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quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Pequenos passos numa nova direcção

 



Tendo a ser um bocado despassarada e, andando sempre a mil como até há pouco andava, volta e meia fazia coisas um bocado on the fly e, depois, se não voltasse a elas nos tempos mais próximos, nunca mais lhes encontrava o rasto.

Por exemplo, uma vez, numa de ir escrevendo coisas que, um dia, compilaria em livro, criei um blog especificamente para isso. Depois meteram-se mil outros assuntos, à noite o tempo não me chegava para os mínimos quanto mais para escrever essas cenas alternativas. O tempo foi passando e a existência do dito blog varreu-se-me. 

Agora, com vontade de retomar a escrita no comprimento de onda dos outros textos, lembrei-me não apenas de os usar como de garantir que tinha acesso ao editor do blog. Senão, se um dia resolvesse tentar publicar um livro, como poderia provar ser a autora se estivesse no ar um blog com alguns desses textos, blog esse a que não conseguia aceder? 

Mas qual a password...? Qual...? Está bem, está.... Nem vestígio na memória nem qualquer pista. Nada.

Contudo, nestes momentos de pressão, a cabeça ganha vontade própria. De repente, lembrei-me que, quando nos mudámos para esta casa (e já lá vão mais de dois anos e meio), um vez, ao abrir uma agenda que estava numa gavetinha de uma secretária, lá ter visto um papel com o nome do dito blog e a respectiva password. Na altura pensei: isto é precioso, não posso esquecer-me que está aqui. 

Ontem corri todas as agendas. Um desespero. Tudo virado do avesso. Na gaveta onde a tinha visto, nenhuma agenda. Corri tudo. Todas as agendas que encontrava estavam todas escritas com coisas do além. Os miúdos gostam de brincar às empresas, mexem nas gavetas, usam as agendas, escrevem o que imaginam que seja tratado numa empresa, simulam agendamentos de reuniões, simulam letra 'de médico', fazem assinaturas. Deixo-os brincar à vontade pois não uso nem nunca usei agendas. Mas ontem desesperei. Pensei: caraças, bem podia ter salvo aquela agenda, bem podia tê-la posta algures onde eles não lhe chegassem. 

Mas tarde piei... Papelinhos dentro de agendas...? Qual quê... Nada. Com as reviravoltas que os miúdos dão às coisas, como esperar que um papelinho sobrevivesse? Impossível.

Até que finalmente encontrei um caderninho em que tinha algumas passwords lá do trabalho e, no meio delas, uma de um endereço de mail cuja existência eu negaria minutos antes. Não me lembrava daquele mail. Para que o criei? Não me lembro. E, do dito blog, nada, claro.

Então resolvi tentar entrar no blog, numa de que acontecesse algum milagre. O problema é que também já não me lembrava bem do nome. Tentei, tentei. Nestas alturas amaldiçoo a minha cabeça no ar. Finalmente acertei. Assinalei que não me lembrava da password e, então, como que por milagre, apareceu a mensagem de que um código de recuperação tinha sido enviado para o tal endereço de mail do qual eu não tinha qualquer ideia. 

Encetei então nova busca para tentar encontrar o tal caderninho. E lá estava, já meio apagada e quase imperceptível, a password do dito endereço de mail. Entrei e lá estava o código de recuperação para entrar no tal blog. Milagre. 

Já não me lembrava do que lá tinha escrito. Lembrava-me do género mas não, em concreto, de quê. Já copiei tudo para um documento de word e já tirei o blog do ar.

Ou seja, o caminho está livre para começar uma vida nova.

Ontem deitei-me às tantas já a organizar umas coisas. 

E esta terça-feira acordei toda bem disposta. Para começar estive a pintar com canetas de bico de feltro e lápis de cor uma peça de madeira que está suspensa no terraço e que era meio tristonha. Depois estivemos a pendurar um passarinho de madeira com um rabo de penas que gira com o vento. Comprei-o num daquelas lojinhas de indianos ou paquistaneses que vendem ímanes e outras coisas do género. 

E fomos tratar de uns assuntos e comprar umas coisas e depois fomos passear para a praia. Se não fossem umas duas ou três meninas vestidas de fada ou de bailarina, não teríamos desconfiado que era dia de Carnaval. O céu tingido de névoa castanha, poeiras que quase ocultavam o sol. Dá ideia que apenas o céu é que se mascarou de céu do deserto. 

Tirando isso, nada de especial. E agora vou mudar a agulha e vou dedicar-me a outras prosas. Com licença.

Me aguardem...
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Uma boa quarta-feira
Saúde. Boa disposição. Paz.

terça-feira, fevereiro 25, 2020

Estou numa festa de Carnaval... e não sei se estou muito segura....
[Post em tempo real]





Interrompo a festa para aqui registar o ponto em que as coisas estão. Daqui a nada, talvez já estejam diferentes, talvez tudo tenha tomado um outro rumo.

Estou num solar em Sintra que, para quem passa na rua, parece apenas um grande muro com largo e alto portão duplo de madeira. Quando se entra, há um pátio com escadas e varandins de pedra a toda a volta, excepto do lado do muro que separa a casa da rua. Aparentemente as escadas vão dar a entradas distintas da casa mas em dado ponto, no interior, tudo se comunica. Tantas vezes que aqui já estive e ainda não consegui decifrar esta misteriosa arquitectura.

De uma das salas vai dar-se a um terraço amplo, junto à serra, com o muro de pedra que sustém a terra coberto de hera. É aqui que muitas vezes, em dias de festa grande, se servem as refeições. Quando chove ou está frio, o terraço está coberto e há aquecedores altos.

Este é um lugar com séculos de história e já muito por aqui se deve ter vivido. A decoração deixa transparecer não apenas o gosto dos donos actuais mas, sobretudo, as marcas das várias gerações anteriores. Há pinturas que, de grandes que são, quase ocupam paredes, retratos de mulheres e de homens de há muitos anos, vários retratos a óleo de crianças, há enormes jarrões antigos onde caberia uma pessoa, há nobres castiçais, grandes e belas tapeçarias. Passa-se de algumas divisões para outras afastando pesados reposteiros em veludo. Na grande sala é normal a lareira estar acesa pois por aqui o clima é frio e húmido. O ambiente é sempre muito acolhedor.

Já aqui estive em inúmeras circunstâncias e já algumas vezes falei deste belo casarão.

