Mostrar mensagens com a etiqueta tradução. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta tradução. Mostrar todas as mensagens

sábado, setembro 01, 2018

A cova do desespero, juro, não me há-de tragar
-- Escreveu Virginia num longínquo 21 de Janeiro --





Claro que, estando nós a ler na nossa língua e não na versão original, não sabemos se o que lemos é mérito apenas do escritor ou se o tradutor o enriqueceu (ou empobreceu) com o seu próprio estilo. Já me aconteceu ler textos que atravessam os tempos e são tidos por obras extraordinárias e eu os achar tocados por uma desconcertante pobreza estilística. Por exemplo, tenho dúvidas sobre o mérito como tradutor de Frederico Lourenço. Traduzir obras vastas e complexas não é coisa à altura de qualquer um pelo que persistência e determinação não se lhe podem negar -- mas já arte e intuição, sabendo interpretar a vontade do autor, disso tenho dúvidas.

Diz Jorge Vaz de Carvalho -- que também se tem abalançado à tradução de obras de envergadura -- que o seu critério geral é deixar transparecer o original, como se se limitasse a copiar respeitosamente o que a autora escreveria se usasse a língua portuguesa, procurando aquilo a que ele já chamou 'a especificidade identitária do texto'.
Não deve ser fácil pegar num texto, especialmente quando se tem pela frente a tradução de seiscentas e tal páginas escritas com fluência, por vezes num registo de coloquialidade, por vezes com uma sinceridade desarmante, e conseguir não desmerecer o original. Traduzir anos de vida para outra língua não desvirtuando o bater de coração do autor enquanto escrevia não é coisa que qualquer um consiga, pelo que, ao lermos um livro traduzido, não devemos deixar de valorizar o mérito do tradutor. Digo eu.
De facto, um diário é um texto escrito despreocupadamente, geralmente sem edição, um 'escrevinhar não premeditado', sem a censura interna que impõe o politicamente correcto e, talvez por isso, as palavras fluam de forma mais espontânea, mais próximas da intimidade de quem as escreve.

Escrever um blog pode ser a mesma coisa que escrever um diário. Escrever sem agenda, sem propósito, escrever pelo simples escrever de escrever. Regista-se o que se fez, o que se pensou, o que sentiu, o que se quer, o que se recorda, aquilo de que se gosta, ou barafusta-se com aquilo de que se não gosta. A mão como um prolongamento, em linha directa, da mente, do coração, da pele.

Os Diários de Virginia são assim: ao longo de anos, dia após dia -- e até poucos dias antes de ter desistido de viver, tragada pela escura cova do desespero --, Virginia vai registando o decorrer dos seus dias: os seus passeios, nomeadamente as caminhadas que dá com o marido e com o cão, os livros que lê, as visitas que faz e que recebe, os amigos, os familiares, os concertos a que vai, as conversas que tem, os acidentes domésticos, a procura de casa, os insignificantes desentendimentos, o tempo, as maleitas, o que está a escrever, o que o marido está a escrever, as idas à biblioteca e as opiniões sobre as pessoas com quem se cruza, as compras que faz. Sobre tudo Virginia foi escrevendo.

Uma vida, por mais profícua que seja, quando dividida em dias, e os dias em momentos, é uma realidade fractal na qual as suas partículas elementares são pequenos nadas, quase iguais aos pequenos nadas de toda a gente. 

Talvez que a diferença esteja na forma como se vivem os nadas e como deles se consegue fazer o sumo que a maioria negligencia e, tanto mais, quanto o sumo é saboroso, único, requintado, quase viciante.

Estou a referir-me, claro, aos Diários de Virginia Woof, traduzidos por Jorge Vaz de Carvalho que também prefacia o livro e nos ajuda na compreensão das referências através de exaustivas notas. Virginia Woolf escreveu os seus diários em papel. Se fosse hoje, teria certamente um blog e eu seria, sem dúvida, uma sua devota seguidora.


E é a leitura deste livro, um blog em papel, que eu vivamente recomendo. 


--------------------------------------------------------------

Já agora:

A Vida de Virginia Woolf
[legendado em português]


---------------------------------------

Lá em cima é Jelly d'Arányi interpretando Mozart Serenade in D K.250 'Haffner' - (ii) Menuetto; Trio, numa gravação de 1925.

Lembrei-me de a ter aqui porque, nos seus Diários,Virginia refere que ia ouvi-la tocar, a ela e às irmãs.