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domingo, setembro 10, 2023

Quando paramos, encontramos a paz

 

Penso no protesto de alguns leitores que, de vez em quando, me escrevem, indignados, dizendo que só gosto de escrever sobre momentos felizes. É um facto. Quem queira ler sobre desgraças ou choradinhos pode ter a sorte de me ter acontecido alguma que me deixe tão arrasada que tenha mesmo que aqui desabafar. Mas o mais aconselhável para quem queira, de certeza, encontrar desgraças e dramas é ir até ao site do Correio da Manhã. Aí é um fartote. Tudo o que de tenebroso e cabeludo acontece no mundo está ali descrito. Não escapa nada. 

Aqui é o que se sabe. Se estou aborrecida, apetece-me espantar o aborrecimento, desanuviar, falar de coisas boas. E, se estou bem disposta, nem pensar em falar de coisas que me entristecem.

Claro que, de vez em quando, tenho que ir a terreiro espadeirar contra os maraus que gostam de poluir o espaço comum, sejam eles escorpiões que picam (ou tentam picar) com o seu veneno aqueles que mais temem, seja jokers apalermados que falam sem saber do que falam, sejam despudorados vendedores de banha da cobra, sejam maledicentes papagaios avençados que não sei como não morrem envenenados todos os dias tanto o veneno que destilam. Mas, conseguindo, fujo deles.

Cada vez mais sinto necessidade de me afastar da toxidade de quem não tem coluna vertebral, honestidade e inteligência e de me deslocar até locais de serenidade e paz.

Nem sempre a solução será a evasão física, total. Quem ainda trabalha e tem responsabilidades a assumir, pode ter que se sujeitar a situações complicadas em que haja sofrimento e dor ou, mesmo, humilhação. Nesses casos, há que ter a resistência para aguentar e a esperança de que seja por pouco tempo. Não há mal que sempre dure.

Mas quem possa ter a liberdade de escolher uma vida de tranquilidade, rodeado de generosidade, de alegria e de paz é, sem dúvida, alguém bafejado pela sorte.

O meu dia hoje foi muito bom. Dia de desporto. Só eu não o pratiquei pois o desporto do dia tem muitas regras. Gosto de bater bolas mas acho que não iria conseguir decorar quem faz o serviço, se é em diagonal, se é este ou aquele, se é assim ou assado. Não dá. Além disso, não me fio muito nos meus joelhos quando sujeitos a tratos de polé.

Depois juntámo-nos aqui e a tarde estava uma maravilha e foi uma alegria. Para mim felicidade é isto. Não sonho com idas às Caraíbas, com carros topo de gama, com restaurantes de luxo, com liftings ou tratamentos ultra rejuvenescedores ou com roupas griffe. Nada disso. A gente que habita o meu coração à volta da mesma mesa, uma conversa boa, sorrisos -- é aquilo de que preciso para me sentir feliz.

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Running from pain - And when we stop, we find peace.

We are adept at the avoidance of pain and suffering - we push it away, we pretend it’s not there.  And we keep ourselves busy so that we don’t have time to sit and reflect - when bored, we surf social media - when we feel down, we go shopping or watch TV.  But running keeps us stuck in spiraling patterns of despair and hopelessness.

And while we may not be responsible for causing the pain, we can be responsible for ending it.  And to admit to that and own up to that is a humbling thing to do. You create an opportunity for growth and expansion in your life by taking accountability. You let go of your ego’s dominance over your actions and decisions, and start listening more carefully to that intuitive voice inside.

To run from pain is to run from life itself.  Because by embracing difficulty and the challenges it presents, is how we grow and improve as humans.  So let’s learn to accept it as a part of life.  It's this that will make us whole again.

Filmed in McGregor, South Africa. 

Featuring Sung-Yee (Sy) Tchao.