Hoje os donos e alguns amigos resolveram festejar o Carnaval. Sendo gente avessa a manifestações efusivas e populares, não sei o que desta vez lhes passou pela cabeça. A idade às vezes produz curiosos efeitos em algumas personalidades. A ele sempre o vi reservado e a ela silenciosa, com um sorriso que parece tímido mas que alguns tomam por arrogante. No entanto, ultimamente, a ele noto-o como se a querer viver a adolescência que mal pôde experimentar em devido tempo, tantas as responsabilidades que a família lhe impôs e que ele próprio aceitou ao ser pai ainda não tinha saído da adolescência. Não há muito, surpreendi-me com eles, dançando como nunca julguei que fossem capazes de o fazer, libertos e quase irreverentes.

Pois bem. Aqui estamos. O convite dizia apenas que teríamos que estar irreconhecíveis e que, sob pretexto algum, deveríamos revelar a nossa identidade. Nem à saída. 

Isto não faz muito o meu género e do meu marido muito menos. Não queria vir. A custo lá consegui que viesse mas avisou-me que não arranjasse pretexto para madrugar.

Não posso revelar qual o meu disfarce, nem o dele pois são essas as regras do jogo. Mas acho que estou bem e ele está com muito charme.

O palacete tem garagem mas apenas para as viaturas da casa. Os convidados têm sempre que deixar o carro numa das ruas estreitas e inclinadas da zona. 

Por isso, quando íamos para lá, foi sem surpresa que vimos à nossa frente algumas pessoas mascaradas. Acenaram-nos e retribuímos. Ninguém fala para não se denunciar.

Há disfarces extraordinários. 

Há algumas mulheres que entregaram as capas aos empregados, que estão igualmente de rosto tapado, e que ficaram nuas, os corpos sumptuosamente maquilhados. Há corpos de tigre, há borboletas, há sereias. Contudo, quando fui tomar um seio de uma delas na minha mão, um seio pesado, percebi que ela não está exactamente nua. Sobre o corpo pintado tem uma lycra transparente e aderente. Por isso, não fiquei com tinta na minha mão. Descarada, pegou na minha outra mão e colocou-a no outro seio. E com as suas mãos fez que as minhas mãos a acariciassem. Reparei que o meu marido estava encostado a uma parede, certamente observando. Pensei que não deveríamos ter vindo ao mesmo tempo nem deveríamos conhecer o disfarce um do outro. Estaríamos mais à vontade. Ou talvez não. Quero lá saber.

Há pouco, estava a sentir calor, fui até a um dos varandins. Num canto, dois homens que estavam disfarçados de divindades gregas pareciam sussurrar, como se quisessem fugir ao interdito de não se denunciarem. Quando me viram, disfarçaram e afastaram-se mas, à passagem, fiquei na dúvida. Talvez não fossem dois homens.

Lá em baixo, no pátio, várias cortesãs dançavam como se o seu corpo fosse parte da música. Ondulavam livremente e a sensualidade era palpável. De vez em quando, uma encostava-se às costas de uma outra e a forma como se roçava fez-me pensar que talvez não fosse exactamente uma cortesã.

Fui buscar uma bebida. Curiosamente, as palhinhas são metálicas. A sustentabilidade está presente.

Olhei em volta e não descobri o meu marido. Pensei que seria um desastre se se tivessse ido embora. 

Quando estava a refrescar-me, bebendo a fria bebida e olhando os circundantes com pena de não ter trazido a máquina fotográfica, um vulto, alto, vestido de negro, um capuz negro, aproximou-se. Assustei-me. Não percebi se era suposto estar disfarçado de meliante, se de uma qualquer seita secreta. Senti-me a petrificar. Mas ele levantou a sua bebida, como que saudando-me. Levantei a minha mas quase a medo. Baixou a cabeça ao de leve, como que cumprimentando-me. Aproximou-se mais. Como um gato traiçoeiro, como um lobo inevitável, pôs-se atrás de mim. Arrepiada, paralisada, deixei-me ficar. Poderia ter fugido mas não consegui, nem me ocorreu. Senti que desviava a máscara e que se aproximava perigosamente. Senti os seus lábios beijando-me o ombro desnudo. Estremeci. Depois voltou a ajeitar a máscara, passou para a minha frente, tomou-me a mão enluvada e fez o gesto de a levar aos lábios. Estivesse eu mais calma e teria sorrido. Mas não, fiquei trémula. E quase fugi.

Quando entrei e comecei a circular, uma Marie Antoinette veio dar-me o braço, e cheia de coquetteries, ternuras e mesuras, como se estivesse divertida, levou-me até à sala da lareira.

Num dos amplos sofás, o meu marido e duas freiras, uma de cada lado e ele, de lado em relação a uma. Essa estava de joelhos em cima do sofá, e fazia-lhe uma massagem nos ombros e a outra estava a rezar o terço, com um rosário, com a cabeça encostada ao peito dele.

Quando me viu, ele sobressaltou-se ou, pelo menos, fingiu que se sobressaltava, mas eu não quis saber. Se duas freiras estavam a zelar pela saúde do seu corpo e da sua alma, melhor para ele. Segui para outra sala, de braço dado à Marie Antoinette. 

De repente, silencioso e esquivo como um lobo sombrio, vi que, ao fundo, o homem de negro deslizava até à biblioteca. A Marie Antoinette fez-me um aceno, como se se despedisse de mim e empurrou-me para lá.

A medo, assomei à porta.

Junto a uma estante, fez-me um gesto de aproximação. E então, quando, a medo, dei uns passos na sua direcção, ele mostrou-me um livro. Gelei. Não, aquele livro não. Não podia ser. Como? Não pode ser. Tive medo. Tenho medo. Por isso, saí apressadamente, o coração descompassado, e vim até aqui, até ao boudoir da dona da casa, e aqui estou a fazer tempo. Tomara que ele não me encontre, tomara que se vá embora. Tomara que eu esteja a delirar. Tomara que as duas freiras libertem o meu marido para nos irmos embora.

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Não sei se ainda cá voltarei hoje. 

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Por facilidade, usei máscaras de Veneza para ilustrar o post mas, como já referi, nem toda a gente está assim.

