florista. Uma lojinha pequenina com uns quantos vasinhos à porta. O meu marido leu o nome: Belinha Florista. Olhei. Reparei que, por dentro da pequena montra, tinham uns fios suspensos com uns quantos coraçãozinhos encarnados. A Belinha não se tinha esquecido do Dia dos Namorados. Pelo aspecto dos homens que costumo ver por ali, conversando no passeio junto ao café ou à loja que vende máquinas agrícolas, diria que a registadora da Belinha não notará grande incremento mas, que sei eu?, quem vê caras não vê corações.
Tirando isso, não dei conta de outras comemorações.
Já acertámos com o senhor da máquina a limpeza daquela nesga de terreno lá ao fundo, a seguir à serventia. Em tempos havia lá colmeias. Presumo que o senhor que nos pediu para lá as ter já não se dedique a isso. Nem sei se ainda vive. Naquela altura, quase há vinte anos, já não era nada novo. O senhor da máquina vem no sábado quase de madrugada. Por aqui a alvorada é sempre cedo. E quero acompanhar, não vá alinhar pelo meu marido e também ser do clube do 'vai tudo abaixo'.
Entretanto, dando continuidade à nossa labuta, já se cortaram mais um monte de ramos dos cedros que estão relativamente perto da casa para que a copa fique bem mais alta que os beirais. Já se cortou em troncos para a lareira tudo o que se conseguiu. Já se desbastou mais tojo, é uma praga o tojo. Já se fizeram grandes fogueiras, uma de manhã e outra de tarde.
A quantidade de ramos e mato que já queimámos é brutal e, no entanto, olha-se e parece um bosque em estado virgem. Tínhamos que estar cá um ou dois meses de seguida, dedicados a isto. E tínhamos que estar fisicamente habituados a tanto esforço. Ao quarto dia estamos exaustos.
Ao fim do dia, começou a cair uma humidade que era quase uma chuvinha tímida. Anoitecia, as árvores já eram apenas vultos, e vinha da terra um perfume bom, orgânico. A fogueira ainda estava viva e deixava no ar o cheiro bom do cedro a arder. O prazer de estar ali é difícil de descrever. E é curioso como os nossos olhos se habituam à luz a esvanecer-se. Ou porque os passos já conhecem os caminhos ou porque os olhos aprendem a desvendar os vultos que se escondem na escuridão, a verdade é que regressámos às escuras sem qualquer problema.
Quando chegámos ao pé da casa, o meu marido lembrou-se que tinha deixado a escada encostada a um dos cedros que está do lado de lá do estúdio. Fui buscar uma lanterna para o ajudar a encontrá-la e fiquei a apontar enquanto ele ia até lá. De repente, um barulho, um sobressalto, várias asas a baterem em uníssono, com força. Assustámo-nos. Mas os pássaros, de certeza, que se assustaram ainda mais tal o alarido do bater de asas.
Agora que cheguei à etapa lúdica da jornada computacional (ou seja, depois de responder a mails de trabalho e de autorizações e outras cenas), dei com uma selecção de músicas românticas.
Lá está, Dia de S. Valentim que se preze pede banda sonora.
Conheço umas, não conheço outras.
Se eu tivesse que escolher a 'nossa' música haveria de me ver grega. Se lhe perguntasse a ele, diria que me deixasse de perguntas sem sentido. Talvez a muito custo lhe arrancasse alguma coisa. E eu lembro-me de uma ou duas mas não que sejam especialmente românticas, apenas as associo a momentos que, de alguma forma ficaram gravados na minha memória de uma forma muito intensa.
Mas, sim, Leonard Cohen seria um dos que teria numa selecção que fizesse. Contudo, talvez não com a dele que é considerada uma das mais românticas de todos os tempos, a So long, Marianne, mas com outra. Talvez I'm your man. O meu amor é sempre mais erotizado do que puramente romântico. Outra que eu quereria incluir seria Nina Simone. Contudo, não tinha presente a canção que vejo na selecção do The Guardian. Mas ouvi-a e gostei. Claro que gostei. Gosto sempre de Nina Simone.
Bem. E mais não me ocorre, por ora. Se calhar é porque, enquanto escrevo estou com um olho no burro e outro no cigano, encantada com as jóias alimentares que o José Avillez está a descrever. O seu menu de degustação, no Belcanto, tem fama e diz quem já lá foi que é manjar dos deuses. Mas 165 euros por pessoa é obra. Será que ele também lá festejou o Dia dos Namorados?
PS: E já vos contei que aqui a net é a pedal...? Escrevo várias palavras e fico a vê-las a apareceeeeeer... devagariiiiinho.... Ou clico numa coisa e o ecrã fica em suspenso, a rodinha a rodar, a rodar, a rodar... e, muitas vezes, pede-me que faça o reload da página. Ou faço um post com imagens e vídeos e o que me aprece são espaços em branco, não consegue carregar imagens ou vídeos. Um desatino. Por isso, por muito que me apteceça escrever mais, acabo por desistir. Ah, os malefícios de se estar longe da civilização...
PS2: E volto aqui para comentar uma cena: aqui não temos cabo, é mesmo a TDT ou lá como se chama. Portanto, enquanto me entretinha a dar uma volta por alguns blogs, fui tenntando descobrir coisa que se visse. Fui dar à TVI e às Não sei Quantas Sombras de Grey. Só vi a última parte. Está bom de ver que não li o livro e em boa hora não tinha visto o filme. Uma sensaboria sem pitada de glamour ou sensualidade. Uma estopada metida a besta. Não dá para perceber o sucesso. Li, em tempos, que o sucesso provinha de donas de casa ou mulheres casadas ou coisa do género. Presumo que das que são pobres de espírito ou carentes até à última casa, daquele tipo de trepar pelas paredes ou matar cachorro a grito.