Desejo-vos um belo dia de domingo
Saúde. Felicidade, Paz.

quinta-feira, setembro 09, 2021

A dor dos outros

 






Uma vez, não me lembro porquê, fui a casa à hora de almoço e regressei de autocarro. Foi há muito tempo. Ao meu lado sentou-se uma mulher mais velha do que eu mas que, certamente, seria mais nova do que sou agora. Eu ia calada, do lado da janela. Ela começou a falar. Contou-me que o filho se drogava, que a roubava, que lhe batia. Eu estava quase petrificada. Era muito nova nessa altura e ainda não estava habituada a que estranhos me contassem os seus dramas. Não sei o que lhe disse, não sei se na altura estava preparada para dizer o que, numa situação de angústia, uma pessoa precisa de ouvir. A senhora contava que morava num rés-do-chão e que tinha mandado colocar grades para o filho não entrar. Dizia que, sempre que ele conseguia entrar ou sempre que ela ia buscá-lo à esquadra ou que o apanhava caído na rua e acabava por deixá-lo ficar em casa, ao fim de pouco tempo, ele acabava por desaparecer e que, sempre que desaparecia, ela já sabia que ele tinha roubado alguma coisa. E que outras vezes, quando ela escondia o pouco que tinha, ele a ameaçava e agredia. 'Já me bateu tantas vezes...', disse 'tenho tanto medo dele'. Tinha a voz presa, por vezes quase não conseguia falar. Quando cheguei à minha paragem tive pena de sair antes dela, sentia que deveria continuar a ouvi-la. Nunca mais me esqueci desta mulher. Lembro-me perfeitamente dela e do que me disse. Não me lembro de uma única palavra que eu tenha dito.


Outra vez foi a senhora que, por vezes, via a passear o cão e que tinha um filho estranho que devia morar com ela. O filho deveria ter uns trinta e tal ou quarenta anos e era esquisito. O meu marido dizia que, se calhar, ele tinha tido problema com drogas e estaria a recuperar. Costumava andar com uma grande máquina fotográfica, uma objectiva das boas, equipamento dir-se-ia que profissional, e estava quase sempre a fotografar não sei bem o quê, acho que pormenores. Quando eu estacionava o carro, por vezes via aquele trio, a mãe, o filho e o cão. Uma vez estacionei e ela estava sentada no muro de uma das casas que dá para o pequeno parque onde eu tinha estacionado. Vi-a levantar-se e vir na minha direcção. Penso que, na altura, descrevi essa situação aqui no blog. Chegou-se ao pé de mim e disse-me: 'Morreu o meu filho', um fio de voz. De facto, estava vestida de preto. Lembro-me de me ter sentido aterrada perante a dor imensa daquela mãe. Estava numa angústia imensa. Disse que não conseguia estar em casa, que só queria estar no cemitério. Que ele tinha adoecido e que ela nunca tinha percebido que a doença era tão grave. Não lhe tinha ocorrido que o filho estivesse em vias de morrer. Que tinha sido muito rápido. Que quando lhe disseram que o filho tinha morrido não conseguia acreditar. E eu ouvia, esmagada pela dor dela, também sem saber o que dizer. Não sei o que lhe disse. Só me lembro do que ela me disse. Fiquei ali na rua a ouvi-la até ela querer, esmagada pela dor. Quando contei ao meu marido ficou muito admirado não apenas pela morte do filho da senhora como pelo facto da senhora, sem me conhecer, sem nunca antes ter falado comigo, ter chegado ao pé de mim para me dizer tudo aquilo.

Uma vez íamos, à noite, para a nossa casa no campo e, pelo caminho, parámos no supermercado da cidade mais próxima. Eu tirei a senha para o peixe e o meu marido foi comprar fruta, legumes, queijo -- essas coisas. Eu fiquei à espera da minha vez. Estavam várias outras pessoas à espera. Então, uma das pessoas, uma mulher, abeirou-se de mim e começou a contar-me sobre os problemas que tinha com o filho, separado, incapaz de se fixar num emprego, só a falar em ir para fora, com uma criança pequena de quem não queria saber. A mulher, à beira das lágrimas, dizia que não sabia o que seria do filho se fosse para outro país, que ficaria sem saber como é que ele estava. E que perderiam o contacto com a criança. Que não sabia o que fazer. Que achava que ia perder o filho e o neto. O meu marido, que se tinha despachado, ao ver a senhora a falar comigo, ficou de longe, penso que era alguma pessoa minha conhecida. Quando chegou a vez dela ser servida, ao ir-se embora, agradeceu-me. Quando contei, o meu marido voltou a dizer que não percebe como é que, do nada, alguém chega ao pé de uma pessoa que nunca viu e começa a falar de assuntos tão pessoais. Também acho estranho. Mas é isto que acontece.