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quinta-feira, março 07, 2019

He's in love (and we're all gonna die)
[Mais uma paródia de Randy Rainbow]
E uma ou outra breve reflexão sobre isto tudo em tempo de cinzas


De vez em quando dá-me para o pessimismo e dou por mim a pensar que isto ainda não vai acabar bem. E isto é, nada mais, nada menos, que o mundo. Pessimista que é pessimista não faz por menos. Nada de dramazinho particular, choradinho pífio. Nada disso. Se é para antecipar desgraças pois que seja em grande, a malta toda a implodir, coisa assim, tragédia do mais tenebroso que há. 

E digo isto porque.

Nestes momentos em que me parece que estamos a ser absorvidos por um buraco negro, sinto-me especialmente perplexa e assustada por ver que, um pouco por todo o lado, o povo -- e nessas alturas deixo-me de delicadezas e mentalmente digo 'a populaça' -- parece que gosta de lamber o rabo de quem o pontapeia. Vai um país a votos e os que mais têm a perder são os que mais depressa votam nos maiores estafermos. 

Pessimista mas ainda com um resquício de racionalidade, penso que não admira: os mais carentes de tudo são os mais vulneráveis, os mais facilmente manipuláveis. Mas como pobres, dependentes de apoios, pouco escolados, mal informados e etc. são a maioria, são eles que decidem as eleições. E, portanto, se aparecer um anormal qualquer a dizer que vai correr com os bandidos, os malandros e os imigrantes a varapau, o zé povo aplaude e, sem pestanejar, brinda-o com likes no Face e no Insta e, na altura de votar, entrega-lhe o voto. E nem cuida de saber que, na boca dos malucos como o Trump, o Bolsonaro, a Le Pen e tantos outros, os bandidos, os malandros e os imigrantes são justamente eles, os pobres, as vítimas.

Só que, para meu bem, apenas sou pessimista a espaços. Poupo-me o mais que posso. Portanto, passado pouco tempo, já eu estou a consolar-me, a desfiar argumentos beneméritos, que toda a história foi sempre este descer ladeira abaixo -- e forço a redundância, descer-abaixo -- que sempre pareceu que o mundo estava a bater no fundo, e que, afinal de contas, como uma bola saltitona, volta e meia surpreende o mundinho com lampejos, momentos de luz. 

Mas, não sei se já repararam, também sou dada à dialética. É que, logo a seguir, ocorre-me que nada de optimismos vãos porque momentos de esperança só mesmo nos momentos de ruptura, coisa breve, quando a malta ainda está boquiaberta a ver no que a disrupção vai dar.  Fogachos. Porque, logo a seguir, mal a poeira assenta, já a malta se divide, uns a acharem que afinal foi só fumaça, outros a reivindicarem outra coisa, que não era para ser nada daquilo, outros a quererem combater, outros a quererem mais, outros a quererem menos. E quanto mais letrados, mais dados a frioleiras, pior. Gente que usa a cabeça é gente infeliz, parece que nunca nada está bem, uma seca. Passam a vida a dissertar, a jogar conversa fora, ninguém aguenta. E, por isso, a maltosa, a dita populaça, farta de conversa, vai mas é na lábia fácil, no mamar doce dos badamerdas deste mundo, dos populistas, das bestas quadradas, dos tiranos e tiranetes, dos fascistas ou dos simples palhaços.

E aqui chegada.

Não sei tirar nenhuma conclusão. Uma ou outra bissectriz eu ainda sei tirar. Agora conclusão no meio de uma confusão destas eu não sei. Isto é coisa para se resolver com recurso a grafos, a heurísticas, a algoritmos desencabrestados no meio de topologias aluadas. Na volta, aqui é que entrava bem a tal de inteligência artificial. 

Entretanto, aconselho-me a não me preocupar muito com inequações que gostam de se fazer difíceis e a, em vez disso, me divertir a observar com quem consegue rir-se dessa desqualificada tropa fandanga.



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E até já

segunda-feira, março 04, 2019

Um teste





Se contasse tudo ninguém ia acreditar pelo que apenas direi que trabalhei no duro de manhã à noite e que, sendo já noite, ao cortar arame com uma tesoura, arranquei um bocado de qualquer coisa no dedo que fez com que tenha sangrado abundantente e ainda não esteja bom. Agora pus um algodão com betadine e atei em volta com papel higiénico dobrado. A ver se estanca para não sujar a cama toda. Não tenho cá água oxigenada e tenho que procurar melhor porque não vi pensos e não estou bem a ver como é que sem um penso vou evitar o desastre total. 

Todo o santo dia serrei até mais não poder, andei em cima de muros e de rochas para chegar a ramos mais altos, prendi rede na vedação, apanhei ramos e ramagens e ramalhetes. E o meu marido fez isso tudo e mais uma fogueira que durou horas. Ainda há bocado foi lá fora, de lanterna, ver se já está tudo apagado. Deitou água e água e diz que continua incandescente. Tudo na natureza tem uma força difícil de explicar.


E, assim sendo, ao segundo dia de trabalhos altamente esforçados, à noite, depois de jantarmos, pusemo-nos os dois a ver aquele programa de culinária na 1 e, passado um bocado, já eu estava a dormir. Ele também deve ter estado pois levantou-se agora daqui a dizer que tinha dado um jeito ao pescoço.

Agora estou a rever o Thelma e Louise e estou a gostar. O poder de duas mulheres à solta pode ser letal. Sorry, queria dizer fatal. Gostei bastante na altura e agora contiuo a gostar. O Brad Pitt era um rapazola insolente e com um potencial transbordante e, passado todos estes anos, ainda é. Aquela ligação remota entre o detective desempenhado por Harvey Keitel e Louise (Susan Sarandon) mostra bem como não é preciso a visão do outro ou a presença física para que se estabeleçam laços que dificilmente se explicam. Tudo bom no filme. Até a música.


E estive a ler uma entrevista com Siri Hustvedt e muita coisa ali me interessou. Não foi só aquela urgência de despachar trabalho antes que seja tarde. Percebo-a muito bem. Foi também aquilo das memórias. A recriação das memórias. A observação sobre Karl Ove Knausgaard que escreveu milhares de páginas a reproduzir recordações ao milímetro, diálogos de toda a espécie e feitio. Diz ela: só se fosse um savant.
E eu, que conheço um savant, fiquei a pensar que é das coisas mais extraordinárias e difícil de perceber, a cabeça de um savant. Mas isso é tema complexo, não é coisa para aqui. Ou talvez fique para um dia em que me deixe de pruridos e conte apenas algumas particularidades. (Ou não). 
Este tema de as nossas memórias se calhar ganharem vida própria é um mistério que me atrai.
Readers of Karl Ove Knausgaard’s six volumes of memoir, My Life, with their endless descriptions of routine chores, may take note. “Many successful memoirs have dialogues that goes on for page after page after page, dialogue that nobody could possibly remember, unless you are a savant of some kind,” Hustvedt says. “And that’s extremely rare, so what are we talking about? You can’t possibly believe the memoir writers have that kind of memory.”