Estou de volta a casa. A valise está desfeita, tudo devidamente arrumado. Também isto já está mais do que normalizado e faz-se e desfaz-se num minuto. Melhor: desfaz-se em menos de 1 minuto mas o fazer não é nada 1 minuto, é mais demorado pois várias toilettes são geralmente ensaiadas antes de emaladas. Isto, claro, depois de avaliar o clima nas paragens de destino e de equacionar se deve ir uma segunda alternativa para um just in case. Mas pronto, já fui, já vim, já não restam vestígios da minha ausência e já cá estou, de novo, no meu sofá de estimação.
Num mail que recebi referia-se o autor à fastididiosa deslocação. Nada. Por vezes, são fastidiosas, mas não esta. Esta foi toda boa. Claro que há algum cansaço porque isto que andar de um lado para o outro não é a mesma coisa que estar de perna estendida. Mas não interessa. Foi bom. E o que me diverti e o que dancei soma ainda mais agrado à andança.
Além do mais, é um sossego estar longe de notícias. Rodeada de gente que se vê apenas quando o rei faz anos, toda a gente numa animação, a noite o que ontem já vos tinha contado, depois uma espertina, a seguir uma jornada e, agora, perdida e sono -- no news, portanto. Li que há dois ministros novos mas, quanto a isso, nada, não é tema.
Ando com vontade de ir ao cinema mas não há nenhum filme que me pareça suficientemente aliciante. Não sei o que se passa para ser a indigência cinéfila que se vê. Que saudades de grandes filmes baseados em grandes obras, com grandes interpretações, grandes bandas sonoras. Que saudades de estar no escurinho do cinema a ver um grande filme, emocionada, deslumbrada. Que saudades.
Também ando com vontade de ir ver uma grande exposição e é a mesma coisa: nada. Estive a espreitar os sites de alguns museus e nada me atrai.
Por isso, sinto-me como se estivesse nas vésperas de ir fazer alguma coisa que me agrade mas com a frustração de não saber o quê.
Também já pensei: será que há por aí algum little passeio, bom a valer, e que me encha as medidas? Mas nada me ocorre. Ir visitar castelos, palácios, miradouros secretos, subterrâneos iluminados? Mas também nada de estimulante e novo se me chega à ideia. Lembro-me do lançamento do livro da Paula Rego e Antonio Tabucchi no Palácio Fronteira num belo fim de dia, a Paula Rego a olhar para mim muito atenta, a dizer-me uma coisa simpática. Uma coisa assim é que agora me apetecia. Um cocktail agradável, o jardim lindíssimo, lots of beuatiful people mas de tipo intelectual e artístico. Uma coisa deveras civilizada. Também me lembro da inauguração de uma exposição no Palácio Galveias, à noite, pinturas bonitas, as salas bonitas e tudo gente elegante. Uma coisa assim também me ia bem.
Ou aquele jantar gourmet, nova cozinha, ou melhor, cozinha de fusão, num palácio, servido e explicado pelo chef, tudo gente discreta como discretos são os verdadeiros burgueses. Depois a vir à noite, eu sozinha no carro, estradas estreitas entre intenso arvoredo. Podia calhar qualquer coisa assim mas, de preferência, desta vez com companhia.
Mas nada. Parece que me andam a rarear coisas assim.
No outro dia uma leitora escreveu num mail que não sabe se tudo o que escrevo é verdade. Não posso fazer nada quanto a isso. Percebo que surjam dúvidas.
Por exemplo, se eu agora escrever que me dói a cabeça vai soar credível, provavelmente ninguém duvidará -- e, no entanto, é totalmente mentira.
No entanto, este mail -- até aqui -- só tem verdades.
Mas se eu escrever assim: 'Vinha no comboio, a ler, quando adormeci. Ao acordar, tinha à minha frente um jovem que deveria ter pouco mais de metade da minha idade. Para meu espanto, lia o meu livro. Quando lhe pedi que mo devolvesse, insolentemente disse-me: se quer, venha buscá-lo. E quando eu lhe puxei o livro, ele agarrou-o com força e puxou-o na sua direcção, fazendo-me desequilibrar e quase cair para cima dele. Fiquei incomodada e com vontade de o esbofetear. Mas disse-lhe apenas: se não me dá a bem, faço-lhe cócegas até que o deixe cair. E, então, ele disse: se quiser pode fazer. Abri então a garrafinha de água, despejei-a na sua cabeça. Então ele perguntou: se tiver aí um pente, aproveitava para me pentear agora que tenho o cabelo molhado.', claro que é tudo inventado.
E agora que escrevi isto, ficou a apetecer-me ir por aí fora a inventar cenas. Podia inventar que esta sexta-feira almocei numa sala espectacular, um almoço espectacular, numa companhia se se lhe tirar o chapéu. Mas isso já seria verdade. Agora se disser: 'Às tantas o cavalheiro que estava ao meu lado, tirou uma flor do centro de mesa e ofereceu-ma e depois serviu-me um vinho que não era vinho nem licor e riu-se de eu não saber o que era', claro que talvez não seja nem uma coisa nem outra.
Enfim. Se não acontecerem para aí hecatombes ou manifestações de force majeure, talvez me dê para escrever uma coisa em que metade será meia verdade, outra metade será mais ou menos e outra metade toda inventada.
E como, nisto, até ver, metades só pode haver duas, cada um que escolha qual a que tem que ir borda fora.
Pronto. Estou para aqui a divagar em vez de ir dormir. Mas vou fazê-lo já antes que fiquem estupefactos, a olhar para isto tudo e a pensar: 'passou-se'.