Ultimamente, quando percebo que isso está prestes a acontecer, afasto-me um pouco, agarro-me ao telemóvel para que as pessoas se retraiam. Aconteceu no outro dia à porta da farmácia. A lotação é limitada pelo que a espera se faz no exterior, esperando a vez da nossa senha. Estava ali e vi uma senhora que se foi chegando. Percebi que não haveria de faltar muito para me falar de assuntos muito seus. Fiz de conta que não tinha percebido e dei uma volta por ali. Não sei porque agora evito. Creio que é porque receio não estar à altura e não ter a palavra ou a atitude certa. 

Lembro-me de quando salvei uma mulher que tinha tentado suicidar-se. Também o contei, não sei se aqui se no outro blog. Andávamos a caminhar à beira rio e o meu marido foi por um lado e eu quis ficar ali, não sei se a fotografar, se quê. Já era lusco fusco ou noite, também não recordo com exactidão. Havia o barulho das ondas a bater na amurada. Só eu estava ali. O meu marido detestava que eu ficasse para trás, em locais ermos, ainda por cima já sem luz. E, então, pareceu-me ouvir uma voz, um choro, a vir da água. Abeirei-me e vi que estava uma mulher dentro de água, tentando segurar-se ao muro. Mas as ondas puxavam-ma e, por vezes, desaparecia. Quando me viu, suplicou-me que a ajudasse, suplicou-me que ficasse ali, que não a deixasse sozinha. Sem ver vivalma, sem ver o meu marido, sem saber se haveria de ficar a falar com ela se sair dali para ir em busca de alguém, vivi uns instantes de aflição. Não vou descrever em pormenor mas consegui chamar ajuda. Estive o tempo todo a dizer-lhe que se aguentasse, que tudo se iria resolver. Ela, mesmo quando estava a ser puxada com cordas, não parava de me pedir que não a deixasse, que a ajudasse. A custo, os bombeiros conseguiram resgatá-la. Estava gelada, perturbada. Pediu-me que ligasse ao marido, quis que fosse eu a falar. Pedi ao senhor para ir ter ao hospital. Ela não me largava a mão, pedia-me 'ajude-me, ajude-me'. Disse-me: 'sou muito infeliz'. Queria que eu fosse com ela na ambulância mas os bombeiros não deixaram. Fiquei muito perturbada. A mão gelada dela agarrada à minha não me sai da memória. Não a procurei no hospital. Pensei que ela deveria ter apoio clínico especializado, não o apoio de uma leiga, de uma desconhecida. Mas não sei se fiz bem.

Mesmo aqui já recebi apelos aflitos, pedem-me que lhes ligue e enviam-me o número de telemóvel ou pedem-me que vá ter a alguns lugares, já me disseram que não sabiam a quem mais recorrer, pedem-me ajuda, que não aguentam mais, percebo que estão no limite. Não acedo, não ligo, não me encontro. Tento ajudar de outra forma, tento que procurem ajuda especializada. Não tenho preparação para lidar com situações limite. Tenho receio de falhar.

No outro dia, quando fiquei em observação no hospital, perto de uma jovem suicida que toda a noite gritou e chorou, tive muita vontade de ir falar com ela. Várias vezes me soergui e me preparei para me ir sentar ao lado dela. Mas ela estava rodeada de enfermeiros que a seguravam e atavam à cama, e eu própria tinha que estar em repouso -- não iam aceitar. E, depois, que lhe diria eu? 

Mas, se calhar, em situações assim, não é preciso dizer muito, se calhar basta ouvir e sentir o sofrimento que os outros sentem.

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Excerto de pinturas de Pieter Bruegel, o Velho, ao som de A Garota Não que interpreta Mediterrâneo

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Desejo-vos um dia bom