No meio da conversa, a propósito de uma coisa que também me desperta sempre muito interesse, o da cegueira não intencional, aquilo de a gente apenas ver parte do que nos é dado ver -- a parte que já esperávamos ver -- refere um vídeo que está no youtube. Como sou bem mandada, fui logo ver e, de facto, tem piada.

Como, ao ver o vídeo, fruto do que a Siri tinha dito, já sabia ao que ia, passei o primeiro teste, muito admirada por cerca de metade dos incautos não passarem. E, de seguida, estatelei-me no segundo. Uma vez mais, só vi aquilo que já sabia que ia ver. Sou uma ceguinha, é o que é. Mas, acho que não sou só eu.

Convido-vos a ver atentamente o vídeo. Estejam atentos ao desafio, tentem acertar. Exige-se apenas uma coisa: concentração.


Depois me dirão se não é verdade isto de sermos ceguinhos. E pensem comigo: se o que vemos é apenas uma ínfima parte do que há para ver, como seria caleidoscópico o mundo se conseguíssemos ver tudo ou, vá, quase tudo. Na volta, era mas é insuportável.



E então? Ceguinhos...? Ou... apenas míopes? 

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E estamos a entrar no carnaval. Os meninos mascaram-se, fazem desfiles, brincam. Em algumas cidades e vilas de Portugal algumas mulheres esquecem o clima e vestem-se de baianas e, noutras,  os homens soltam a Mariete que há em si e mascaram-se de matrafonas.

As imagens que aqui partilhei estão no The Guardian e não são forçosamente de carnaval, embora algumas o sejam. A primeira, aquela lá em cima, é espetacular: Mardis Gras avant la lettre. Mas, por exemplo, esta aqui abaixo mostra um jogo popular inglês que consiste em provas nas quais os cavalheiros vão com as mulheres às costas, presas pelas pernas. Amanhã vou ver se o meu marido consegue segurar-me assim e depois, como certamente há-de conseguir, vou sugerir que vá serrar ramos comigo assim. Vou levar a máquina fotográfica para fazer a reportagem do mundo visto segundo uma perspectiva nova.


Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Pop-up





Não brinquei ao Carnaval. Só há pouco, ao ver o noticiário, reparei que as ruas de muitas terras se encheram de caretos, caraças, carantonhas, matrafonas e baianas.

Quando eu era miúda mascarava-me sempre. Eu e amigas e amigos brincávamos ao entrudo e entronchávamo-nos com roupas velhas que as mães punham à nossa disposição. E andávamos pelas ruas a rir e a fazer barulho (supostamente a pregar sustos a quem passava). Era um bairro de moradias e, ao tempo, o trânsito não era um perigo.

Penso que era por essa altura que faziam um boneco gigante, julgo que fariam a roupa e a enchiam talvez de papéis velhos ou de trapos. Tenho ideia que o suspendiam numa cruz e a cegada acabava com o homem-entrudo a arder. Festejos pagãos, acho eu. [Podia agora ir pesquisar para ver se há fundo religioso nisto. Talvez. Ocorre-me que talvez fosse a figura do Judas. Whatever]

Quando já mais crescida, adolescente ou jovem adulta, passei a ir a 'assaltos'. Mascarávamo-nos, então, mais a sério e havia festa rija e bailarico. Mais tarde, era um primo do meu marido que se pelava por forrobodós que passou a organizá-los em sua casa. A coisa dava-se na cave da sua moradia e era coisa a preceito. Ninguém devia ser identificável. Era bem divertido. Aparecia muita gente e, até tarde na noite, não sabíamos quem era quem. Durava até alta madrugada.

O bocado de tronco do meu pinheiro caído de que ontem vos falei.
Parece que, com o tempo, tem vindo a adquirir feições humanas
e está sempre com florzinhas ou ervinhas


Passei depois para ser a mãe de meninos que se mascaravam. Na altura havia quem alugasse fatos para crianças, mas eu nunca aluguei. Não só não sabia se aquilo estava limpo como me parecia piroso. Então, entre mim e a minha mãe, improvisávamos alguns disfarces para os miúdos levarem para a escola. A minha filha teria preferido ir de dama antiga ou espanhola como via algumas colegas mas nunca consegui vencer aquela minha barreira e, portanto, nunca consegui dar-lhe essa alegria. O meu filho não apreciava grandemente ir mascarado pelo que julgo que até apreciava que eu não o pusesse disfarçado de qualquer coisa que o fizesse sentir envergonhado. 

Contudo, já adolescente, lembro-me de o ver de personagem de Braveheart, kilt, cabeleira ruiva. Por essa altura, foi a minha filha que se tornou mais avessa a mascaradas.

Agora são os pimentinhas. No outro dia estava ela de espanhola, linda, mas, como sempre, superior, sem dar confiança, como se fosse normal andar assim, cheia de folhos, com flores no cabelo, toda maquilhada. O primo que é quase da idade dela estava de ladrão, todo vestido de preto e um passa-montanhas também preto que lhe deixava apenas os olhos de fora. Os outros dois rapazes vestiram-se de futebolistas pelo que o disfarce era relativo. O bebé estava apenas com um laço encarnado brilhante a fazer de papillon.


Mas pronto, aqui enfronhados nas nossas labutas, nem nos lembrámos do Carnaval. O mato e ramagens que debulhei, os montes que esmifrei para mais facilmente caberem no bidão... De novo, até de noite. O meu marido serrou ramos e ramos pois não queremos ramagens a roçar o chão porque acabam misturados com o mato. E queimou e queimou. Uma luta. Não é que o terreno seja infinito. Não é. As fotografias talvez induzam em erro ou as minhas palavras também. Não é daqueles latifúndios de que nem se sabe bem onde estão as extremas. Conheço pessoas que têm propriedades com largas centenas de hectares. Coisa a perder de vista, com barragens, habitação dos caseiros, caminhos largos, criação de animais, casas de hóspedes. Não é nem de longe nem de perto o nosso caso. Tem um tamanho bastante comportável e de tal forma que somos nós mesmos que tratamos dele. A questão é que tudo nele desatou a crescer desabaladamente. E por cada coisa que se serre há que transportá-la, cortá-la em bocados mais pequenos, queimá-la. Muito trabalho e um trabalho pesado. Pelo menos, para quem, como nós, não nasceu nestes meios nem está grandemente habituado a trabalhos braçais de sol a sol.


Do lado de lá da serventia e, portanto fora da vedação, há mais um bocado de terreno, coisa para pouco mais de mil metros quadrados e, do que me lembro, com uma bela vista. Mato pegado. Apesar de ser um bocado pequeno tem tal mato cerrado, árvores e moitas pegadas, que nós dois não conseguimos dar conta daquilo. Se tivessemos mais tempo, talvez. Mas só temos fins-de-semana minúsculos ou uns dois ou três dias de férias que, raramente, conseguimos enxertar no meio da vida na cidade. O vizinho do fim da rua veio ver. Estava muito admirado pois não lhe passava pela cabeça que aquele terrenozito também nos pertence. E logo ele que sabe tudo. Diz que tem um amigo que tem um tractor pequeno que pode vir cortar o mato. Salvaguardei que as árvores não e ele garantiu que aquela máquina pode poupar as árvores. E logo ali ligou para o outro, para ele vir avaliar e combinar connosco quando pode cá vir. Aí gostava eu de fazer uma casinha na árvore. A tal casinha. O meu marido tenta cortar-me a imaginação: 'Não inventes. Pára. Não estejas sempre com ideias'. Calo-me, portanto. Mas fico a imaginar uma escada de madeira a subir para uma casinha na alturas. Os meninos haveriam de adorar.


Bem. Com isto, como têm podido constatar, ando fora da actualidade. Não tenho assunto. Chego aqui à noite, salamandra a fazer quentinhos bons nesta saleta em que vemos a televisão, agora a beber um chá quentinho, a descansar. Estive a ver o programa do MEC com o Bruno Nogueira. Antes tinha estado a ver os vídeos que o YouTube tinha para me sugerir. E, uma vez mais, tinha alguns que mereceram o meu agrado. Partilho convosco este aqui abaixo, muito interessante. Há pessoas que se dedicam a actividades inesperadas. Há qualquer coisa de artístico e de oficinal nisto. Estava a ver e a pensar que eram origamis mas, afinal, são pop-ups. Há tantas maneiras boas para ocupar o tempo. E felizes aqueles que descobrem o que os deixa felizes. Pode ser cortar mato, escrever, fazer bolos, compor, pintar, fazer pop-ups, tanto faz.
Agora estou a ver um programa extraordinário na RTP 2 sobre falsários, pintores que fazem falsificações perfeitas. Agora Guy Ribes está a fazer um Matisse. É honesto na forma como fala, gosta do que faz e tem genuína admiração pelos pintores que falsifica. Interessante. Tenho visto bons programas na 2. 
Mas, enfim, não importa o quê. Bom mesmo é a gente sentir-se motivado e feliz da vida.


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O momento mágico em que o papel ganha vida -- segundo o autor, Peter Dahmen


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Como ontem e antes de ontem, as fotografias que aqui mostro foram feitas in heaven.

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segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Quem julga a actuação do Ministério Público? -- É o Dâmaso.
Quem julga os casos de justiça em Portugal? Os juízes? -- Não, é o Dâmaso.
Quem descreve a história dos últimos anos em Portugal, a da corrupção e penso que não só? -- É o Dâmaso.
Quem é o mais poderoso do País? É o nosso ubíquo Marcelo? -- Não! Nem pensar. É o Dâmaso.
Viva o Dâmaso! Viva!
Pim!


E pouco mais tenho a dizer depois o ouvir o Eduardo Dâmaso a monopolizar (com a sua presciência, assertividade e auto-segurança) o Prós e Contras. Já calou a Fátima Campos Ferreira, já calou a Maria José Morgado. o Juíz, o Advogado e o Professor que ali estão -- e todos quantos na plateia pensem que têm uma palavra a dizer sobre o tema. 


Arrasem o Ministério Público, arrasem os tribunais, arrasem o Parlamento, arrasem até a Presidência da República. Não fazem falta. Não acrescentam. Não têm a necessária coragem. Não sabem. Em representação de todos e acima de todos basta o Dâmaso.

O Dâmaso sabe que Pinto Monteiro não exerceu as suas funções ou exerceu-a de conluio com obscuros interesses. O Dâmaso sabe, no País, em cada ano, quem subornou, quem roubou, quem manipulou, quem escondeu. O Dâmaso sabe tudo.


O processo foi liquidado? O Dâmaso sabe que o foi a partir de cima. O Dâmaso sabe. O Dâmaso conta como foi.

Jornais à porta das casas onde vão decorrer buscas? -- Ora, ora, diz o Dâmaso, isso sempre aconteceu. Mesmo antes de elas acontecerem? -- Ora, ora, sorri o Dâmaso. E no seu sorriso a gente percebe a superioridade de quem sabe. 

O silêncio segredo de justiça foi violado? O Dâmaso sabe por quem. O Dâmaso sabe porquê.


Alguns jornais nunca trazem algumas notícias nas primeiras páginas? -- Vão acabar, vaticina o Dâmaso. Ele sabe.

O Dâmaso conhece os podres e as intimidades do país. Quem, como, quande, onde. O Dâmaso sabe tudo.

O Dâmaso não tem dúvidas. De nada. O Dâmaso não tem medo. De nada. O Dâmaso sabe muito. De tudo.

Acabe-se tudo o que vive do erário público (juízes, procuradores, deputados, etc, e demais agentes de despesismo e entropia) e deixe-se brilhar o Sábado e o Correio da Manhã que aí, sim, se pratica a verdadeira justiça. Deixe-se brilhar o grande líder Eduardo Dâmaso. Viva o Dâmaso. Viva! 

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E sobre o tema é isto que me ocorre. Como referi, pouco tinha a dizer. 
E menos ainda depois de ouvir o Dâmaso.

Ah, sim, já se sente o cheiro do Carnaval.


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quarta-feira, março 01, 2017

Carnaval em Lisboa
[6º de 8 Postais ilustrados de Lisboa, a bela]


Vínhamos passeando, já de regresso à Baixa, quando começámos a ouvir o som dos bombos de mistura com vozearias e algazarras. Acercámo-nos. Vinha o cortejo lá de cima, depois passou na Praça da Figueira, entrou no Rossio para logo descer, em desfile, a caminho do Terreiro do Paço, onde se ouviam outras batucadas.

Fotografando, fui andando ao lado deles, até que o meu marido me puxou pelo braço: 'Mas vais no meio do desfile...?1'. Nem percebi bem. Mas, então, reparei que, de facto, já estava no meio daquele animado grande grupo heterogéneo. Lá fui então, com ele a puxar-me pelo braço, para o lado de lá das fitas que mantinham o cortejo como um rebanho de forma a não impedir a circulação dos demais passeantes.

Vendo este grupo de foliões, creio que gente da Freguesia de Sta Maria Maior, pensei que talvez seja esta a forma mais genuína de festejar o Carnaval em Portugal: sem organizações, sem coreografias ou paramentações, cada um fazendo o que lhe dava na bolha, outros não fazendo nada, apenas indo, cada um a apresentar-se a seu gosto e todos juntos, divertidos uns com os outros, rindo-se só de se verem, ali iam, rua abaixo, famílias inteiras, vizinhos, na maior alegria e descontração.

E eu, como sempre, encantada com o que me é dado testemunhar.









O Homem-Estátua e a Mulher da Máscara
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E continuem que abaixo há mais dois postais de Lisboa.

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quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Carnaval e outras memórias






Quando eu era pequena, gostava de brincar ao Carnaval. A minha mãe deixava que eu e a as minhas amigas escolhêssemos roupa dela à nossa vontade. Provavelmente restringia discretamente a escolha mas não me lembro de ter dado por isso. Tenho ideia que não dizíamos mascarar mas entronchar.
Agora que escrevi, fiquei na dúvida se era entronchar ou entrouxar e verifiquei que existem as duas palavras e que ambas fazem sentido no contexto. 
Vestíamo-nos à senhora, usávamos soutiens das mães que enchíamos com roupas para ficarmos mamalhudas, púnhamos roupa dentro das cuecas para ficarmos rabudas, calçávamos sapatos altos, eu gostava de usar casaco com gola de peles, e fazíamos grandes penteados e maquilhávamo-nos umas às outras. Isto passava-se nas férias de Carnaval. Não íamos assim para as escolas nem havia uma indústria e um comércio dedicado à época. Éramos nós que, com a prata da casa, nos aperaltávamos. Uma das minhas amigas, vizinha de rua, tinha uma mãe que lhe dava também largueza de movimentos. Então íamos também muito para casa dela e escolhíamos colares, malas, lenços, écharpes, algumas roupas extravagantes, pinturas, roupa. Eu adorava pois havia ali uma desarrumação que me agradava muito e que destoava da ordem que a minha mãe gostava de ter no seu guarda-fatos, gavetas, guarda-jóias.
Uma vez ela andava toda arreliada porque não sabia da cédula da filha, e acho que era preciso a cédula para tratar do Bilhete de Identidade, coisa de que apenas se tratava aos nove anos, quando íamos para o liceu (pelo menos é a ideia que, a esta distância, tenho). Dizia que já tinha corrido tudo e que não fazia ideia onde teria ido parar o diabo de cédula da filha. A minha mãe ria e, em casa, comentava: 'se ela soubesse é que eu me admirava'. 
Agora que estou a falar nesta minha vizinha, de quem eu gostava bastante porque era uma mulher de armas, divertida, super-tolerante, estou a lembrar-me que foi ela que me ofereceu o meu primeiro soutien. A filha ganhou corpo de mulher muito mais cedo que eu, menstruou ao dez anos, ao passo que eu, por essa altura, era ainda uma menina. Então, quando começaram a despontar os meus seiozinhos, uns botõezinhos salientes, ela, um dia, apareceu em minha casa com um soutien de  bordado inglês, muito bonito. Fiquei tão surpreendida, tão feliz. E a minha mãe também, toda ela se ria. Acho que a minha mãe só nesse dia é que se deu conta que a sua filha estava a começar a ser crescida. Lembro-me que, logo ali, quiseram que eu experimentasse e todas elas se riam e gabavam 'olha as maminhas, já tão crescidinhas' e eu toda vaidosa, a acreditar.
Uma vez, estando nós, miúdas e miúdos do bairro a andar de bicicleta numa descida, coisa que eu adorava -- tirava as mãos do guiador, abria os braços como se fossem asas, tirava os pés dos pedais e abria também as pernas, e sentia a bicicleta desabalada por ali abaixo, sempre a ganhar velocidade --, ao apanhar areia e tendo a bicicleta derrapado sem que eu fosse a tempo de a controlar, fui espetar-me contra o muro da moradia dela, partindo a cabeça. Foram todos a correr chamar a minha mãe, eu própria devo ter ido, só me lembro do alarido, da minha mãe aflita vendo-me a escorrer sangue da cabeça, e de, de repente, ter aparecido essa minha vizinha, uma corajosa, e nos ter enfiado a todas no carro dela e lá fomos, ela a acelerar a caminho do hospital e depois ela por ali dentro que nem um vendaval (não havia cá isso de triagens) e a minha mãe atrás, comigo e com a minha amiga, a minha mãe assustadíssima, quase sem um pingo de sangue apesar de ser da minha cabeça que o sangue escorria. 
O marido dessa minha vizinha tinha sido jogador de futebol do clube da cidade, era muito conhecido, muito estimado. Nessa altura, já não jogava, tinha uma loja de venda e reparação de bicicletas. Volta e meia juntavam-se lá em casa ex-jogadores, do tempo dele, e jogadores actuais. Ela fazia grandes almoçaradas, petiscadas que duravam até à noite, comiam, bebiam, riam à gargalhada. Nesses dias, a casa estava aberta e nós, miúdos, entrávamos e saíamos, e petiscávamos também. Eu comia lá coisas que nunca comia em minha casa: salada de orelha de porco, por exemplo, que era servida numas taças enormes que quase pareciam alguidares. Eu contava isso aos meus pais, gabando aquelas iguarias. Mas a minha mãe nunca se deixou tentar, nunca fez esse tipo de petiscos.
Havia ainda uma particularidade com essa vizinha (que era uma mulher bonita, muito morena, bem fornida de carnes sem ser gorda, sempre a rir, sempre a dizer piadas): um dos jogadores ainda no activo, um bonitão que tinha um carro todo vistoso, visitava-a regularmente durante a semana. O marido dela ia sempre almoçar a casa, depois dormia uma pequena sesta e, a seguir, voltava ao trabalho. Passado pouco tempo, chegava o jogador e lá ficava até ao fim da tarde, saindo antes do marido chegar. 
Toda a gente via mas ela era tão descontraída que não me lembro de alguém a fazer sentir-se inibida. Tenho ideia de os meus pais, entre eles, trocarem sorrisos maliciosos quando falavam disso mas nada de mais. Pelo contrário, se a minha mãe via o carro dele lá na rua, dizia para ficarmos a brincar no jardim da minha casa e não irmos para casa dela chatear.
Mais tarde, resolveram abrir uma casa de moda mas, claro, era coisa dela porque ele continuou com as suas bicicletas. Íamos lá muito, tinha sempre tecidos muito bonitos e, mais tarde, peças de pronto-a-vestir com bom gosto. Apesar de ter empregados, estava lá todos os dias. Recebia os clientes de forma calorosa, aconselhava, sugeria, ria-se com toda a gente. Foi um sucesso. 
Mas, voltando ao Carnaval: entronchávamo-nos e, felizes da vida, íamos depois em grupo pela rua, os rapazes apareciam também, com bigodes desenhados, armações de óculos sem lentes, chapéus ou bonés, casacos de homem, uns todos entrouxados, outros aperaltados. Corriam atrás de nós, fingiam que nos queriam apalpar as mamonas ou o avantajado rabiosque, pregavam-nos partidas. E isso era uma verdadeira festa.

Do carnaval a única coisa de que eu não gostava era das bichas de rabear. Dos estalinhos não gostava por aí além mas não tinha medo. Mas odiava quando eles atiravam as bichas de rabear. Também tínhamos bisnagas em forma de bananas ou de outras figuras e os rapazes tinham pistolas. Enchíamo-las de água e molhávamo-nos todos. Também havia o costume de ir por trás e encher a cara do outro de farinha. Isso eram mais os rapazes que nos faziam. Eu fugia deles quando pressentia que era isso que estavam a tramar: davam-me cabo da maquilhagem.

Tenho ideia que, por altura do Carnaval, levávamos para a escola as ditas bisnagas e os ditos estalinhos. Pacífico. O que não íamos era mascarados.

Já adolescente, nas inúmeras festas dançantes de fim de semana ou de aniversários ou do que fosse, se calhavam no carnaval, mostrávamos alguma superioridade em relação a isso das máscaras e das brincadeiras, coisa que já parecia coisa de crianças. Mas tenho ideia de ter usado mascarilhas ou de aproveitar para fazer maquilhagens mais exuberantes. Contudo, o que recordo mais dessa altura foi de um namoradinho meu, um amor dos grandes apesar dos nossos verdíssimos anos, ter ido passar uma noite à esquadra por reiteradamente se pôr, escondido num terraço, a atirar estalinhos e bichas de rabear a um polícia que estava, em baixo, a fazer guarda a qualquer coisa. Perante tal feito, fiquei a gostar ainda mais dele, my hero. Teria ele uns catorze anos nessa altura e não percebo como fizeram isso a uma criança - mas fizeram.

Mais tarde, já namorando, e depois, já casada, voltei a festejar o carnaval a sério. Um primo nosso tinha o costume de organizar 'assaltos'. Então íamos, de noite, completamente disfarçados para que ninguém nos reconhecesse. O meu marido não achava grande graça, para ele era sobretudo um frete. Mas, enfim, sujeitava-se e acho que acabava por se divertir. Eram sempre festanças até de madrugada. Aí havia grupos de padres, grupos de freiras, damas antigas completamente irreconhecíveis com os seus chevaliers, sei lá, mas tudo polvilhado com o seu quê de malícia, malandrice, provocação. Mas a diversão que eu vivia nessas noites malucas não se comparava ao prazer enorme que tinha quando era miúda.

Não sei se por isso, nunca achei graça a mascarar os meus filhos com fatos alugados ou feitos de propósito (na altura acho que ainda não os havia à venda, como agora). Mas, então, já tinha passado de moda a verdadeira folia carnavalesca, já estava tudo a começar a ser industrializado. Começaram também a aparecer aqueles desfiles copiados do Brasil, uns patéticos arremedos, em marcha lenta, uma coisa de tipo lá vem um, toda a gente nos passeios à espera que passe uma meia dúzia de pseudo-foliões. A única vez em que quase assisti a uma coisa destas foi em Sesimbra. Tínhamos lá ido, já não me lembro a que propósito, e as ruas estavam cortadas. Sem querer, acabámos por ver parte daquilo. Deu-me pena ver aquelas raparigas, brancas, descoradas, com tempo frio e chuvoso, a desfilar como se tivessem a alegria do sangue africano ou como se estivesse um calor baiano.


Este ano, não sei porquê, não vi gente mascarada nas ruas. Se calhar fui eu que não andei na rua à hora certa. Mas vi na televisão. Lá há um ou outro que parece que goza o carnaval a sério mas, de resto, é aquilo de os homens aproveitarem para se vestirem de mulheres e umas mulheres meio histéricas a foliar para o seu minuto de glória na televisão.


Acho que se perdeu o verdadeiro prazer da transgressão, o prazer de descobrir que nos podemos transformar, soltar os anjos loucos que existem dentro de nós e, depois, voltar a ser o que éramos, o prazer de andar a correr e a rir em voz alta, em grupo, pela rua, o prazer genuíno de comprovarmos que nós próprios somos capazes de desenhar a nossa própria alegria.

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As fotografias são da autoria de Rares Pulbere, um fotógrafo de casamentos que resolveu ir para a rua fotografar o Notting Hill Carnival.

Os vídeos não têm a ver com Carnaval mas podiam ter. Foram feitos para a Love por Sølve Sundsbø, um fantástico fotógrafo, um transgressor, que já cá esteve noutras vezes. O primeiro é recente, foi divulgado ontem. O segundo já tem dois anos.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.

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terça-feira, fevereiro 09, 2016

Alô, alô Miguel Sousa Tavares! Eu trabalho numa empresa privada e amanhã, terça-feira de Carnaval, também não trabalho. Apre, MST, que já mal o consigo distinguir do outro, do João Miguel Tavares. Tanto facciosismo e demagogia é para manter o emprego na SIC ou está virado do avesso? Olhe, sabe que mais? Já não o consigo ouvir! E, como deixei de comprar o Expresso, também já não o leio. Vai por bom caminho, vai.


Chegada a casa mais cedo do que é costume, pus-me a ver as notícias. Mas já não estou: ou é futebol ou comentadores a eito. Não se aguenta.

Estava a ver o Miguel Sousa Tavares, na SIC, que falava como se tivesse estado a estudar o Orçamento de Estado e já fosse escolado em Finanças Públicas. Ora, do que ele diz, percebe-se que não deu sequer o primeiro passo: não sabe o que é um orçamento. Um orçamento não é um exercício de divinação: um orçamento é um exercício conjugado de objectivos que se tentam alcançar e que respeita os constrangimentos a que não se consegue fugir.


Quando faço um orçamento (na empresa privada onde trabalho) sinto muitas vezes que me estou a atirar para fora de pé. Mas, se eu quero lá chegar, cabe-me, durante o ano, fazer o que estiver ao meu alcance para o conseguir. Um objectivo é optimista, ambicioso? Ainda bem. Gente medrosa, com medo de falhar, faz orçamentos conservadores. Além do mais, as variáveis interagem umas sobre as outras (por isso são variáveis) e o evoluir favorável ou desfavorável de uma, por inércia, induz efeito sobre as outras. Mas para isso também há gente responsável que age em função dos acontecimentos, podendo agir para anular ou empolar o efeito, consoante o que se pretenda. Ora ouço as maiores boçalidades sobre o Orçamento como se o orçamento fosse a transposição para papel de informações do tarot e como se o Costa, o Centeno ou outros alterassem as ditas informações recebidas quiçá da Maya ou da taróloga Maria Helena. 

Haja paciência.

Mas o que me tirou ainda mais do sério foi quando o Miguel Sousa Tavares (outro que tem mostrado que faz de tudo para manter o lugar de comentador), num afã de dizer mal do Governo, se virou contra a pretensa protecção agora dada aos funcionários públicos, chegando ao populismo de se se virar para o Rodrigo Guedes de Carvalho e perguntar-lhe se, na SIC, lhe tinham dado folga por ser Carnaval. Claro que o outro respondeu que não. Então, o sempre-enfadado Miguel rejubilou com o brilhantismo da argumentação: ora se a SIC não fecha para Carnaval como podem os funcionários públicos não trabalhar?

Claro que, com esta anormalidade, desliguei a televisão. Há uma característica comum nesta chusma de comntadeiros: ou julgam que estão a falar para gente burra ou, então, são eles que não devem muito à inteligência. 

Mas agora aqui estou para dizer umas coisinhas ao cagão do MST, e vou dizer devagarinho.

1. Nas empresas privadas que deram tolerância de ponto no dia de Carnaval, mantêm-se a trabalhar as pessoas que têm que manter as instalações a laborar, nomeadamente em instalações fabris em regime contínuo, por exemplo. Mas, de todas as que conheço e que, por sorte, são geridas por gente com dois dedos de testa, foi dada tolerância a quem, não trabalhando, não prejudica a missão e os resultados da empresa. 

2. Contudo, nos hospitais privados e públicos mantêm-se a trabalhar os que exercem funções necessárias ao funcionamento regular dos serviços -- e, em alguns casos, também as funções administrativas. 

3. Os polícias devem também manter-se em funções e não é por serem funcionários públicos mas, também, pela natureza das suas funções.

4. Da mesma forma, quem trabalha nos centros comerciais  trabalhará porque é bem capaz de ser dia forte de consumo -- e é por isso que trabalham. Mas, provavelmente, quem trabalha nos escritórios não trabalha.

5. E no Brasil? E em Veneza? Achará o catavento Miguel Sousa Tavares que os governos brasileiros ou italiano dão tolerância às populações porque são parvos? Ou porque o longo braço do Costa chega até lá?

Ou será porque é bom para os respectivos países?

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Ou seja, não é por serem privadas ou públicas que as organizações dão tolerância aos trabalhadoras no Carnaval.

Dão-no porque, não se tratando de funções nevrálgicas, não é um dia que faz a diferença na produtividade das organizações. Isso está previsto desde o início e a planificação das actividades tem isso em consideração.

Dão-no porque toda a gente tem direito ao descanso, à diversão, à comemoração de festividades.

Dão-no porque a actividade económica pode ser mais estimulada com um dia de festejos do que num dia normal.

Dão-no porque, por todo o lado, o Carnaval é um dia de descompressão (menos do que devia ser, porque está cada vez mais formatado) e momentos assim são saudáveis nas sociedades. 

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Em tempos, Miguel Sousa Tavares era uma presença interessante na televisão. Agora é um maçador, um demagogo, um enjoado que dá sono, que não acrescenta informação ao telespectador nem valor a quem o contrata. Lamento dizê-lo com esta frontalidade mas é o que penso.


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Entretanto, umas horas depois de ter publicado o post, recebi por mail a referência a um esquecimento meu. Não me esqueci mas achei que o texto já ia longo e que talvez o mal esteja nele mesmo e não que tenha resultado de um processo de osmose. De qualquer forma, transcrevo:
(...) não mencionando, se li bem, que o fulano dorme com uma das maiores TRAULITEIRAS  PAF, e que portanto, é difícil alguém abster-se de influências de coito. O resto vem por arrasto... (arrasto de chinelas de quarto).
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Moral da história: ou as televisões, por alguma epifania, percebem que estão a intoxicar a opinião pública e que esta começa a rejeitar tanta manipulação e estupidez e mudam de direcção, ou, se persistem, é bom que as gentes das esquerdas abram os olhos e passem à acção. Para investir num novo órgão de comunicação social que contrarie a contra-informação que está a ser enfiada pela goela abaixo dos portugueses não é preciso ser de esquerda, é apenas preciso ter olho para o negócio. Mercado é o que não vai faltar.


E o que há a fazer não passa apenas por haver um espaço livre em que a informação seja limpa e o entretenimento não estupidificante: o Governo tem que perceber que há um problema sério a nível de desinformação levada massivamente a cabo pelos caceteiros do PSD e CDS e que, como tal, tem que ser combatido. E o combate tem que ser enérgico e levado a cabo com profissionalismo e criatividade, taco a taco. Tem que ser dada atenção à Comunicação e o mais rapidamente possível e, read my lips, isso não está a acontecer. 

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça feira de Carnaval.

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